Edição da Semana

O generalato invade a vida nacional e age como um autêntico ‘partido militar’

De 2010 a 2020, 5.734 integrantes das Forças Armadas se candidataram, e 369 foram eleitos

Foto: Marcos Corrêa / PR
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A cúpula da Aeronáutica vasculha seus 70 mil comandados, atrás de alistados em partidos. Em 2020, identificou 908 filiações, distribuídas por 29 legendas. Neste ano, 221, em 26. O nome das pessoas vai à chefia imediata, para que se analise se a filiação ocorreu antes ou depois da entrada na FAB, se foi solicitada e consentida ou indevida e sem conhecimento. A Constituição de 1988, aniversariante da terça-feira 5, dia em que a Força Aérea divulgou os dados, proíbe militar da ativa de pertencer a partido, razão alegada para o pente-fino. Curioso: o comandante da tropa, o tenente-brigadeiro-do-ar Carlos de Almeida Baptista Júnior, que embolsa 52 mil mensais com os salários de milico e de chefe, adora exibir nas redes sociais seu bolsonarismo.

Tartufice à parte, há nos quartéis uma sigla própria, sem as formalidades da Justiça Eleitoral, porém bem ativa e presente na vida nacional há ao menos cinco anos. É o “Partido Militar”, Exército à frente. Esse agrupamento verde-oliva merece tal descrição por ter os traços típicos de uma legenda, segundo um coronel da reserva, Marcelo Pimentel Jorge de Souza. Ideologia (anticomunismo e antiesquerdismo, marcantes no golpe de 1964), agenda (sobretudo corporativa, como o aumento salarial com Jair Bolsonaro no meio da reforma da Previdência), direção (os generais-ministros do atual governo), quadros (mais de 6 mil estão em cargos federais) e base eleitoral e militante (os próprios militares, suas famílias e o entorno social).

Nas seis eleições de 2010 a 2020, 5.734 membros das Forças Armadas candidataram-se, dos quais 369 triunfaram, informa o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Pela Constituição, militar com dez anos de serviço pode concorrer de farda. Só a deixa se for eleito. Com menos tempo de caserna, aí necessita abandoná-la antes. Regras frouxas para coibir a politização dos quartéis, ao contrário do que se vê no mundo, na visão de Renato Sérgio de Lima, diretor do Fórum. Que ressalta: na soma do número de militares, de policiais e de parentes diretos, supondo 3,3 pessoas, em média, numa família brasileira, a base eleitoral das forças de segurança era de 9% da população em 2018.

De 2010 a 2020, 5.734 integrantes das Forças Armadas se candidataram, e 369 foram eleitos

O general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, tem dito que vai se candidatar em 2022, falta definir a quê. Uma hipótese ouvida em Brasília seria dividir uma chapa presidencial com Sergio Moro, ex-ministro da Justiça. Em declarações recentes, o fardado define-se como um conservador e um liberal na economia. Até acha preciso cuidar mais do social, mas crê que o ministro da Economia, Paulo Guedes, está certo. Desde que foi demitido da Secretaria de Governo, em junho de 2019, é crítico e ácido com o ex-capitão. Uma de suas motivações para concorrer é tentar impedir o presidente de arrastar os quartéis para a política. O “Partido Militar” prova, porém, que já estão metidos em política até o pescoço, por conta e causa próprias.

O fenômeno remonta ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. O Alto-Comando do Exército, formado por todos os 17 generais quatro estrelas na ativa, o último degrau da patente, começara aquele ano de olho na imagem positiva perante as ruas e no agitar destas pelo “Fora Dilma”. No fim de uma reunião do grupo em fevereiro, o então chefe da tropa, Eduardo Villas Bôas, dizia que a confiança popular significa um “aumento das nossas responsabilidades”. Aquele encontro foi uma espécie de plenária do comitê central do “partido”. Todos os seus participantes ocuparam ou ocupam cargos públicos, a imensa maioria como nomeado político, e não só em Brasília.

Villas Bôas seguiu à frente do Exército com Michel Temer e, com Bolsonaro, é assessor especial do GSI, órgão de inteligência da Presidência. Embolsa 45 mil mensais, entre holerite de assessor e de militar da reserva. O então chefe do Estado-Maior, Sérgio Etchegoyen, 32 mil de aposentadoria, comandou o GSI com Temer e, desde 2019, dirige uma entidade que as empreiteiras criaram para tentar limpar a barra da turma após a Operação Lava Jato, o Instituto de Autorregulação do Setor de Infraestrutura. Foi sucedido no Estado-Maior por Francisco Carlos Modesto, ganho mensal de 41 mil como militar da reserva, hoje chefe do escritório paulista do Sistema Defesa, Indústria e Academia de Inovação, o Sisdia, repartição federal. Dias depois daquela reunião do Alto-Comando, a 304a, Marco Antônio de Farias era indicado por Dilma para o Superior Tribunal Militar, função de 38 mil por mês.

Guilherme Theóphilo disputou o governo do Ceará em 2018 pelo PSDB, com a bênção do senador tucano cearense Tasso Jereissati, amigo da família. Em 2019 e 2020, foi secretário nacional de Segurança Pública, pelas mãos de Sergio Moro. Atualmente dirige o Instituto Combustível Legal, criação das grandes empresas do setor para combater o comércio irregular de combustíveis. E ainda embolsa 32 mil como general aposentado.

João Camilo Pires de Campos é, desde 2019, secretário de Segurança Pública de São Paulo, escolhido em 2019 por outro tucano, o governador João Doria Jr. Ganha 52 mil, entre salário paulista e aposentadoria da caserna. Manoel Luiz Narvaz Pafiadache é, desde agosto, secretário de Saúde do Distrito Federal, pinçado pelo governador Ibaneis Rocha, do MDB. Embolsa 50 mil, entre vencimento de militar da reserva e de secretário.

Em “estatais”, foram três os egressos do Alto-Comando do Exército de 2016. Juarez Aparecido de Paula, ganho na reserva de 32 mil reais, assumiu os Correios com Temer e ficou com Bolsonaro até brigar contra privatizar a firma. O fundo de pensão da companhia, o Postalis, é presidido, desde dezembro de 2019, por Paulo César Humberto de Oliveira, o qual, com dois salários (o outro é o da reserva) embolsa 74 mil ao mês. Na Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, vinculada ao Ministério da Educação, o chefe é Oswaldo de Jesus Ferreira, autor do programa de Bolsonaro na infraestrutura. Queria ser o ministro da área, mas perdeu a parada para Tarcísio Gomes de Freitas.

Araken de Albuquerque, 34 mil por mês como militar da reserva, assumiu, com Bolsonaro, a Fundação Habitacional do Exército. Nesta, a Poupex, trabalhava a esposa de Hamilton Mourão, o vice do ex-capitão. Mourão era do politburo do “Partido Militar” em 2016. Embolsa 63 mil mensais, entre salário civil e da reserva. Gerson Menandro Garcia de Freitas é embaixador em Israel desde 2020. Ganha 42 mil, com aposentadoria militar e holerite diplomático. No início do atual governo, era gerente de Relações Institucionais da Apex, a agência de promoção de exportações. Esta possui escritório em Miami, chefiado, desde julho de 2019, por Mauro César Lourena Cid, salário de 33 mil como militar da reserva, outro do Alto-Comando em 2016. E pai de um dos ajudantes de ordens de Bolsonaro.

Outro no exterior é Carlos Alberto Neiva Barcellos. Desde março de 2020, é conselheiro, na Suíça, da missão brasileira na Conferência do Desarmamento, um fórum da ONU, por escolha de Bolsonaro. Seu salário de militar da reserva é de 32 mil reais. Os dois últimos personagens do comitê central de 2016 do “Partido Militar” bateram de frente com o ex-capitão e deixaram os postos. Fernando Azevedo e Silva tinha sido assessor especial da Presidência do Supremo Tribunal Federal em 2018, depois ministro da Defesa, do qual foi demitido por Bolsonaro, em março, por governismo de menos. Seu salário de militar da reserva é de 33 mil reais. No embalo de sua demissão, Edson Pujol caiu do comando do Exército, por motivo igual. Estava ali desde janeiro de 2019. Embolsa de aposentadoria 32 mil reais.

Nos anos 1940, 20% dos cadetes eram filhos de militares. Na década de 1990, esse porcentual chegou a 61%

No lugar de Pujol entrou Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que não fazia parte do Alto-Comando em 2016. No mês passado, Nogueira mandou um vídeo às tropas em que pedia “muita cautela com o que circula nas mídias sociais”. Segundo ele, mentiras correm soltas por aí, daí ser necessário ouvir a chefia e confiar nela. Dúvida: sua preocupação são as fake news bolsonaristas? Ou aquilo que o presidente diz ser inventado contra o governo?

Pouca dúvida há sobre os cérebros por trás do “Partido Militar”, dois gaúchos de Cruz Alta que ocupavam os cargos mais importantes do Exército em 2015 e 2016: Villas Bôas, o comandante da tropa, e Etchegoyen, chefe do Estado-Maior.

Em um livro deste ano, General Villas Bôas – Conversa Com o Comandante, resultado de 13 horas de entrevista, o fardado expõe uma clara postura política, embora a justifique por seu avesso, a necessidade de atitude profissional e responsável dos quartéis. Mais: conta ter planejado uma nova estratégia de comunicação no Exército, a fim de normalizar a politização. “Estabeleci como meta que o Exército voltasse a ser ouvido com naturalidade. Teríamos de romper um patrulhamento que agia toda vez que um militar se pronunciava.”

Para o entrevistador, o antropólogo Celso Castro, da FGV, o ato político mais aberto do general, o “divisor de águas”, foi em 3 de abril de 2018. Aqueles famosos dois tuítes publicados na véspera de o Supremo decidir um habeas corpus de Lula. A tuitada soou como ameaça à Corte, que negou a liberdade ao petista. “Era o comandante do Exército se manifestando sobre a conjuntura política”, diz Castro, “manifestação explícita no campo político”. No livro, o general revela ter consultado o Alto-Comando sobre o tuíte. Dos 17 membros do grupo à época, nove eram os mesmos de fevereiro de 2016. Dos outros oito, dois são ministros de Bolsonaro, Braga Netto (Defesa), salário acumulado de 62 mil reais por mês, e Luiz Eduardo Baptista Ramos (Secretaria-Geral), ganhos mensais totais de 64 mil reais.

Castro acaba de relançar o livro O Espirito Militar, de 1991, resultante de pesquisas na Academia das Agulhas Negras. A geração fardada infiltrada na vida pública passou pela Aman na década de 1970. Segundo o antropólogo, um traço característico dos nossos militares é o “isolamento” do mundo civil. Nos anos 1940, 20% dos cadetes eram filhos de milicos. Nos anos 1970 e 1980, 50%. No início dos anos 1990, 61%. Formado na Aman em 1973, Villas Bôas só foi conviver mais com civis, chamados pejorativamente de “paisanos” nos quartéis, a partir de 2000, aos 49 anos, na Escola Superior de Guerra. Dos 17 do comitê central do “Partido Militar” em 2016, 16 formaram-se no governo Geisel, o da “abertura lenta, gradual e segura” do regime de 1964. Uma geração que subiu na carreira no fim da ditadura, nos anos 1980, momento de “perda de prestígio social” das Forças Armadas, assinala Castro. Os militares, como se sabe, voltaram para casa sob escândalos de corrupção, concentração de renda e economia bagunçada.

O general Braga Netto ganha 62 mil reais por mês. Luiz Eduardo Ramos, 64 mil reais

“É possível que o alto grau de insulamento em relação à sociedade em geral tenha contribuído”, anota o antropólogo, para uma articulação do Alto-Comando do Exército na virada de Dilma para Temer. Ou seja, para (palavras de CartaCapital) um golpe branco. O isolamento leva a caserna a ideias fixas sobre anticomunismo, conservadorismo, politicamente correto. Estas, afirma Castro, ajudaram na reaproximação de Bolsonaro, que deixara o Exército pela porta dos fundos, em 1988, com os fardados. “O senhor (presidente) traz a necessária renovação e a liberação das amarras ideológicas que sequestraram o livre pensar”, disse Villas Bôas, ao passar a chefia do Exército a Pujol, em 11 de janeiro de 2019. Dez dias antes, ao empossar o ministro da Defesa, o ex-capitão afirmara: “Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.

Villas Bôas, diz um general aposentado, deu um ultimato a Bolsonaro na campanha de 2018: “Só temos você”. Tradução: só ele seria capaz de fazer o que o Exército achava certo. Segundo a fonte, não se pode ignorar o papel de Etchegoyen. Este era chefe do Estado-Maior e, prossegue o general da reserva, ajudava nos discursos do comandante, é inteligente, político. Não à toa, dirigiu o GSI após o impeachment. No segundo turno da eleição, um dos membros do comitê petista soube que todos ali estavam vigiados por órgãos de inteligência subordinados a Etchegoyen. Villas Bôas acha que a Comissão Nacional da Verdade, criada no primeiro mandato de Dilma para esclarecer crimes e tortura na ditadura, foi uma “facada nas costas” do Exército. Etchegoyen foi à Justiça tentar tirar o nome do pai, Leo Guedes Etchegoyen, do relatório final da comissão. Perdeu.

A tentativa de reabilitar a ditadura une o “Partido Militar” a Bolsonaro. Pujol, demitido da chefia do Exército por falta de bolsonarismo, declarou às vésperas do 31 de março de 2019: “O povo brasileiro, a imprensa, os políticos não queriam que fosse implantada uma ditadura comunista aqui no Brasil… Isso nós temos que agradecer àquelas pessoas que impediram isso”. Mourão, o vice-presidente que nos bastidores tem dito que quem ganhar a eleição de 2022 tomará posse, tem um “herói” no coronel-torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015.

É por estas e outras que João Roberto Martins Souza, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, diz: uma das tarefas mais importantes do próximo mandatário brasileiro será desmilitarizar o governo. A propósito, com Bolsonaro, a confiança popular nas Forças Armadas caiu de 70% (dezembro de 2018) para 58% (setembro de 2021).

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1178 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE OUTUBRO DE 2021.

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