Economia

Reforma da Previdência ignora mudanças nos vínculos de trabalho

Buscado por empresários e trabalhadores, o vínculo informal derruba a Previdência

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Ainda que a oposição consiga derrotar no Congresso a proposta governamental de reforma da Previdência, corre sério risco de tropeçar feio no momento seguinte, se continuar ignorando a subordinação da questão às transformações profundas em curso na economia, em especial na indústria, na tecnologia e no mercado de trabalho, sugere um trabalho de José Roberto Afonso e Juliana Damasceno de Sousa, da Fundação Getúlio Vargas – Instituto Brasileiro de Economia. “Tem sido ignorada no País a radical transformação estrutural das relações de trabalho, que começou mais cedo aqui e que afetará diretamente o futuro – tanto na capacidade do poder público em oferecer proteção aos trabalhadores contra sinistros e velhice quanto de custear esse sistema, inclusive dos trabalhadores do passado que se tornaram assistidos ou aposentados. No exterior, discute-se há muito tempo o futuro do trabalho, a ser alterado pela automação e pela economia compartilhada. Até os organismos multilaterais já alertam para a inevitável mudança no contrato ou pacto social”, chamam atenção os economistas no texto intitulado “Previdência sem providência?”

Os autores concordam que é imperioso “promover a proposta de reforma previdenciária clássica, mas cabe reconhecer que esta decorre basicamente de razões fiscais” e não se deveria perder a oportunidade, dizem, de ao menos começar a debater o desafio complexo e cada vez mais urgente de repensar o formato do Estado de Bem-Estar Social e de fortalecer a geração de poupança e o financiamento dos investimentos na economia.

Uma revolução das relações de trabalho afeta a capacidade de custeio do poder público

O desafio, identificado pelos economistas como “terrível empreitada”, abrange todos os países e sistemas econômico-sociais, mas talvez seja mais grave no caso do Brasil, palco de uma das mais rápidas e intensas transformações do emprego formal para trabalho independente como autônomos, microempreendedores e firmas. Uma mudança movida principalmente por “mero planejamento tributário do empregador para driblar ou fugir do maior custo tributário no mundo para empregar com carteira assinada”, o que desestimulou a contratação do trabalhador, que terminou por se transformar em pessoa jurídica. A crescente digitalização, que possibilita trabalhar cada vez mais por empreitada, sem local e horário fixos, acirra a situação e contribui para que os próprios trabalhadores prefiram ser empreendedores a assalariados, o que reforça a propensão dos empresários descrita acima.

As transformações mencionadas já prejudicaram o padrão da Previdência, prosseguem, mas as justificativas apresentadas para reformá-la continuam concentradas em torno dos benefícios e das despesas. Seguir esse caminho é contraproducente, na medida em que a situação só piorará no mundo todo, não apenas pelo crescente trabalho independente como em razão da maciça destruição de emprego que resultará da automação fabril e dos serviços, que são os maiores contribuintes da Previdência Social. “É inevitável o abalo em um dos três pilares do sistema tributário moderno: a massa salarial. Este passará a ser tema central da nova onda de reformas tributárias. Será um problema mundial, mas que afetará muito mais as economias que optaram por construir um aparato de seguridade social mais robusto. Nesse sentido, nenhum outro país emergente o fez de forma tão universal quanto o Brasil, que muito se espelhou no modelo europeu de Bem-Estar Social e dele precisaria se aproximar nos estudos para reforma”, alertam os economistas da FGV-IBRE. Não por acaso, cabe acrescentar, o achatamento brutal dos salários no Brasil é acompanhado neste momento por uma pressão para o Congresso vincular as reformas da Previdência e tributária.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE, o contingente de trabalhadores fora do sistema pleno de proteção social é superior à metade do total. Os empregados com carteira de trabalho assinada respondem por apenas 38,9% da força ocupada. “Mesmo somando 8,5% de servidores públicos, restam 52,5% de ocupados (não contam os desempregados) sem vínculo e sem proteção compatível para o futuro ou infortúnios”, sublinham os autores do estudo.

  

Trata-se de um problema de grandes proporções, pois, além de a maior parte dos empregados que não possuem cobertura trabalhar por conta própria sem vínculo formal, aqueles que trabalham por conta própria mas têm CNPJ apresentam reduzida contribuição para a Previdência. “Entre outras consequências, isso significa também que, quando aprovada alguma reforma da Previdência, enorme contingente de trabalhadores não será afetado. Os empregados com carteira assinada representavam apenas 56% do total de contribuintes Pessoa Física da Previdência Social em 2017”, destacam os economistas.

Ainda mais grave para a sustentabilidade do regime geral de previdência, prosseguem, é o drástico encolhimento do montante de contribuintes (e da correspondente base salarial) com salário acima do teto de contribuição, uma vez que seus empregadores contribuíam sobre o total da folha salarial. “Se em 2017 havia 132% a mais de empregados do que em 1996, isso decorreu exclusivamente do aumento de 158% entre os que ganhavam até 7 salários mínimos, tendo o número de empregados acima desse salário registrado queda de um quarto. Esse descompasso foi particularmente acelerado na recessão, pois em apenas três anos, de 2014 a 2017, enquanto caiu em 11% o grupo de assalariados abaixo do teto, a retração foi de 18% para aqueles acima do teto e entre 20% e 24% acima de 15 salários.”

Segundo os autores do estudo, o debate atual da reforma da Previdência tem omitido que o movimento descrito acima é um dos princípios básicos do regime brasileiro – o da subsidiariedade cruzada –, na medida em que empregadores que pagam salários maiores passaram a financiar cada vez menos aqueles com menores benefícios: “Uma análise da composição de contribuintes empregados por faixa de valor do pós-Constituinte mostra o quão devastadora foi essa mudança trabalhista e social. A participação relativa dos que recebem até três pisos previdenciários quase quadruplicou, enquanto a daqueles com renda superior a dez pisos caiu drasticamente, de 31,5% dos contribuintes para 2,4% do total, entre 1988 e 2017”.

Os economistas consideram que dificilmente esse cenário será revertido na retomada da economia, porque a razão estrutural para a mudança descrita continuará presente: o custo para o empregador de contratar um assalariado. Uma pesquisa realizada pela UHY Moreira-Auditores, prosseguem, comparando 29 países entre desenvolvidos e em desenvolvimento, calculou uma média mundial desses custos em 20,5% do salário pago, com viés recente de queda, enquanto no Brasil chega a 71,4%, topo do ranking dos maiores encargos trabalhistas. “Dessa forma, não surpreende que contribuições sociais representem quase um terço da receita nacional (32%), colocando o País no mesmo nível de economias desenvolvidas” no que se refere a esse quesito.

Esse quadro sinaliza que, mesmo em uma recuperação do crescimento da economia e do emprego, não será revertido o processo de depreciação da base salarial, sobretudo dada a drástica redução do emprego com altos salários no setor privado. “Dificilmente serão recuperados os contribuintes do setor privado com salários acima do teto de contribuição sem que os respectivos encargos trabalhistas sejam reduzidos. Uma missão impossível quando as propostas de reforma previdenciária mal se contentam em frear a tendência expansionista, quanto mais em lograr reduzir o volume de gasto de tal forma que permitisse diminuir as alíquotas das contribuições previdenciárias sem sacrificar o resultado fiscal”, sublinham os economistas.

No Brasil, mostram pesquisas, 50% das pessoas preferem receber mais como autônomos, sem benefícios trabalhistas e com impostos mais baixos, enquanto só 43% optam por carteira de trabalho assinada, com os benefícios trabalhistas e pagando impostos mais altos. “Se o Brasil tem hoje mais trabalhadores independentes do que com carteira assinada, isto é, se os desprotegidos já superam aqueles plena e adequadamente cobertos pela Previdência, o mundo do trabalho na era digital tornará ainda mais complexo repensar o padrão de financiamento e de organização da seguridade social”, analisam os professores da FGV-IBRE.

Em termos individuais e privados, alerta o estudo, os mais ricos e até mesmo a nova classe média precisarão buscar proteção poupando para a velhice. “No Brasil, no entanto, em que pese pouparem muito comparado à renda domiciliar, proporcionalmente pouco o fazem aplicando a longo prazo. Já o poder público precisará alargar e vincular a reforma previdenciária à tributária. A Constituinte de 1988 já inovou ao acrescer faturamento, lucro e loterias ao lado de salários para financiar a seguridade social como um todo, mas isso se revelou insuficiente pelo deslocamento das tendências de pressão de gasto da Previdência vis-à-vis o desempenho da tributação da base salário.”

A falta de preocupação ou a atenção insuficiente por parte de opositores do projeto do governo em relação a transformações fundamentais em curso na economia, conforme o exposto por José Roberto Afonso e Juliana Damasceno de Sousa, estende-se com frequência a conexões entre políticas de governo e a reforma da Previdência. É o que mostra este trecho de uma análise do Nobel de Economia Lawrence Summers e de Łukasz Rachel publicada em edição anterior desta revista, sobre a relação entre a política monetária de juros baixos adotada no mundo nas últimas décadas e as aposentadorias: “São muitas as preocupações a respeito dos efeitos tóxicos das baixas taxas de juro, incluindo aquelas que sugerem bolhas e alavancagem excessiva, na medida em que encorajam a tomada de risco e a má alocação de capital ao reduzir o custo do endividamento e as taxas de retorno requeridas, reforçar o poder de monopólio, beneficiar os mais velhos em prejuízo dos mais jovens ao tornar mais difícil o funding da seguridade social para os novos entrantes”.

Outra questão que, apesar das suas graves implicações políticas, não parece estar nos cálculos de opositores do projeto do governo é a relação profunda entre a alegada dívida da Previdência, o endividamento geral do governo e a postura do seu principal credor, o sistema financeiro, revelada nestas considerações de Wolfgang Streeck, do Instituto Max Planck, da Alemanha, no texto The Politics of Public Debt – Neoliberalism, Capitalist Development, and the Restructuring of the State: “A política da dívida pública pode ser concebida em termos de um conflito distributivo entre credores e cidadãos. Ambos têm reivindicações sobre fundos públicos na forma de direitos contratuais-comerciais e político-sociais, respectivamente. Em uma democracia, os cidadãos têm a possibilidade de eleger um governo receptivo às suas sugestões, mas ‘irresponsável’ do ponto de vista dos mercados financeiros, no caso extremo, um governo que expropria seus credores, anulando sua dívida. À medida que a dívida acumulada aumenta e os investidores são instados a ter mais cuidado sobre onde depositam seu dinheiro, os credores buscarão garantias de que a expropriação não acontecerá com eles; com efeito, que as suas reivindicações terão sempre prioridade sobre as dos cidadãos, por exemplo, dos aposentados que exigem a aposentadoria que o Estado e os empregadores lhes prometeram quando eram trabalhadores”.

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