Economia

Reforma administrativa é tentativa de destruir o setor público, avaliam especialistas

Governo enviou PEC ao Congresso Nacional. Para José Celso Cardoso Júnior, do IPEA, ‘a proposta é um choquezinho liberal dos anos 1990’

Foto: Marcos Corrêa/PR
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A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) encaminhada pelo governo ao Congresso na quinta-feira 3, da reforma administrativa, poderia ser chamada também de “ajuste fiscal, o retorno”. O motivo dessa dupla identidade é que a PEC visa quase que exclusivamente reduzir gastos correntes por meio da quebra da estabilidade funcional para fins de demissão, um expediente para rebaixar as remunerações dos atuais servidores e os salários das novas contratações, motivo de alguns a considerarem apenas, ou principalmente, um novo capítulo da política de austeridade fiscal permanente de Paulo Guedes.

Além de pôr em risco as condições fundamentais exigidas para o exercício das funções dos servidores ao extinguir a estabilidade, não responde à necessidade de aprimorar o serviço público, não reduz a burocracia nem enfrenta o autoritarismo crônico na relação entre os funcionários e o público. Tampouco reduz o custo da máquina do Estado, segundo especialistas. Não bastasse, contém mais uma excrescência governamental, a outorga de poderes arbitrários adicionais ao presidente da República por meio da inserção na Constituição de dispositivo que completa a submissão ao mercado, conforme se esclarecerá adiante.

A republicanização e a redemocratização do Estado deveriam ser os eixos de qualquer reforma que se pretenda fazer, defende José Celso Cardoso Júnior, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e presidente da Associação Nacional de Funcionários da instituição.

A reforma atual é, no entanto, “uma perfumaria, um choquezinho de gestão da linha gerencialista liberal dos anos 1990, que obviamente não vai melhorar em nada o desempenho, a relação do Estado com a sociedade nem alargar as possibilidades de cobertura das políticas sociais, nem diminuir desigualdade nenhuma, pelo contrário, vai aumentar. A proposta em essência é retirar o Estado das políticas públicas e tornar o servidor mais vulnerável para cumprir as missões institucionais das organizações que foram criadas ou fortalecidas da Constituição de 1988 para cá”, analisa.

O fim da estabilidade é a derrubada da última muralha de proteção do funcionário contra o assédio institucional caracterizado, segundo associações profissionais do setor, por recorrentes ameaças, cerceamentos, constrangimentos, desautorizações, desqualificações e deslegitimações do trabalho do servidor público e que se tornou a forma dominante de relacionamento entre distintas instâncias ou organizações hierárquicas em cada poder da União e entre chefias e subordinados. Um comportamento de várias autoridades liderado pelo próprio presidente da República, quando persegue o funcionário do Ibama que o multou por pesca ilegal em 2012 em Angra dos Reis, e provoca a demissão do presidente do Inpe, Ricardo Galvão, no ano passado, por ter cumprido com a sua obrigação funcional de retratar as queimadas na Amazônia, entre inúmeros exemplos.

A conduta lamentável ocorre também no uso de fiscais municipais pelo prefeito Marcelo Crivella, do Rio de Janeiro, para intimidar usuários de serviços de saúde, nas seguidas ofensas lançadas pelo ministro da Economia Paulo Guedes à categoria, composta, segundo ele, de parasitas, merecedores de “uma granada no bolso”, ou na humilhação imposta pelo desembargador Eduardo Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, a um guarda civil municipal de Santos que o multou por não usar a máscara obrigatória para reduzir o risco de transmissão da Covid-19. Não é difícil imaginar que uma escalada ainda maior de desmandos seria a consequência inevitável da pretendida derrubada da estabilidade dos servidores.

“A imposição de um serviço público sem estabilidade, sem carreira, sem vínculo e com retorno ao clientelismo e ao coronelismo do início do século XX significará a transformação perfeita de crime em modelo”, sintetiza o sindicato dos professores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul. Não há dúvida, prossegue a entidade em editorial, quanto ao interesse de Bolsonaro em extinguir órgãos como Incra, Ibama e ICMBio, os quais tem criticado por exercerem suas funções legais.

“Esse projeto não é sério, a não ser no sentido de que encaminha a destruição do Estado e de que protege a elite do funcionalismo”, pondera o economista Sérgio Mendonça, ex-secretário de Recursos Humanos do serviço público federal de 2003 a 2007 e de 2012 a 2016. Caso seja aprovado como está, diz, praticamente tira os principais incentivos para ser servidor que são a estabilidade e a aposentadoria integral. Com a reforma da Previdência e o fim da estabilidade, elimina-se o poder de o Estado atrair quadros mais qualificados. Se o funcionário pode ser demitido como qualquer trabalhador do setor privado, relutará em fazer concurso público, onde a atividade é mais engessada, burocratizada e a responsabilização é grande. “É um projeto confuso, mais voltado para o curto prazo, para a questão fiscal e o mercado, mas é evidente que é necessário discutir a avaliação do desempenho, com mais seriedade, no serviço público”, ressalva Mendonça. “Isso é importante, e não é uma questão liberal não, acho que a esquerda tem de defender isso. Porque é dinheiro público que está ali.”

Os cidadãos precisam de acesso, diz, aos dados e a defesas céleres em relação ao serviço público e é necessário aumentar muito a transparência. “A população não tem uma boa imagem do serviço público. Não vamos negar, não vamos tapar o sol com a peneira. É possível melhorar, ter um Estado a serviço do público, da redução das desigualdades de renda e regional, com instrumentos para fazer essas políticas públicas.” É dispensável, prossegue, uma estabilidade rígida para todos, como certamente auditores fiscais, procuradores, juízes e outros precisam. Caberia, portanto, uma gestão mais flexível.

Quanto à questão de em quais áreas se quer atrair e reter quadros no Estado, dependeria “da concepção que está por trás”. Nos governos do PT, houve concurso público para 250 mil vagas, dos quais 60% na área da educação, em universidades e institutos federais. “Queríamos fortalecer o Estado por esse viés. Então havia uma concepção”, sublinha o economista.

Não há garantia de que a proposta do atual governo tenha efeito apenas para as próximas contratações e nenhuma repercussão nos funcionários hoje na ativa. “A reforma atual pode diminuir gastos no meio do caminho, nas fases II e III, propor tabelas salariais, formas de progressão, de avaliação de desempenho, enfim, as questões que ainda não apareceram na PEC. Nesse caso, teria algum efeito sobre o funcionalismo que está aí”, diz Mendonça.

Segundo Francisco Gaetani, coordenador do mestrado profissionalizante em Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, a reforma administrativa é um desafio permanente em todos os governos, inclusive em outros países. “A sociedade muda, os valores mudam, a tecnologia evolui, o mundo se transforma e é natural que todos os governos estejam buscando continuamente se reestruturar”, afirmou Gaetani durante encontro da Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa que discutiu o engajamento e a valorização do servidor público.

Um indício da existência de consenso quanto à necessidade de aprimoramento é a ampla aceitação de pontos integrantes da atual proposta de reforma como o fim da aposentadoria compulsória de servidores como modalidade de punição, a proibição de promoções ou progressões na carreira exclusivamente por tempo de serviço e o veto a mais de 30 dias de férias por ano. O progresso técnico facilita esse aprimoramento.

“Com a digitalização e outros avanços, não há mais necessidade de grandes arquivos e enormes contingentes de pessoal em cargos de níveis auxiliar e médio. A parte desse serviço que será necessário manter com funcionários é possível resolver com jovens. Na nossa administração, pensamos em usar o Enem como porta de entrada. O serviço público é uma oportunidade para os jovens entre 18 e 20 anos de famílias de mais baixa renda, de regiões menos desenvolvidas, que ingressariam no Estado não por meio de concursos ultraelitizados nos quais só os filhos da classe média e alta conseguem passar”, destaca Mendonça. Há rumores de que o governo cogita algo semelhante em uma próxima etapa da reforma.

Um dos pontos mais polêmicos do projeto é a proposta de introduzir no artigo 37 da Constituição, que relaciona os princípios da administração pública, o princípio da subsidiariedade, descartado na Constituinte de 1988. Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, afirma que a ideia nada mais é que a preponderância do setor privado. “O Estado auxiliaria e supriria a iniciativa privada em suas deficiências e carências, só a substituindo excepcionalmente. A atuação do Estado seria a exceção, não a regra.”

Assim como a reforma administrativa tem muito de ajuste fiscal, várias outras PECs encaminham indiretamente a reforma administrativa pretendida pelo governo, sublinha Cardoso Júnior. A estratégia de pulverização de mudanças enfraquece ainda mais a presunção de que a PEC 32 consista em uma proposta merecedora do nome e reforça o seu caráter de mais um movimento rumo à austeridade. “Veja que a reforma administrativa na verdade está em curso. Há várias PECs e medidas infraconstitucionais em curso que vão dando a cara do que quer o atual governo sobre isso. A PEC 188, que vai ser retomada no Senado, é terrível, porque ela não só sugere o corte dos vencimentos dos servidores em 25% como extingue o plano plurianual. É a tal PEC do pacto federativo, que propõe a extinção de municípios, e contém um detalhe importantíssimo, que ninguém está olhando com atenção, uma proposta de mudança do artigo 6º da Constituição, no qual eles pretendem incluir um conceito surreal, que é o equilíbrio fiscal intergeracional.”

Isso seria, segundo o economista, uma das mais graves violações de direitos constitucionais fundamentais do Estado Democrático de Direito no Brasil desde 1988. O artigo 6º da Constituição estabelece os direitos a educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. A modificação proposta pelo governo representa uma “relativização ou severa restrição dos direitos sociais fundamentais ao condicioná-los ao ‘equilíbrio fiscal intergeracional’, mesmo sendo este um pseudoconceito, teórica e empiricamente questionável. Representará uma petrificação das finanças públicas brasileiras, uma verdadeira normalização da exceção, que instalará uma ‘situação de emergência fiscal permanente’, além do teto de gastos”.

O recurso encontrado pelo governo para justificar a presumida necessidade de arrocho incessante distribuído em inúmeras PECs é manipular números para alegar explosão de despesas com o funcionalismo e inchaço do Estado “gastador”. São manobras primárias, mostra a Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente. “Para justificar a reforma, o governo usou a estratégia cherry picking, coleta seletiva de dados que confirmem uma tese, mas sem considerar o todo composto por informações que possam contradizê-las. Como o governo fez isso? ‘Esquecendo’ de descontar a inflação.” Os dados mostrados pelo governo, descreve a Ascema, são de gastos com salários que saltariam de 44,8 bilhões de reais em 2008 para 109,8 bilhões em 2029, mais que dobrando, portanto, nessa conta da entidade, mas, considerada a inflação, caem para 58,8 bilhões. “O governo não quer que os cidadãos saibam que os gastos com servidores aumentaram 31% nos últimos 12 anos, em vez de 145%, uma curva praticamente estável no aumento das despesas com pessoal ativo do Executivo Federal.”

Outras alegações econômicas do governo igualmente não se sustentam, mostra a comparação internacional. A arrecadação tributária, que alegam ser elevadíssima, corresponde a 35,6% do PIB, enquanto na média dos países da OCDE é de 42,4%, segundo dados de 2015 da própria organização. Ao contrário do que alegam, o Estado brasileiro não é inchado. O total de funcionários públicos em relação ao conjunto da população ocupada é de 12%, enquanto nos países da OCDE é quase o dobro disso, 21,3%, de acordo com a mesma fonte. Os salários mais polpudos em relação àqueles da iniciativa privada valem só para um punhado de privilegiados nos três poderes, justamente a parcela poupada pela reforma de Bolsonaro e Guedes. A grande massa de funcionários, 60% a 70%, ganha muito mal, tão mal quanto a maior parte dos trabalhadores do setor privado.

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