Economia

Quem tem medo da falta de espaço fiscal?

Se um governo se endivida é porque os credores confiam na capacidade desse governo de pagar o que deve, uma marca de credibilidade.

Em economia não há respostas fáceis. Um governo pode fazer chuva de dinheiro e nada acontecer com os preços.
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É comum ouvirmos que a falta de espaço fiscal limita a atuação de governos que querem ou precisam gastar. Essa é uma discussão que aparece entre economistas, leigos e jornalistas que se dizem especializados em economia. Refere-se às dificuldades de um governo que precisaria gastar, mas não teria dinheiro e, então, se gastar vai ter que se endividar. E o acréscimo de endividamento público é considerado, a priori, algo como um pecado capital.

Não vale a pena fazer essa discussão apresentando números ou experiências reais. Tudo é tão elucidativo que pareceria não ser verdadeiro. A melhor estratégia é debater no campo das ideias, onde cada um tem sempre um argumento a mais.

Há de se reconhecer que a criatividade e o terror disseminado pelos crédulos na falta de espaço fiscal contaminaram até alguns economistas que se dizem de esquerda, heterodoxos ou desenvolvimentistas.

Em países que possuem a sua própria moeda estatal e que governos podem contrair dívidas nessa moeda, em tese, não haveria limite para o gasto público. Um governo que emite dinheiro, por definição, não pode quebrar tal como uma empresa que depende de receitas. Governos podem imprimir dinheiro e gastar. Isso não necessariamente causa inflação, mas pode causar em casos específicos.

Muitas outras coisas podem causar inflação ou não (como diria ou como dizem que costuma dizer Caetano Veloso). Chuvas excessivas, secas rigorosas, desvalorização cambial, aumento de impostos, aumento do consumo, escassez de energia e mais uma lista enorme podem (ou não) causar inflação. Em economia, é difícil encontramos respostas fáceis e diretas. Um governo pode mandar um helicóptero fazer chuva de dinheiro e nada poderá acontecer com os preços. Talvez somente a produção e o emprego aumentem. Ou nada, absolutamente nada, aconteça.

Um governo pode se endividar e continuar se endividando. Isso não é pecado. É até uma boa necessidade. Se um governo se endivida perante a sociedade é porque os credores confiam na capacidade desse governo de pagar o que deve – é uma marca de credibilidade.

Se a sociedade economiza recursos emprestando para o governo, então o governo pode recomprar esses títulos de dívida que estão em posse da sociedade ou vender mais títulos. Assim, poderá controlar a quantidade de dinheiro na economia. Em outras palavras, o endividamento resultou em um instrumento de controle da liquidez (quantidade de dinheiro) da economia – ou seja, uma boa necessidade, que deve ser mantida.

Quem tem medo da emissão de dinheiro ou do endividamento público são aqueles que não querem que governos governem. Mas não dizem isso, apenas sentem isso. Dizem que a emissão ou o endividamento causam inflação, inibição do investimento privado, fuga de capitais, elevação dos juros, desemprego… malária, febre amarela e tuberculose. Mas, na verdade, pensam que “para governar melhor é preciso governar menos” (essa frase é de 1751 e foi citada por John Maynard Keynes em seu artigo “O fim do Laissez-faire”, de 1926). A pergunta que fica é: governar melhor para quem?

Os que querem que governos governem menos recomendam que governos que não têm espaço fiscal não podem gastar – um mostro chamado falta de espaço fiscal que se utilizado quando não existe poderá causar muitos males à sociedade (desde inflação… à tuberculose). Mas quem diz qual é o tamanho do espaço fiscal é quem quer que o governo governe menos. Não existem números cientificamente definidos, isentos de controvérsias, para limites de endividamento ou para emissão de moeda.

É compreensível que essa falta de espaço fiscal exista e tenha o seu tamanho determinado por quem precisa atar às mãos de governantes. Mas é curioso como até alguns economistas de esquerda, heterodoxos ou desenvolvimentistas reforçam a existência dessa falta de espaço orçamentário – se burlado causará emissão de moeda, mais endividamento e todas as suas consequências. Dependendo da conjuntura da burla, um problema ou outro é mais enfatizado como consequência, pode ser inflação, elevação dos juros ou outro qualquer.

É preciso governar com responsabilidade, inclusive fiscal, no gasto e na arrecadação. E emissão de moeda e de novas dívidas não podem ser consideradas pecados. Mas sim instrumentos que devem ser analisados e utilizados em quantidades e em momentos adequados. Mas sempre haverá espaço fiscal suficiente, a menos em casos absolutamente claros e extraordinários – por exemplo, um país sem moeda estatal e sem capacidade de emitir dívida (e isso é teoricamente possível de ser elaborado e existe na vida real).

Nas últimas décadas, os que querem que governos governem menos foram bem-sucedidos porque fizeram uma disputa inteligente de narrativas, porque repetiram mentiras até que se transformassem em verdades (ou pós-verdades), porque contaram com amplos meios de comunicação como aliados e porque boa parte de governantes ficaram temerosos de serem julgados pelos seus próprios adversários – e se “modernizaram” aderindo às ideias opostas.

Governantes temem receber pedradas dos seus adversários, como uma Geni. E aderem, convencidos por economistas de esquerda, heterodoxos ou desenvolvimentistas – que passam até a formular alternativas ditas não pecaminosas.

Aí é a completa vitória dos que querem que governos não governem, exatamente quando seus supostos adversários fazem aquilo que contraria sua formação política e ideológica original. Mas esses economistas sobem de categoria: deixaram de ser economistas com ideias adversárias para serem economistas chamados de responsáveis – simplesmente porque aderiram à tese de que governos devem governar menos. Serão aplaudidos pela mídia conservadora, mas o país que dirigem ficará parado.

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