Economia

Rubens Ricupero: “Quem socorreu Bolsonaro não foi o Trump, foi o Xi Jinping”

Ex-embaixador diz que o Brasil abre mão de defender o interesse nacional ao colocar como seu princípio fundamental o alinhamento com os EUA

O diplomata Rubens Ricupero
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Rubens Ricupero prefere a honestidade intelectual à conveniência das relações pessoais. Crítico de primeira hora do governo Bolsonaro – e de sua política externa –, o ex-diplomata foi aconselhado por amigos a moderar o tom para não atrapalhar o projeto ultraliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes. A bem do debate público, ignorou os conselhos. Na noite da segunda-feira 25, Ricupero dividiu a mesa com o ex-chanceler Celso Amorim em um seminário sobre os protestos na América do Sul, iniciativa de CartaCapital e do clube do livro Panaceia. No dia seguinte, concedeu esta entrevista à revista, na qual trata das revoltas populares no continente, dos impasses da economia global e, claro, da política externa brasileira, dominada, segundo ele, por uma franja de lunáticos. 

CartaCapital: Como o senhor definiria a política externa brasileira?

Rubens Ricupero: É uma política alienada em relação ao Brasil e ao mundo, e que causa prejuízos crescentes ao País, inclusive nas áreas econômicas de interesse do governo, desse projeto ultraliberal de comércio e exportação. Ela é alienada no sentido próprio do termo. Uma política externa correta tem de partir de uma percepção justa da realidade do mundo e do seu próprio país. A brasileira tem uma percepção distorcida do mundo, vê uma ameaça aos valores da civilização judaico-cristã, provocada por forças obscuras como o globalismo da ONU, que quer impor, segundo essa versão, políticas de gênero, de tolerância e até de fomento à homossexualidade, ao aborto. Além disso, enxerga a ameaça do tal marxismo cultural. Essa visão de mundo vem de Olavo de Carvalho e é muito parecida com aquela do Stevie Bannon, o que nos Estados Unidos se chama de lunatic fringe, a franja lunática. Uma das características dessa visão é ser antirracional, anti-iluminista e anticientífica. Quando se parte de um pensamento desse tipo, as conclusões serão necessariamente equivocadas, pois o mundo é bem mais complexo.

O cristão Ernesto Araújo, o guru Olavo de Carvalho e Eduardo Bolsonaro, aquele que não foi

CC: Como explicar a submissão aos Estados Unidos?

RR: Trata-se de ideologia inteiramente alienada e distorcida. O Ernesto Araújo insiste em enxergar em Trump o defensor do Ocidente cristão, coisa que o próprio Trump jamais se propôs a ser. O Brasil, ao colocar como seu princípio fundamental o alinhamento com os EUA, abre mão de defender o interesse nacional. De maneira geral, aqueles que apoiam a agenda liberal do Guedes veem o alinhamento com Washington como uma maneira de amarrar essa agenda. Esses interesses têm, no entanto, certos limites, pois os principais mercados brasileiros estão na China, nos países árabes, no Irã. Até certo ponto, alguns setores nacionais perceberam excessos. Bolsonaro queria ceder bases militares aos EUA, mas o Exército não deixou. O agronegócio impediu a saída do País do Acordo de Paris. Depois de provocar a China no início do mandato, ele se valeu de Pequim para salvar o leilão do pré-sal. Não fossem as estatais chinesas, teria sido um fiasco absoluto. Quem socorreu Bolsonaro não foi o Trump, foi o Xi Jinping.

CC: Mas a submissão permanece. Ou não?

RR: Durante a visita do Bolsonaro a Washington, uma das coisas mais perniciosas foi o Brasil ter buscado e ter se regozijado com o status de um dos principais aliados dos Estados Unidos fora da Otan. Aqui, tentou-se vender isso como apenas uma vantagem para comprar armamentos, acesso a informações… Não é. A palavra aliado significa tomar partido de um contra outro. Neste caso, seria o partido dos EUA contra quem? A China. Até o momento essa escolha não se traduziu em nada concreto, pois os próprios americanos negociam com os chineses, em busca de uma solução para um impasse não só no comércio, mas no avanço tecnológico. Quem dominar a tecnologia 5G, da inteligência artificial, dos robôs, da computação quântica, da internet das coisas, vai dominar o conflito estratégico militar.

CC: Uma derrota de Trump e a eleição de um democrata, partido não muito simpático a Bolsonaro, tornaria de vez o Brasil um pária internacional?

RR: Párias já somos, infelizmente. A maneira como o Brasil tem votado no Conselho dos Direitos Humanos em Genebra, contra os palestinos e a favor das sanções a Cuba, deixa suas marcas. O estigma de um país que se alinha automaticamente aos EUA está posto. Que interesse o Brasil tem em comprar brigas que não são as nossas? A agenda americana hoje em dia não coincide com a brasileira. Eles buscam o antagonismo com a China. Sem falar nos atritos dos EUA com a Rússia ou a hostilidade em relação ao Irã. Se mudar a situação dos Estados Unidos, e eu espero que mude, sobretudo pelo fato de Trump ser uma ameaça à paz mundial, a primeira consequência é que a política externa brasileira vai ficar pendurada na brocha. O único apoio que o governo brasileiro tem é o Trump. As outras apostas sempre foram muito infelizes. Nossa diplomacia tem o dedo podre.

CC: Qual a conexão entre os diversos protestos na América Latina, e em especial na América do Sul?

RR: Há um denominador comum, um estado de insatisfação geral da população com as condições atuais do continente. Não creio que se trate apenas de um fenômeno da América Latina. Existe no mundo um sentimento de mal-estar, de insatisfação. Lembro-me de uma famosa definição de Antonio Gramsci: estamos na situação em que o velho não acaba de morrer e o novo não consegue nascer. O sistema é incapaz, pela sua própria lógica, de trazer uma solução aos três problemas cruciais da humanidade, a mudança climática, provocada pela própria lógica produtivista, o desemprego estrutural, que vai se agravar com a inteligência artificial, com os robôs, e, finalmente, a tendência ao crescimento da desigualdade. Isso se deve, sobretudo, ao domínio da economia pelas finanças, pelos mercados financeiros. Como mostra a Oxfam, 12 indivíduos têm uma fortuna equivalente a 3 bilhões e 500 milhões de seres humanos. E essa insatisfação começou lá atrás, em 2008.

CC: Naquele momento, muita gente acreditou que seria o enterro do neoliberalismo. Mas ele prosperou desde então.

RR: E quem pagou o preço foi a população. Nos Estados Unidos, nenhum dos autores desse descalabro foi para a prisão. Os bancos admitiram a culpa, pagaram multas bilionárias com o dinheiro dos próprios depositantes e ninguém foi punido. Enquanto isso, milhões de americanos perderam suas casas e seus empregos. Um sofrimento anônimo que alimentou a vitória de Donald Trump em 2016. O fenômeno Trump teria sido impossível sem a crise de 2008. Mas isso não deve nos levar a uma interpretação equivocada dos fatos. Os grandes movimentos de mutação acumulam muitas derrotas, até chegar o momento no qual triunfam. No século XIX, quando a grande onda de mutação era a Revolução Industrial, apareceram aqueles subúrbios de operários em Paris, em Berlim, em Milão, e criou-se um novo ator, o operariado industrial, um ator que queria um lugar ao sol. Isso gerou as revoluções de 1830, 1848, a Comuna de Paris de 1871… Todas foram derrotadas. Na Comuna de Paris, milhares foram fuzilados sumariamente. No fim, acabaram por mudar o sistema.

CC: Voltemos à América do Sul. Por que o senhor considera os protestos no Chile os mais relevantes?

RR: Todos os demais, em grau maior ou menor, eram previsíveis, seja em forma de tumultos, seja por mudanças eleitorais. O Chile era visto como exceção. Cresce de forma ininterrupta há mais de 30 anos, com pouca oscilação, um pouco mais, um pouco menos. Além do mais, era um país que, depois do fim da ditadura do Augusto Pinochet, havia assegurado a alternância no poder entre o centro-esquerda e a direita sem que essa alternância alterasse a política econômica de forma substancial. Ninguém suspeitava, a não ser um ou outro, que o Chile tivesse esse potencial de insatisfação acumulada. O que surpreendeu, além da subitaneidade, foi a violência. São mais de 20 mortos. Como se explica? Em parte por causa da repressão, em parte pelo descontentamento acumulado. Viu-se, de repente, tratar-se de uma grande ilusão. Houve crescimento, mas ele promoveu uma concentração muito intensa de renda e riqueza.

CC: A crise no Chile atrapalha a agenda de Paulo Guedes no Brasil?

RR: Os analistas relutam muito em tirar as lições do episódio do Chile e aplicar ao Brasil. São raros os comentários benfeitos, como se deveria ver, mostrando que o que acontece no Chile prova que esse caminho seguido pelo Paulo Guedes é equivocado. No caso do Brasil, vai ser ainda pior, pois o grau de desigualdade aqui é maior, os contrastes regionais são muito maiores. O Chile é um país pequeno, não tem nem 20 milhões de habitantes. Sem investimento público o Brasil não sai desse buraco. A política do Guedes não leva a nada, é um fogo de artifício.

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