Economia

Vale rasgar a Constituição para aprovar a reforma da Previdência?

O projeto passa na CCJ com dados sob sigilo, propaganda enganosa e promessa de milhões

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Favorecida por ocultamento de informações fundamentais, propaganda enganosa e promessa de liberação de 40 milhões de reais em emendas para cada parlamentar que a apoiar, a proposta de reforma da Previdência do presidente Jair Bolsonaro e do Ministro da Economia Paulo Guedes foi aprovada com esbanjamento da “velha política”, que o capitão diz combater, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara na terça-feira 23, apesar de afrontar a lei máxima do País, denunciam vários especialistas.

Esquentou o debate sobre a Previdência na CCJ (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr)

A eventual vitória do projeto no Congresso traria mais um troféu infausto para o Brasil, o de maior violador mundial do Estado de Bem-Estar social desde 1983, quando os Estados Unidos, com Ronald Reagan na Presidência e Alan Greenspan no comando da Seguridade Social, desviaram os recursos da área para outros gastos do governo, a exemplo do complexo industrial militar.

A manipulação persiste até hoje e foi considerada na época o golpe mais duro contra a seguridade social criada na Alemanha em 1881 pelo primeiro ministro Otto von Bismarck e implantada nos EUA em 1935 no New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt.

Um cheiro forte de trapaça espalhou-se desde a revelação no domingo 21 de que o governo impôs sigilo aos estudos e pareceres técnicos que embasaram a Proposta de Emenda à Constituição para reforma da Previdência. À notícia da manobra, admitida pelo Ministério da Economia na justificativa apresentada para não atender ao pedido da Folha de S.Paulo de acesso à documentação que fundamentou o projeto, foi seguida de protestos nas redes sociais, inclusive de pessoas que, apesar de prejudicadas pela mudança pretendida, a reconheciam como necessária, “mas agora não, pois se precisa de sigilo é porque alguma coisa não é honesta”, como disse um internauta.

Entre as informações mais importantes que foram escondidas da população estão as planilhas com a memória de cálculo, indispensáveis para conferir se as projeções utilizadas são confiáveis, alerta o economista e consultor Amir Kahir: “Quando o governo quer fazer uma lei que vai atingir a sociedade, a Lei de Responsabilidade Fiscal torna obrigatório apresentar o impacto fiscal das medidas pretendidas com total transparência, dando ampla divulgação aos estudos que elaborou com informações detalhadas sobre a metodologia, as premissas e a memória de cálculo adotadas. Isso se aplica à proposta de reforma previdenciária, que atinge a maioria da população, reduzindo direitos dos que irão se aposentar, bem como dos que já estão aposentados e os pensionistas, pois acaba com o reajuste anual pela inflação previsto na Constituição de 1988. Basta alguns anos sem corrigir os benefícios pela inflação para arrochar os ganhos de todos os atuais beneficiários da Previdência Social”, sublinha Kahir.

A reforma não interessa ao governo, o que ele quer é destruir o modelo social da Constituição

A adoção da trapaça como método fica evidente também na publicidade veiculada na televisão e outras mídias. “A propaganda do governo e de apoiadores leva a acreditar que a situação dos mais pobres melhorará com a mudança da Previdência. Uma peça de marketing do Partido Novo de Minas Gerais compara indevidamente, entretanto, o valor médio de benefício hoje, de 1,2 mil reais, com o valor máximo após a reforma, de 1,8 mil reais, de modo a parecer que o valor da aposentadoria vai aumentar”, dispara o economista e consultor Eduardo Moreira, do Rio de Janeiro.

Outra fake news foi disparada por Paulo Guedes ao afirmar que o Brasil gasta 700 bilhões de reais com a Previdência e 70 bilhões com a Educação. “O ministro misturou os três níveis, o regime geral, o dos militares e o dos servidores, mas o erro mais grave foi dizer que, do gasto com educação, 1,5% do PIB provém do governo federal e a maior parte dos estados e municípios. Já gastamos 5,5% do PIB com educação e 8% com previdência, então não é verdade que esta utiliza dez vezes mais recursos que a primeira. Ele usa isso para ameaçar que, se não se fizer a reforma, não vai ter dinheiro para educação”, critica o economista Eduardo Fagnani, da Unicamp.

É muito importante ficar claro, sublinha Moreira, que ninguém terá, com a mudança pretendida, uma condição melhor de se aposentar do que tinha antes. “Mesmo aqueles que pagarem uma alíquota 5 reais mais baixa todo mês, terão que contribuir por muito mais anos. Outro ponto é que o governo deixa escondido no item 50 da PEC que considera rico quem ganha 2,2 mil reais de aposentadoria em média. No último item da PEC, vê-se que 84% da economia de 1,1 trilhão que se buscará com a reforma vem do Regime Geral da Previdência Social, do Benefício de Progressão Continuada e abono salarial. Como há servidores que ganham até três salários mínimos (2.862 reais) de aposentadoria, esse número provavelmente é superior a 90%.”

O descenso: entre Greenspan nos EUA em 1983 e Guedes no Brasil em 2019, movimentos sombrios e trapaças para acabar com a proteção dos mais frágeis

O governo diz que com a aprovação da reforma os empresários voltarão a investir e a gerar empregos, mas não leva em conta a existência de elevada capacidade ociosa nas empresas, o que torna o investimento desnecessário, nem o desemprego elevado e crônico que retira poder aquisitivo dos consumidores, e portanto retrai as vendas de produtos e serviços. “Desde outubro entoa-se o mantra de que o País está parado porque a reforma da Previdência não anda. Não é verdade, em primeiro lugar porque nada vai ser alterado nos orçamentos dos próximos anos, pois as despesas com aposentadoria são direitos adquiridos e já estão dadas. Além disso, só sairemos do chamado desequilíbrio fiscal na hora em que o País voltar a crescer”, destaca Paulo Kliass, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e especialista em políticas públicas.

Outro aspecto importante, prossegue, é que, ao contrário da versão propalada por Brasília, não são os beneficiários da Previdência Social que estão quebrando o país, pois 99,2% deles recebem um salário mínimo por mês e cerca de 80% dos benefícios urbanos são inferiores a quatro salários mínimos. “O trabalhador ganha 3,6 mil reais por mês e é rico? Os verdadeiros privilegiados não estão no sistema previdenciário, a exemplo daquele punhado que não paga impostos sobre lucros e dividendos”, chama atenção Kliass, que acrescenta: a reforma não toca na questão das receitas nem no problema da maior conta deficitária, a de pagamento de juros da dívida pública.

O governo não quer fazer a reforma da Previdência, mas destruir o modelo social constituído a partir da lei máxima do País instituída pela Assembleia Nacional Constituinte presidida por Ulysses Guimarães de 1987 a 1988 e que passou a ser torpedeada no ano seguinte, no período FHC, chama atenção Fagnani, da Unicamp. A Previdência, diz, desde o final do século XIX na Alemanha é financiada pelo chamado modelo tripartite no qual contribuem empregados, empregadores e governo, este através de impostos gerais. Na Europa, a partir da Segunda Guerra Mundial, esse modelo foi ampliado para vários países e desde 1945 se espalhou, no chamado Estado de Bem-Estar Social.

A ideia é que se tenha uma proteção social em geral ligada à Previdência, à Saúde, à Assistência Social e ao seguro-desemprego. No Brasil o modelo tripartite foi instituído em 1933 com a criação do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos. Os institutos de aposentadoria e pensão organizados por setores profissionais na década de 1930 funcionavam naquele sistema, que prosseguiu nos anos 1950 e 1960 quando foi feita uma reforma e continuou em vigor inclusive na ditadura de 1964.

“Nos anos 1970 houve o chamado milagre econômico, quando a economia chegou a crescer 14% ao ano e por causa disso as contribuições do empregado e do empregador eram suficientes para financiar a Previdência. O chamado déficit surgiu quando o governo perpetuou a não contabilização da sua parte, que foi, entretanto, desnecessária só naquele período de excepcional crescimento econômico”, critica Fagnani. Os constituintes de 1988, prossegue, deram status constitucional ao sistema tripartite, inspirados na experiência europeia. O artigo 194 da Constituição diz que a seguridade é formada pela Saúde, Previdência e Assistência Social e o artigo 195 estabelece que seu financiamento provém de contribuições do empregado, do empregador e do governo. Além disso, foram criadas duas fontes de financiamento, a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social, o Cofins, e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.

Marcha a ré: a CCJ comemora a primeira aprovação de um projeto que representa o maior retrocesso mundial desde 1983

“Acontece que desde 1989, sob FHC, a Previdência não contabiliza a parte de contribuição do governo no modelo tripartite e, assim, provoca-se o déficit, originado de um descumprimento da Constituição. “O senador do PSDB, Almir Gabriel, que foi o relator do capítulo da Seguridade Social, disse que o governo estava usando parte do Cofins, por exemplo para pagar pensionistas da União, que sempre foram remunerados com recursos do Tesouro Nacional”, sublinha Fagnani.

Os desvios de finalidade iniciados sob FHC seguiram o mau exemplo da manipulação operada por Greenspan nos EUA, mencionada acima. “Coube ao presidente Ronald Reagan o empenho, por décadas, para minar a Seguridade Social e introduzir novos dispositivos retóricos que levaram outros inimigos do Estado de Bem-Estar Social, a exemplo dos bilionários irmãos Koch e do ex-secretário do Comércio do governo de Richard Nixon, o ubíquo banqueiro de investimentos Peter G. Peterson, a elaborar e difundir continuamente campanhas de propaganda concebidas para destruir a Seguridade Social plantando e cultivando a noção de “insustentabilidade do sistema”, dispara Eric Laursen, criador e editor da revista Plan Sponsor, voltada para administradores de fundos de pensão.

O redirecionamento de recursos destinados à seguridade começou com FHC e não parou mais

A manipulação da previdência estadunidense é considerada por alguns economistas como o marco fundamental da violação do Estado de Bem-Estar Social. Segundo Allen W. Smith, professor emérito de economia da Universidade Eastern Illinois, Greenspan, nomeado presidente da Comissão Nacional de Reforma da Seguridade Social de 1982, recomendou um aumento significativo na tributação das folhas de pagamento para gerar superávits previdenciários para os próximos 30 anos, a fim de formar uma grande reserva no fundo fiduciário que poderia ser retirada durante os anos posteriores à geração de déficits pela Previdência.

Assim que os primeiros superávits começaram a surgir, em 1985, o dinheiro foi, contudo, colocado no fundo de receita geral e gasto em outros programas do governo. Nenhum dos excedentes foi poupado ou investido em ativos para gerar rendimentos e com isso pagar as aposentadorias. O excedente da receita da Seguridade Social, pago pelos trabalhadores, foi usado para substituir a receita governamental perdida por conta dos grandes cortes de impostos de renda de Reagan na fracassada política denominada supply side economics, de redução da tributação dos ricos na presunção de que com esse estímulo eles investiriam mais e gerariam empregos.

“A prática de usar cada dólar do excedente da receita da previdência social para os gastos gerais do governo continua até hoje. O aumento do imposto sobre a folha de pagamento de 1983 gerou aproximadamente 2,5 trilhões de dólares em receita excedente da previdência social que deveria estar no fundo fiduciário para pagar os benefícios de aposentadoria dos nascidos no baby boom (período de grande aumento da população nos EUA e em outros países entre 1946 e 1964), mas o fundo está vazio! Não contém ativos reais. Como resultado, o governo em breve não poderá pagar todos os benefícios sem um aumento de impostos”, alerta Smith.

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