Economia

Pré-sal: filé a preço de acém e o Brasil na contramão do mundo

Políticos disputam as sobras e o governo não diz que poderia obter muito mais do excedente da cessão onerosa

O governo ficará com 56% da produção, uma das piores distribuições do mundo
Apoie Siga-nos no

Na quarta-feira 2, a decisão do rateio do leilão do excedente da cessão onerosa do pré-sal, marcado para 6 de novembro, e a votação da reforma da Previdência, aprovada na Câmara e em tramitação no Senado, embolaram-se com parlamentares e governadores a condicionar seu apoio à reforma a uma maior participação de estados e municípios na divisão dos recursos do petróleo. A briga opunha aqueles que defendem a entrega de 20% para municípios e 10% para estados aos partidários da destinação de 15% para os primeiros e 15% para os segundos.

O governo divulgou que espera arrecadar 106,5 bilhões de reais, valor correspondente apenas ao bônus de assinatura, que Paulo Guedes pretende destinar integralmente ao pagamento dos juros da dívida pública. Estados e municípios esperam receber, cada um, 10,94 bilhões de reais.

Ao que tudo indica, parlamentares e governadores aceitaram a briga pelas sobras em vez de adentrar o salão do banquete. Segundo cálculos da Associação dos Engenheiros da Petrobras feitos a partir do edital do leilão, a participação governamental no rateio chegaria a 653,17 bilhões de reais. Isso, por baixo, pois poderia atingir 987,96 bilhões se a União contratasse diretamente a Petrobras como prestadora de serviços para a produção dos excedentes, alerta a entidade. No cálculo da participação governamental de 653,17 bilhões de reais, a Aepet considerou bônus de assinatura (106,56 bilhões), royalties (250,87 bilhões), excedente em óleo da União (191,49 bilhões), Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (104,24 bilhões).

A divulgação pelo governo apenas do valor do bônus de 106,5 bilhões e a informação dominante na mídia de que estados e municípios esperam receber 21,88 bilhões de reais deveriam ser examinadas com cautela e senso crítico por parlamentares e chefes de executivos estaduais e municipais. “Não se pode despertar o interesse dos governadores e prefeitos nos royalties e no excedente em óleo. O governo federal quer dar uma merreca apenas do bônus. Como o bônus é deduzido do Imposto de Renda da pessoa jurídica, o valor não é 10,94 bilhões para todos os municípios, mas 4,42 bilhões. Todos os estados também vão receber líquidos apenas 4,42 bilhões. Os estados e municípios poderiam receber, entretanto, cerca de 300 bilhões de uma receita líquida de 1,11 trilhão. Mas a visão dos governadores e prefeitos é muita curta”, dispara Paulo César Ribeiro Lima, que trabalhou na Petrobras, é Ph.D. em Engenharia Mecânica pela Cranfield University, ex-consultor legislativo do Senado e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados.

“Em razão dos baixos excedentes em óleo para a União e da baixa arrecadação do Imposto de Renda e da contribuição social, a rodada dos excedentes da cessão onerosa pode causar um prejuízo à União, estados e municípios, a valor presente, de 343,65 bilhões de reais”, alerta a Aepet. A baixa arrecadação decorre das deduções permitidas pela Lei nº 13.586, de 2017.

O melhor para o País, sublinha o presidente da entidade, Felipe Coutinho, seria a contratação direta da Petrobras, sob o regime de partilha de produção, com elevados excedentes em petróleo para a União. “A produção dos excedentes da cessão onerosa por outras empresas petrolíferas, que não a Petrobras, pode reduzir muito a participação governamental na renda petrolífera, mesmo que haja o pagamento de bônus de assinatura de cerca de 100 bilhões de reais. Para, aproximadamente, 15 bilhões de barris de excedentes, o valor presente líquido da renda petroleira em disputa é muito superior ao que se pretende arrecadar com o bônus de assinatura.” O leilão do excedente da cessão onerosa depende de aprovação por parte do Tribunal de Contas da União.

Mais uma vez, no caso do leilão do excedente, o Brasil estará na contramão do resto do mundo. “A participação governamental de 653,17 bilhões de reais corresponde a 59% da receita líquida total, muito menor que a parcela do governo de países produtores e exportadores de petróleo. Na Noruega, essa participação é de 76%. Na Arábia Saudita, de 100%, em razão do monopólio estatal de uma empresa pública”, compara Lima.

Guedes quer ficar com 100 bi para os jurados da dívida, só não combinou com os políticos. Estrella vê no leilão dos excedentes da cessão onerosa o fim de um projeto de país e talvez da Petrobras também

Em 2010, quando foi definido o modelo regulatório de exploração e produção no pré-sal e áreas estratégicas, estabeleceu-se que a União poderia ceder onerosamente (mediante remuneração) à Petrobras, sem a necessidade de licitação, o exercício das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural em áreas não concedidas, limitado ao volume máximo de 5 bilhões de barris de óleo equivalente. Ao mesmo tempo, a companhia faria um aumento de capital para elevar sua capacidade de financiamento de investimentos, em especial no pré-sal. O manancial das áreas não concedidas revelou-se, no entanto, três vezes superior àquela estimativa e totaliza 15 bilhões de barris, segundo avaliação da Agência Nacional do Petróleo baseada em dados da Petrobras.

O problema, conclui-se, não é o leilão do excedente da cessão onerosa, que foi um mecanismo legítimo para capitalizar a Petrobras, mas a baixa participação governamental. Nos termos em que está definido, o leilão “não é bom negócio para a União nem para a Petrobras. Esses excedentes estão localizados na região mais promissora da província petrolífera e poderiam gerar uma extraordinária renda para a União e todos os estados e municípios brasileiros, caso explorados em parceria entre o Estado brasileiro e a Petrobras”, alerta a Aepet.

Às perdas para a estatal decorrentes da sua pequena participação na liquidação do excedente da cessão onerosa inclui-se  a redução da sua produção própria com a entrada de sócios nos campos licitados. A definição de pagamento por parte das empresas ingressantes de uma compensação pelos investimentos feitos pela companhia e pelo mais que provável declínio da sua curva de produção não suprirá a entrega permanente dos mananciais de petróleo e gás para concorrentes estrangeiras como Shell e BP (Reino Unido), ExxonMobil e Chevron (EUA), Total (França), Wintershall Dea (Alemanha),CNOOC e CNODC (China), Equinor (Noruega), QPI (Catar), Petrogal (Portugal), Ecopetrol (Colômbia) e Petronas (Malásia), habilitadas a participar do leilão ao lado da Petrobras, a única brasileira.

A ocupação do pré-sal por estrangeiras aumentará ainda mais a perda de soberania nacional sobre esses recursos, acelerada após o impeachment. A Petrobras, no início majoritária no pré-sal, hoje tem a menor parte. “Considerando os cinco leilões e a cessão onerosa, a Petrobras tem 41%, enquanto as empresas estrangeiras, privadas e estatais, têm acesso a 59% do total de um volume estimado em 27,21 bilhões de barris de petróleo equivalente”, contabiliza Coutinho.

Vários leilões, como o de Carcará, em 2017, foram marcados por polêmicas. Para o geólogo Luciano Seixas Chagas, “não foi por inocência ou falta de aviso que se deixou de ampliar a produção de gás da Petrobras em ao menos 35 milhões de metros cúbicos por dia, que será proveniente de Carcará, ou em 70 milhões, se incluirmos Carcará Norte, praticamente doados à Equinor e depois à Exxon”. Os diretores que se abstiveram de exercer o direito da Petrobras sabiam dos estragos que causariam, acusa Chagas.

O leilão dos excedentes da cessão onerosa envolve os filões mais ricos do petróleo brasileiro e marca o fim de uma possibilidade de desenvolvimento, analisa o geólogo Guilherme Estrella, chefe de uma das equipes que descobriram as reservas em 2006: “O pré-sal despertou a preocupação de países e empresas que se sentiram ameaçados pelo surgimento de novo protagonista no palco geopolítico e se mobilizaram para modificar radicalmente a trajetória do Brasil como nação soberana. Afastaram a presidente da República e imediatamente investiram contra o ponto central do marco regulatório, extinguindo a obrigatoriedade de a Petrobras ser a operadora única das atividades de exploração e produção”.

Estrella prossegue: “Todo o poder de aplicação de uma política desenvolvimentista integral que o governo brasileiro exercia através da Petrobras foi simplesmente extinto e todo benefício que o pré-sal pudesse gerar para a indústria brasileira foi repassado para as empresas estrangeiras e seus fornecedores. Não bastasse, minimizou-se a obrigatoriedade do conteúdo nacional e concedeu-se às estrangeiras uma imensa isenção tributária de importação para elevar ainda mais a atratividade das operações”.

A participação do governo, estimada em 653 bilhões, poderia passar de 1 trilhão de reais

Entretanto, prossegue o engenheiro, “a Petrobras permanecia como a operadora única das atividades de produção de cerca de 12 bilhões a 15 bilhões de barris nas áreas da chamada ‘cessão onerosa’, com volumes de reservas que excediam o volume original contratado. Produzir estas áreas é questão de sustentabilidade para a Petrobras a médio e longo prazo e a anulação dos contratos traz ameaças ao futuro da companhia”.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo