Economia

Reconversão industrial avança, mas omissão do governo reduz fôlego

As expectativas quanto ao potencial dinamizador da reconversão aumentaram depois do tombo recorde da produção industrial em abril, de 18%

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Alternativa de aproveitamento da capacidade ociosa para fabricar produtos não disponíveis nas suas linhas, mas com demanda em alta repentina por causa da pandemia, a reconversão industrial para produzir equipamentos e insumos da área da saúde avança no mundo e ajuda a enfrentar a crise no setor manufatureiro. No Brasil, por causa da ausência do governo federal no processo, ficou limita- da, no entanto, a esforços pontuais de empresas e entidades setoriais, relatam profissionais e instituições. O exemplo da WEG, de Santa Catarina, que na quinta-feira 4 anunciou entregas ao SUS de ventiladores pulmonares fabricados no Brasil com índice de nacionalização de 70%, é referência de reconversão bem-sucedida, mas evidencia, ao mesmo tempo, as limitações dos esforços isolados nessa direção.

Os governos de Alemanha, França, EUA, Japão, China e Reino Unido mobilizaram empresas e participantes de seus sistemas de inovação para reconverterem linhas de produção e fabricarem respiradores, ventiladores e equipamentos de proteção individual para seus agentes de saúde e baixaram medidas para remover restrições regulatórias, favorecer a formação de consórcios voluntários, estimular soluções inovadoras e conceder apoio financeiro às iniciativas.

“A WEG é um caso que sempre salta aos olhos e enfatizamos, pois é uma grande empresa brasileira que tem competências tecnológicas importantes”, sublinha Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. A empresa catarinense foi uma das seis brasileiras classificadas entre as 2,5 mil que mais investiram em pesquisa e inovação no mundo em 2018, segundo o Índice Global de Inovação da Comissão Europeia. O contexto geral para a indústria e a inovação ainda é, entretanto, muito negativo, como mostra a última Pesquisa de Inovação do IBGE, ressalta Cagnin. A edição mais recente dessa pesquisa revela que o porcentual de empresas que inovam caiu de 36% para 33,6% do total, entre 2014 e 2017.

Para fabricar ventiladores pulmonares com alto índice de nacionalização, a WEG precisou verticalizar sua produção, isto é, passou a fazer por conta própria vários componentes que em fases de maior vitalidade do setor industrial brasileiro seriam adquiridos de fornecedores locais. Importar não seria uma opção, dada a escassez aguda dos itens necessários no mercado mundial. Trata-se de um problema crônico, como mostra o relatório “A Cadeia de Valor de Máquinas e Equipamentos no Brasil”, de Cristina Fróes de Borja Reis, da Universidade Federal do ABC. Por causa de vários problemas de competitividade e de lacunas no sistema de inovação e no tecido industrial, as empresas brasileiras, principalmente aquelas de bens de capital, são  obrigadas a ter uma organização muito verticalizada, destaca a economista.

A fragmentação das iniciativas de inovação da indústria no País e seu iso- lamento em relação ao resto do mundo, no que se refere à integração econômica, “privam as nossas empresas, até aquelas com características mais evidentes de inovação, da participação em merca- dos, de relacionamento com clientes e fornecedores que tenham também esse componente tecnológico e inovador e que ajudem a impulsioná-las nessa direção”, afirma Cagnin. “É importante lembrar que as inovações mais relevantes surgem da interação entre clientes e fornecedores em determinados segmentos das indústrias, a exemplo das de bens de capital e de química fina, para solucionar problemas de fornecedores e de clientes. É aí que surge a inovação de verdade.”

Contida pelas limitações da estrutura industrial local em crise crônica, a reconversão doméstica diante da pandemia não deslancha. “Conversão industrial concreta, da forma que estamos que- rendo, não aconteceu. Há esforços pontuais, que não vão prosseguir quando as indústrias retomarem a produção habitual. Poderiam, entretanto, dar continuidade à produção de equipamentos e insumos para a área da saúde, pois a ociosidade é muito grande. A falta de coordenação por parte do governo é o grande entrave. Uma atuação governamental deveria incluir um mapeamento nacional, crédito e garantia de compras”, sublinha Wellington Damasceno, diretor de Políticas Industriais do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

As empresas de bens de capital são destaque entre as que realizam conversão industrial e passaram a fabricar, além dos seus produtos típicos, respiradores pulmonares, máscaras, protetores faciais (face shields), leitos hospitalares, peças, partes, componentes e insumos para equipamentos, além de prestar serviços de usinagem, corte a laser de peças, impressão 3D, modelagem e simulações, documenta um levantamento da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos.

A Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) relata exemplos como o da fabricante de máquinas para embalagem Indata, de Palhoça, Santa Catarina, que passou a produzir também peças plásticas usinadas para circuitos de respiradores mecânicos, a pedido de um hospital regional. A Lanmar, de Hortolândia, São Paulo, especializada em usinagem de precisão, tem fabricado conectores para peças utilizadas na produção de respiradores pulmonares pela Embraer. As empresas Flextronics, Bosch, Mercedes, Toyota, ABB, GM, SCM Automação e Omel organizaram-se para produzir subconjuntos e prestar serviços de apoio à KTK, à Magnamed e à Intermed na fabricação de respiradores. A experiência da Festo Brasil, de São Paulo, especializada em soluções para automação industrial, revela quanto a reconversão pode ser vantajosa para o País. As válvulas para respira- dores pulmonares que a empresa paulistana começou a produzir custam metade do preço do produto importado.

Entre as grandes empresas de outros setores destaca-se a Klabin, que, em parceria com o Instituto Senai, desenvolveu um espessante à base de madeira em substituição à matéria-prima derivada de petróleo utilizada para transformar álcool líquido em gel. “A reconversão não vai salvar a indústria nem no Brasil nem no mundo, mas é importante porque ocupa capacidade ociosa e deixa claro que o setor tem condições de dar respostas às demandas da sociedade, que, no momento, precisa de respiradores e outros produtos para o setor da saúde.

O processo poderia ser acelerado com um programa de financiamento do BNDES, compras governamentais ou licitações ou algum tipo de bonificação de imposto para as empresas que fizessem uma reconversão”, defende Cagnin. A opção é relevante também por deixar evidente que a preservação e o fortaleci- mento das competências industriais dos países são estratégicos. “O nosso parque industrial, apesar de ter inúmeros problemas, ainda é o nono do mundo e possui competências tecnológicas e produtivas importantes. É flexível e resiliente o suficiente para dar respostas.”

As expectativas quanto ao potencial dinamizador da reconversão aumentaram depois do tombo recorde da produção industrial em abril, de 18%, o pior da história do setor, segundo o IBGE. A reconversão está em sintonia com as tendências em curso de desglobalização, ruptura das cadeias mundiais de suprimento e sua internalização nos países, redução compulsória da dependência de suprimentos externos e favorecimento da produção e das finanças domésticas. O processo requer apoio ativo do Estado para funcionar, condição aceita nos países desenvolvidos e em emergentes bem-sucedidos, como a China, mas de concretização improvável no caso do Brasil, ainda dominado por políticas econômicas anacrônicas e radicais de austeridade e privatização.

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