Economia

São Bernardo, a Ford e uma indústria que se recusa a caminhar sozinha

Fechamento de fábrica inaugurada em 1967 marca o fim de uma era na cidade que já foi considerada a ‘Detroit brasileira’

Pegos de surpresa por fechamento, metalúrgicos esperavam que a Ford voltasse atrás (Foto: Adonis Guerra/SMABC)
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A operação fabril da Ford em São Bernardo do Campo está com os dias contados. Por abrir mão do segmento de caminhões, a empresa decidiu fechar a fábrica adquirida em 1967. O efeito em cascata deve acabar com 24 mil empregos.

Primeira fábrica brasileira da empresa, o lugar é o berço das lutas operárias do ABC Paulista. Lá aconteceram algumas das greves mais importantes dos anos 70 e 80. Para o professor José Dari Krein, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit/Unicamp), a queda da Ford é um símbolo do ocaso desse movimento.

“Não dá para pensar em redemocratização, em nenhum lugar do mundo, sem a participação dos movimentos organizados de trabalhadores. Empresas americanas, como a Ford, nunca tiveram tradição de conselhos de trabalhadores. No Brasil, o movimento sindical construiu essa tradição.”

Greve dos ‘golas vermelhas’ na Ford de São Bernardo (Foto: Roberto Parizotti/CNM/CUT)

São Bernardo já foi considerada a Detroit brasileira: sediou a Kharmann-Ghia, Scania, e Mercedez-Benz (essas últimas ainda funcionando). Enquanto a cidade americana ruiu após a crise de 2008, São Bernardo caminhou para uma economia de serviços. Mas a indústria de metal-mecânica ainda concentra boa parte dos empregos: 30%, segundo dados da Prefeitura.

A decisão da Ford pegou de surpresa prefeito, sindicato e trabalhadores. Líderes do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC vão aos Estados Unidos tentar reverter o fechamento. Doria e o prefeito Orlando Morando, também tucano, buscam vender a unidade fabril deixada para trás.

A sede de São Bernardo chegou a ter 10 mil funcionários nos anos 80. Agora, tem pouco mais de 4 mil e é considerada ultrapassada – é mais barato construir uma fábrica nova do que modernizar uma planta antiga. O Dieese calcula um prejuízo total, incluindo na conta todos os componentes possíveis, de 3 bilhões com a saída.

Krein aponta que, com o temor do desemprego, o poder de negociação dos sindicalistas é menor. “O setor automotivo é cada vez mais guiado pela satisfação de acionistas. Desde a crise de 2015, os sindicatos vêm fazendo concessões, admitindo congelamento de salários. Agora, a fábrica saiu sem fazer nenhum tipo de acordo.”

A produção ficará concentrada em Camaçari, na Bahia, onde são produzidos os carros mais vendidos da empresa. Há ainda uma terceira planta, em Taubaté (SP), que fabrica autopeças – que iam principalmente para a fábrica do ABC.

Contra o fechamento de mais fábricas e vagas de emprego, Krein defende o fim da concorrência predatória, muitas vezes até entre unidades de uma mesma montadora. “A solução é manter um contrato nacional único. Os sindicatos até tentaram, mas não conseguiram estabelecer esse acordo.”

Indústria protegida

Leia também: A hora de rever os incentivos aos automóveis

A medida faz parte de um plano da empresa para manter a lucratividade na América do Sul. Segundo a Ford, essas operações trouxeram prejuízo de 4,5 bilhões de dólares nos últimos cinco anos. Para continuar no mercado, dizem, seria preciso investimentos que tornariam inviável “um negócio lucrativo e sustentável”.

Há cerca de um mês, a GM também ameaçou deixar o Brasil se não voltar a ter lucro. As plantas de São Caetano e São José dos Campos seriam as primeiras a fechar, mas o governo paulista, sob a batuta de Henrique Meirelles, costurou um acordo com fornecedores da marca e prometeu incentivos fiscais a partir de 2023.

Trabalhadores estão em greve desde o anúncio de encerramentos das atividades da Ford (Foto: Adonis Guerra/SMABC)

Para o economista Fernando Sarti, especialista em indústria automobilística, o fechamento é, em grande parte, fruto de um movimento global. Com a explosão chinesa no mercado de automóveis (em 10 anos as vendas saltaram de 1 milhão para 30 milhões por ano) e as mudanças tecnológicas, as montadoras perderam o interesse na América Latina. Ou melhor: nunca tiveram.

O setor sempre dependeu de fortes incentivos do governo. Só no ano passado, a união transferiu 18,7 bilhões aos fabricantes de automóveis. Se por um lado a pujança industrial reflete facilmente no PIB, de outro, o excesso de benesses acostumou mal a indústria, que se recusa a andar com as próprias pernas.

“No Brasil, os líderes de mercado não são exatamente os líderes internacionais. A própria Ford vem perdendo espaço há tempos. Entre 2003 e 2013, o setor cresceu mais de 10% ao ano. E nem com esse dinamismo houve um volume significativo de investimentos”, diz.

Sarti acredita que programas como o Inovar-auto e o Rota 2030 falharam ao não cobrar mais contrapartida em tecnologia – o investimento em P&D (pesquisa e desenvolvimento) das montadoras no Brasil é três vezes menor que a média mundial. “Enquanto o mundo fala em carro elétrico, ainda estamos presos à tecnologia flex.”

Outro fator que pesa é a guerra fiscal: além da barafunda com PIS, Cofins, ICMS, cada montadora pode negociar isenções com estados e municípios. “Esse leilão é bom para as montadoras. Mas, do ponto de vista público, é um horror. Há prejuízos políticos, fiscais…. Deveria haver certo controle”, sugere Sarti.

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