Educação

Brasil pode regredir mais de duas décadas no combate à exclusão escolar

Alerta foi dado por relatório do Unicef publicado nesta quinta. Especialistas comentam o desafio no contexto da crise sanitária e econômica

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Sob a pandemia, o Brasil corre o risco de regredir mais de duas décadas em relação ao enfrentamento da exclusão escolar. O alerta é da Unicef, que lançou nesta quinta 29 o estudo ‘Cenário da Exclusão Escolar no Brasil’ em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).

 

A pesquisa detalha o desafio brasileiro frente ao tema antes do período pandêmico, mas mostra sua escalada com a chegada do vírus e o fechamento das escolas. Embora o País viesse avançando lentamente na garantia do acesso à educação de crianças e adolescentes, as desigualdades ainda resistiam. Em 2019, quase 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória estavam fora da escola no País. A maioria, crianças das faixas etárias de 4 a 5 anos e adolescentes de 15 a 17 anos.

Já em novembro de 2020, de acordo com a pesquisa, já era possível contabilizar 5 milhões de meninos e meninas de 6 a 17 anos sem acesso à educação no País. O número diz sobre um universo de 1,5 milhão de estudantes que não frequentavam a escola (remota ou presencialmente) e sobre um contingente de 3,7 milhões que estavam matriculados, mas que não tiveram acesso às atividades escolares e não conseguiram se manter aprendendo em casa.

Dos 5,1 milhões de meninas e meninos sem acesso à educação em novembro de 2020, 41% tinham de 6 a 10 anos de idade; 27,8% tinham de 11 a 14 anos; e 31,2% tinham de 15 a 17 anos – faixa etária que era a mais excluída antes da pandemia.

A exclusão escolar também é avaliada diante de fatores como gênero e raça. Na faixa etária da escolaridade obrigatória, dos 4 aos 17 anos, os meninos são maioria fora da escola (50,2%), ainda que a diferença seja pequena em relação às meninas na mesma situação (49,8%). A diferença, no entanto, se aprofunda na faixa etária dos 6 aos 14 anos, chegando a quase 10% de diferença: meninos 54,9% e meninas 45,1%.

Também há a constatação que a maioria das crianças e adolescentes fora da escola são pretos, pardos e indígenas e de famílias que vivem com renda domiciliar per capita de até ½ salário mínimo (61,9%).

Por fim, o estudo reforça a necessidade da reabertura das escolas em segurança para garantir o direito à educação de crianças e adolescentes e ainda faz outras recomendações quanto à execução de políticas públicas necessárias para o enfrentamento, tais como: realização de busca ativa de crianças e adolescentes que estão fora da escola; garantia de acesso à internet para todos, em especial os mais vulneráveis; realização de campanhas de comunicação comunitária, com foco em retomar as matrículas nas escolas; mobilização das escolas para que enfrentem a exclusão escolar; e fortalecimento do sistema de garantia de direitos para garantir condições às crianças e aos adolescentes para que permaneçam na escola, ou retornem a ela.

A importância da busca ativa escolar 

Para o professor Romualdo Portela de Oliveira, também diretor de pesquisa do Cenpec Educação, os dados mostram desafios já conhecidos do sistema educacional brasileiro, como a falta de escolas e vagas, sobretudo para as crianças menores, e questões como necessidade de trabalho, gravidez, e falta de interesse na escolas, mais comuns a estudantes do ensino fundamental e médio. Sobretudo, traz fatores que refletem diretamente o impacto da pandemia.

“De cara, temos o aumento da evasão escolar, que passou de 1,1 milhão para 1,5 milhão”, atesta o especialista que ainda comenta sobre a efetividade do ensino remoto diante o fechamento das escolas. “Não foi uma alternativa de conjunto porque não foi universalizada, não atingiu sequer os que estavam na escola [3,7 milhões dos alunos que estavam matriculados não tiveram acesso às atividades escolares]. Agora, o principal é considerarmos tudo isso em um cenário de retorno, com a execução de estudos e políticas contextualizadas”, defende.

Um das soluções seria o de reforçar a política de busca ativa escolar nos territórios, trazendo de volta aos sistemas os que se evadiram e também criando condições para a permanência dos demais estudantes. Para a chefe do escritório do Unicef em São Paulo, Adriana Alvarenga, a política, que tradicionalmente já requer esforços intersetoriais, ganha novas projeções na pandemia, diante o cenário de perda de emprego e renda.

“Esses estudantes podem ter deixado a escola porque os pais perderam o emprego e eles tiveram que ir trabalhar. É um trabalho articulado com os setores públicos, como educação, saúde, assistência social,  e que precisa olhar a família como um todo. A responsabilidade não é só da escola. Às vezes esse núcleos familiares precisam de ajuda para recorrer a auxílio emergencial, a serviços de atendimento de saúde mental”, atesta a especialista que acompanha municípios na implementação e execução da política.

Já no contexto escolar, Portela vê a necessidade de que as defasagens do período de fechamento das escolas sejam consideradas e equalizadas em planos de estudo. “Vai implicar em uma reorganização curricular. Muitas redes consideraram que as atividades aplicadas no período foram suficientes para aprovação, aliás a gente sabe que reprovar não adianta nada, mas o que tem de ser considerado é que isso não necessariamente significou a aprendizagem dos conteúdos”, observa.

Volta às aulas

Sobre o debate acerca do retorno às atividades escolares, Portela reconhece a urgência da retomada, mas entende que o País não vem dando bons exemplos na condução do tema, que segue bastante judicializado. “Em primeiro lugar, é preciso destacar que esse retorno tem que respeitar as condições sanitárias, e isso se traduz na vacinação dos professores ou para a maioria deles, para que esse cenário seja possível”, considera.

“Outro ponto é que não acho que devemos trabalhar na perspectiva de uma solução única para o Brasil, que é um país tão diverso. É preciso contextualizar em cada região, e isso envolve pactuar essas condições com todos os  agentes do processo educativo, pais, mães, estudantes, professores, poder público. Tem de ser uma solução negociada”, coloca o pesquisador, ao fazer referência ao PL 5595, que pauta a educação como atividade essencial, e vai para votação no Senado.

“Me parece um equívoco que cria mais tensão do que solução. A questão está muito judicializada, tem muitos decretos unilaterais do poder público, e a solução me parece ser mais a da mediação”, considera.

 

O retorno às atividades escolares também é defendido por Adriana Alvarenga, que considera não só o fator aprendizagem como o de proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes.

“Fica evidente que estamos perdendo progressos históricos que tivemos em relação ao enfrentamento à evasão. Vemos, por exemplo, que a exclusão atingiu majoritariamente crianças de 6 a 10 anos, que estão em idade de concluir o processo de alfabetização. Isso pode ter impactos em toda uma geração”, avalia.

Ela ainda pontua a importância da escola como um dos agentes no combate à violência de crianças e adolescentes. “Os educadores, a comunidade escolar desenvolvem um importante trabalho de alerta ao sistema de proteção de garantias de direitos quando percebem, por exemplo, alterações comportamentais nesses estudantes. Sem contar a questão do trabalho infantil, que só aumenta a vulnerabilidade dessa parcela da população”, adverte.

A especialista, no entanto, reconhece que os desafios educacionais têm de ser ancorados em políticas públicas específicas e na priorização do orçamento. “Dizer que criança e adolescente é prioridade é garantir prioridade no orçamento público. O planejamento e a implementação desses recursos tem de priorizá-los e, ainda dentro desse grupo, aos mais vulneráveis para que efetivemos políticas de equidade”, defende.

“Se os números mostram que temos mais pretos, pardos e indígenas fora da escola, temos que criar políticas que considerem o fator raça; se em determinado momento, as meninas deixam mais as escolas do que os meninos, é fundamental considerar a questão de gênero. Também pensar em geração de oportunidade de trabalho e renda não só às famílias, mas aos jovens, para tirá-los de situações vulneráveis”, explicita.

“A situação é toda preocupante. É preciso ter um a orquestração do governo federal, estados e municípios para que ela se reverta”, finaliza.

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