Economia

Venda de refinarias aprofunda o desmonte da Petrobras

Senadores apontam imoralidade e estupidez na venda dos gasodutos TAG e NTS e pedem a responsabilização dos gestores da petroleira

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A venda, em abril, pela Petrobras, de 90% da TAG Transportadora Associada de Gás, rede de gasodutos do Norte e Nordeste, à francesa Engie, antiga Tractebel, é estranha mesmo do ponto de vista do mundo dos negócios, cria sangria permanente de recursos do caixa da empresa brasileira, tem brechas jurídicas colossais, prejudica os acionistas e provocará aumento substancial do preço do gás, criticaram senadores e especialistas na audiência pública realizada na quarta-feira 19 pela Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo do Senado. 

O péssimo custo-benefício da operação identificado por vários técnicos choca-se com o objetivo do governo de baratear o produto a partir do plano do gás, anunciado na terça-feira 26 pelo Ministério de Minas e Energia. O negócio da TAG foi concluído neste mês com o pagamento de 33,5 bilhões de reais, a maior transação do gênero feita pela estatal brasileira e uma das mais polêmicas. Repete a modalidade de venda, em 2017, de 90% da controlada NTS Nova Transportadora do Sudeste à administradora de ativos canadense Brookfield, que em alguns meses terá recebido da Petrobras aluguéis equivalentes ao total pago pela aquisição e continuará a ter essa renda por décadas. As duas empresas compõem a maior parte da rede construída com recursos da sociedade para transporte do gás extraído principalmente do pré-sal, que deverá aumentar exponencialmente nos próximos anos. 

O senador Jaques Wagner, do PT da Bahia, ex-integrante do Conselho de Administração da Petrobras, resumiu as perplexidades: “Não vejo nenhum objetivo de desenvolvimento do País cumprido no mercado de gás a partir das duas alienações feitas, a da TAG e a da NTS. Estamos reproduzindo o programa de privatização da época do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Não se pensa a empresa como algo que descortina um futuro. Todo mundo sabe que, se uma companhia petrolífera trabalha só em exploração e produção, quando há qualquer queda do preço do petróleo sua margem vai embora e perde-se competitividade, pois quem vai ganhar no setor é o refino. Distribuir o seu risco na cadeia até a terceira geração, que seria a petroquímica, parece-me mais inteligente como planejamento. Se a lógica é só diminuir a alavancagem (uso de recursos de terceiros), então estamos gerindo a maior empresa nacional só sob a lógica do livro-caixa. Na minha opinião, é reduzir demais o horizonte da Petrobras”.

Piora a situação, complementou o senador, a modalidade ship or pay adotada no negócio, na qual a brasileira se obriga a pagar pela capacidade de transporte contratada, qualquer que seja o volume transportado. “Quem comprou está garantido por 20 anos que a Petrobras vai pagar, mesmo se o mercado do gás cair ela vai pagar. Então é um negócio da China. Está supergarantido para quem comprou que, trafegue ou não uma molécula sequer de gás por aquele gasoduto, estará com essa receita. Não há possibilidade de perda, além de não existir uma regulação das taxas que vão ser cobradas.”

Segundo a advogada especialista em petróleo e gás Raquel de Oliveira Sousa, a venda da TAG “não atende a nenhum dos princípios do artigo 37 da Constituição. Não cumpre a legalidade porque foi vendida com base em uma sistemática de desinvestimento que não é uma norma legal vigente no País. Não houve transparência. Qual foi a avaliação? Como se chegou ao preço de 33,5 bilhões, além da análise feita por um banco privado?” 

Até mesmo o Decreto nº 2.745, diz, que contempla a possibilidade de adoção de um procedimento simplificado, estabelece a necessidade de uma comissão de licitação, que nunca existiu. O que houve, prossegue, foi um banco privado usurpando a função pública na sistemática de desinvestimento. “Não se atendeu ainda ao princípio da eficiência, pois o preço de venda foi inferior a cinco anos do lucro líquido da TAG e a cláusula ship or pay é um desastre, como mostra o exemplo da NTS. Os grandes campos do pré-sal ainda não estão em produção, que começará em 2020. A Petrobras paga por toda a capacidade dos dutos da NTS, mesmo sem os utilizar.”

Outro ponto importante, acrescentou, é que “o artigo 65 da Lei do Petróleo diz expressamente que a Petrobras deveria constituir uma subsidiária para transporte desse gás e ainda que esse transporte deveria ser feito por uma subsidiária. A empresa nem sequer poderia vender a TAG, que na origem incluía a NTS, em razão desse artigo. Mas vendeu”.

A assessora jurídica Cláudia Zacour, representante da estatal na audiência, defendeu o programa de desinvestimentos da companhia: “A Petrobras precisa diminuir sua dívida para ter financiamentos mais baratos e se alinhar aos seus pares internacionais, por isso essa desalavancagem é muito necessária”, segundo registrou a Agência Senado. A justificativa recebeu respostas duras dos senadores. Além de afrontar princípios constitucionais, chamou atenção o senador Jean-Paul Prates, do PT do Rio Grande do Norte, a venda da TAG, da NTS e o anunciado desinvestimento de refinarias, entre outras privatizações, agridem os princípios de proporcionalidade e racionalidade estabelecidos pelo Direito. 

“Qual é a racionalidade da venda de ativos em função de, alegadamente, a companhia estar endividada? Estou há muitos anos no setor de petróleo e gás e constatei que empresas do ramo se endividam e têm um ciclo especial de dívida e de movimentação financeira. Normalmente, as petroleiras integradas, caso da Petrobras, que reúnem exploração, refino, transporte e distribuição, se endividam quando encontram grandes reservas. Quando faz uma descoberta excelente e passa a ter uma reserva provada, é esta que vai servir em grande parte como garantia para a firma se endividar. A maior parte do mercado hoje não se autofinancia, exceto na parte de risco, na exploração, porque nenhum banco empresta recursos nessa etapa. Portanto, quem emprestou recursos à Petrobras o fez de modo consciente e com garantia em reservas provadas, para garantir eventualmente um default, como é praxe no sistema financeiro. Então, a Petrobras não fez nada errado, ela não foi se endividar mais ou menos do que qualquer outra firma. A dívida só era grande porque a reserva que ela encontrou e o trabalho pela frente eram grandes. Então é natural isso”, destacou o senador.

Prates considera injustificável alegar a necessidade de privatização acelerada para reduzir um endividamento supostamente excessivo provocado por administrações que teriam sido irresponsáveis na condução da empresa. “Acho criminoso assacar o argumento de endividamento da Petrobras e aproveitar-se de situações pregressas de investigação de má conduta de alguns diretores, da superexposição de problemas na mídia e da deterioração da sua imagem, acho criminoso utilizar isso como argumento para vender ativos. Quando se fala em vender a BR, vender refinarias, é mais do mesmo que vem por aí. Estão vendendo a roupa, os sapatos e os pés da companhia. Quem é acionista da Petrobras, se não estava enxergando isso, passará a enxergar”, alertou. 

O senador lembrou que a compradora da TAG não assumiu nenhum compromisso público de investimentos para, no mínimo, dobrar a rede de gasodutos. “Eu não entendo qual é o problema, por que é que a Petrobras tem de vender esses dutos. Se for só para fazer caixa, acho uma estultice absoluta e os gestores têm de ser responsabilizados seriamente. Estou falando apenas a linguagem do mercado. Vender esses ativos numa empresa integrada é um crime contra a companhia, contra os acionistas. Então tem de ser averiguado. Quem está por trás? O Ministério de Minas e Energia manda fazer isso? Orienta? Será que essa é a única forma de fazer? Vender ativos amortizados que ela vai precisar para refinar? Mas o Brasil não tinha déficit de capacidade de refino? Aí, de repente, a Petrobras vai extrair petróleo, refinar a metade e a outra parte vai para concorrentes dela no mercado cativo que ela tem?” 

Prates criticou ainda a dolarização do preço dos combustíveis decidida no governo Temer, que agrava a situação criada com os desinvestimentos da Petrobras. “Num país que depois de décadas de luta chega à autossuficiência para se livrar parcial ou totalmente da oscilação dos preços internacionais do petróleo e do gás, o governo passado optou por dolarizar em tempo real os produtos finais na bomba. Ainda bem que não temos ainda um furacão ou uma guerra no Oriente Médio, porque o pipoco dos preços bateria direto nas bombas dos nossos postos de abastecimento na mesma hora. Foi por isso que tivemos greve de caminhoneiros e os afretadores e exportadores de grãos, da agropecuária, estão sofrendo com a imprevisibilidade do frete. Não é possível prever, pois não se sabe nem a fórmula que o País usa. Não é transparente essa regra.”

Paulo César Ribeiro Lima, engenheiro e ex-consultor do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, disse a CartaCapital que “as privatizações da TAG e da NTS significam a impossibilidade técnica de redução dos custos de transporte de gás natural e o consequente aumento das tarifas. Os consumidores brasileiros pagarão, por meio de tarifas, o equivalente a 8,6 bilhões de dólares e os encargos financeiros referentes à privatização da TAG. A Petrobras, em vez de problema, é a solução para se ter baixas tarifas de transporte de gás natural por gasodutos que já estavam praticamente amortizados”. A ausência de regulação tem sido utilizada para justificar a venda disfarçada de ativos sem autorização legislativa, sem licitação e sem atendimento ao interesse público.

O senador Prates considera “espantosa” também a iniciativa da Petrobras de comprometer-se no Conselho Administrativo de Defesa Econômica a vender 8 das 13 refinarias responsáveis por 50% da sua capacidade de refino em troca de o órgão regulador arquivar uma investigação sobre possível prática de abuso de posição dominante no segmento de refino. “Fui advogado da Petrobras, trainee da empresa no tempo em que se era obrigado a recorrer até a última instância, porque era administração pública. Jamais poderíamos chegar ao que fizeram agora. Não consigo entende, o Cade abriu um processo estimulado por uma associação de importadores de combustíveis surgida no ano passado, justamente os mais beneficiados hoje com a política de preços dolarizados de combustíveis do governo, que estão ganhando com a importação de derivados e levaram as refinarias a trabalhar com só 60% a 70% da capacidade. Esses importadores estimularam o Cade a tomar medida contra a companhia por atitude anticompetitiva. E o governo, em vez de buscar parceiros internacionais para fazer upgrade de refinarias ou dizer para esses importadores construírem a própria refinaria, entrega, imola oito refinarias. É metade da capacidade de refino do País. Que diabo é isso? Como é que se pode fazer um negócio desses? Eu fico indignado.” O senador Jaques Wagner disse também achar “um absurdo, porque, quando você oferece oito refinarias, a tendência é de queda de preço. Ninguém oferece logo oito para venda. Na verdade, você deveria valorizar o ativo”. 

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