Economia

Paulo Guedes tenta vender a disparada do dólar como um feito

Ao contrário do alardeado pela grande mídia brasileira, a causa da alta do dólar não é o coronavírus

(Foto: ABr)
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Ao contrário do alardeado pela grande mídia brasileira, a causa mais importante do terremoto dos mercados no País depois do Carnaval não foi principalmente a epidemia do coronavírus, mas a grave crise institucional provocada pelos ataques de Bolsonaro e generais à democracia e o travamento crônico da economia doméstica, acrescidos da valorização mundial do dólar. Fosse o coronavírus, cada vez mais global, o motivo principal do colapso dos mercados locais, a bolsa brasileira não teria sido aquela que mais caiu no mundo, quando se considera preços em dólar, conforme chamaram atenção alguns economistas. Além de explodir a bolsa e derreter o real, o colapso iniciado na Quarta-feira de Cinzas fulminou também a tentativa de Paulo Guedes de atribuir a disparada do dólar não aos descaminhos da política econômica sob sua responsabilidade, entre outras causas, mas a um efeito por ele planejado.

Em janeiro, o ministro da Economia respondeu a um âncora de televisão que perguntou se a elevação da cotação da moeda estadunidense refletia um novo padrão de funcionamento da economia: “É um novo normal. Então hoje você tem uma combinação diferente: juros mais baixos, inflação mais baixa e o câmbio um pouco mais alto”. Parece que Guedes esqueceu de combinar a nova tática com os investidores, em debandada ou reticentes não só em consequência do “novo normal”, que reduz as possibilidades de ganhos financeiros rápidos, mas principalmente por causa de quatro anos seguidos de frustração das projeções de crescimento do PIB e perspectiva de mais um ano nessa toada. Na base desse medo há a percepção, um tanto tardia, da incapacidade deste governo de fazer a economia avançar.

Na sexta-feira 21, véspera do carnaval, Bolsonaro disse que Guedes tem de “entregar” um crescimento de 2% neste ano, em um nada sutil “aviso prévio” de dispensa do ministro, caso ele não cumpra o estabelecido. Não vai ser fácil atender à encomenda do capitão reformado, apesar de a meta denotar significativo recuo em relação às próprias previsões oficiais para expansão do PIB em 2020, que começaram em 2,32% no ano passado e foram revistas pelo governo em janeiro, sem qualquer melhora de perspectiva, para 2,4% e 3%, enquanto o FMI mantém a projeção de 2,2%. Na quarta-feira 26, a pesquisa Focus do BC mostrava um discreto rebaixamento de previsões do PIB do ano, de 2,23% para 2,20%, no espaço de uma semana. Algumas instituições financeiras declararam aos jornais estimativas ainda piores, em torno de 1,5%, enquanto vários economistas projetam cerca de 1%, dada a deterioração acelerada das condições domésticas e internacionais. O que parecia ser uma bravata de Guedes talvez seja, portanto, um canto do cisne.

Um dia antes do início da folia, o dólar fechou em 4,39 reais, o que manteve a moeda brasileira como a mais desvalorizada entre as de 196 países, com variação acumulada de 16,95% em um ano, segundo a provedora de indicadores Trading Economics. Era só a beirada do precipício. Na quarta-feira 26, o dólar fechou em 4,44 reais e a Bolsa caiu 7%, mesmo com a intervenção do BC, sob efeito de novo ataque de Bolsonaro e generais à democracia, da ampliação da epidemia do coronavírus e da letargia econômica doméstica e mundial.

Bolsonaro deu um aviso prévio ao ministro: quer aumento de 2% no PIB

“Acho que Guedes não quer o real desvalorizado, a fala dele é hipócrita. O que está na cabeça do ministro e do BC é o seguinte: não importa o patamar do câmbio, é o mercado que determina a própria taxa. Como o momento puxa para uma desvalorização, eles justificam o real desvalorizado como sendo uma coisa boa”, dispara o economista Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp. O que o governo tem de concreto, diz, é um crescimento rastejante, que justifica uma taxa de juros baixa porque não existe pressão inflacionária e com esses juros e o cenário internacional de incertezas, o real tem se desvalorizado. “A taxa de juros baixa desvaloriza o real porque os investimentos, principalmente os mais especulativos, não procuram mais o Brasil. O chamado carry trade, a especulação com o câmbio, que no Brasil sempre foi muito forte, já não tem a mesma força. E o juro está baixo não por causa do câmbio, mas porque não há crescimento econômico, não tem inflação. Aí o câmbio desvaloriza.”

Segundo a economista Leda Paulani, professora da USP, “é evidente que desvalorizar o real não é uma política de governo. Em primeiro lugar, porque quem comanda a política econômica é ultraliberal e o câmbio flutuante é cláusula pétrea do tripé macroeconômico por eles defendido com unhas e dentes; em segundo lugar, porque um governo entreguista como este, defensor do capitalismo o mais selvagem possível, não haveria agora de se preocupar com as mazelas que o câmbio apreciado inflige ao País não é de hoje, causando desindustrialização, enorme defasagem tecnológica e redução da produtividade do trabalho, dentre tantos males”. É óbvio, prossegue Paulani, que há perda de controle não só nesse aspecto, como em vários outros, como o andamento da atividade econômica. “A verdade é que é quase um non sense falar nesses termos porque não se pode falar em controle, ou perda dele, de algo que não existe nem nunca existiu, que é um programa econômico, e, menos ainda, um projeto de nação. Ao contrário, o que existe é um projeto de desmonte do País, que passa pela destruição do Estado, das instituições e de tudo aquilo que, a duras penas, se conseguiu criar de minimamente civilizado por aqui.” O discurso de Guedes, prossegue a economista, dizendo que acabou a festa do dólar a 1,80 real para a empregada doméstica ir à Disney “é pura bravata. Dá a impressão de que ele descobriu que tinha um discurso (‘posso dizer isso’). Mas o Bacen o desmentiu logo no dia seguinte ao fazer forte intervenção no mercado para conter a alta do dólar”.

Rumo ao subsolo. O quinto ano de crescimento rastejante começou com queda de -7% na Bolsa, dólar a 4,44 reais e alta de preços nos supermercados.

O Banco Central tem dois instrumentos para intervir no mercado de câmbio, detalha Rossi, o mercado à vista, de venda e compra de dólares, inclusive das reservas cambiais, e o mercado futuro, que não envolve compra e venda de divisas. O BC tem uma posição comprada no mercado à vista, ou seja, tem uma quantidade grande de reservas cambiais e uma posição vendida no mercado futuro, o que significa que o governo vendeu mais dólares a futuro do que comprou. Segundo o economista, o BC está se desfazendo das posições no mercado à vista, ou seja, das reservas cambiais e se desfazendo também das posições no mercado futuro, isto é, reduzindo a posição vendida no mercado futuro e comprando dólar a futuro. O objetivo, diz, é não interferir muito na taxa, atendendo à demanda de um mercado de câmbio livre, e se desfazer de posições nos dois mercados. “Há, além disso, a meta de diminuir a dívida bruta, pois, quando o governo vende reservas cambiais, ele vende dólares e compra reais, e aí ele troca esses reais que retirou de circulação por títulos da dívida pública que estão em poder do público, em especial dos bancos. Ao fazer isso, retira dívida pública de circulação, diminuindo a dívida bruta. O governo está, portanto, queimando reservas para reduzir dívida bruta.”

A venda de reservas, com os desdobramentos descritos, marcou a atuação do Banco Central no fim do ano passado. Em janeiro, não houve intervenção de venda de reservas. Em fevereiro, o BC atuou com swap cambial, aí sim, na tentativa de amenizar a desvalorização cambial, que requer interferir no mercado futuro, pois é isso que determina a dinâmica cambial. (swap cambial é a troca da rentabilidade de um investimento pela variação da taxa de câmbio no período.)

O mercado percebeu com atraso a incapacidade de o governo impulsionar a economia

Para a economista Esther Dweck, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “Guedes está ‘operando’ o mercado. Ele tem feito declarações que não são, na minha opinião, por acaso. Sabe que consegue de certa forma alterar o mercado e com isso ele avisa, deixa claro, que o BC não está disposto a fazer nenhum tipo de intervenção muito grande. Assim, o mercado sabe qual é a direção do câmbio e isso acaba se tornando uma profecia autorrealizável”.

A desvalorização reflete a piora do cenário externo, mas a fala de Guedes sobre o dólar e a empregada doméstica pesou também. No curto prazo, quando um ministro da Economia faz algum comentário sobre o dólar, as cotações reagem porque os agentes passam a interpretar o que é que o governo está pensando da taxa de câmbio. “Se eu sou estrangeiro, estou com um ativo em reais e o ministro da Economia diz que o câmbio desvalorizado é bom, ele está afirmando que, se o meu ativo se desvalorizar, isso é positivo, então eu não quero mais permanecer com o ativo, que vai se desvalorizar, e vou embora”, exemplifica Rossi.

A queima de reservas cambiais, que caíram de 388 bilhões de dólares para 363 bilhões em dezembro, gera no curto prazo aumento de custos e redução do salário real, as mercadorias no supermercado ficam mais caras. Para boa parte das empresas, o efeito imediato é aumento de custos, como explica Dweck: “Quando Guedes fala que o câmbio desvalorizado vai ajudar as empresas no Brasil, isso necessariamente não ocorre, pois demoraria muito tempo para ter impacto positivo. No curto prazo, o que acontece é que, como as empresas brasileiras industriais têm muito insumo importado, acabam sofrendo com um aumento muito grande do seu custo”.

É preciso levar em conta ainda que a garantia proporcionada à economia brasileira pelo alentado colchão de reservas cambiais depende de movimentos e tendências em curso no País e no exterior. “O FMI fez vários estudos sobre o nível ótimo de reservas. O problema é que esse nível ótimo não é testado por meio de estudos econométricos, mas na prática, pela violência das crises”, destaca Rossi.

Outro aspecto a considerar, chama atenção a economista Daniela Prates, professora da Unicamp, é que, em 2019, houve forte deterioração da situação do balanço de pagamentos. “O investimento direto no País continua sendo mais que suficiente para financiar o déficit em transações correntes e temos um estoque elevado de reservas internacionais. Mas esse estoque é menor do que o passivo externo de curto prazo da economia brasileira, que é a soma do estoque de investimento estrangeiro de portfólio e da dívida externa de curto prazo. Ou seja, o colchão de reservas não é suficiente para blindar a economia brasileira de uma nova crise financeira internacional, que já tem sido aventada por vários analistas e instituições multilaterais.”

Não faz sentido o governo do capitalismo selvagem se preocupar com as mazelas do câmbio apreciado

A análise de Leda Paulani segue na mesma direção. “Segundo os últimos dados divulgados pelo Banco Central, referentes ao terceiro trimestre de 2019, nosso passivo externo líquido (já descontado, portanto, o valor das reservas) montava a 640 bilhões de dólares. Mas a conta que tem de ser feita para avaliar a vulnerabilidade de nossa economia é outra. Se somarmos os 532 bilhões de investimento em carteira (investimentos que podem entrar e sair com muita facilidade do País) com os 60 bilhões de empréstimos de curto prazo, temos quase 600 bilhões diante de reservas de 376 bilhões no mesmo momento (final do terceiro trimestre). Apesar disso, a situação ainda não é em si completamente desconfortável. Contudo, a letargia da economia brasileira, os resultados das contas externas do ano passado, o cenário de incerteza institucional interno e o aumento da conturbação no panorama internacional indicam que esse desconforto pode aumentar rapidamente”, adverte a professora.

Regressão. As exportações caíram 15 bilhões de dólares de 2018 a 2019. Foto: Istockphoto

Segundo o economista Felipe Macedo de Holanda, professor da Universidade Federal do Maranhão, o governo parou de queimar divisas porque, entre outros motivos, “houve a percepção por parte da equipe de Guedes de que a continuidade de uma erosão muito rápida das reservas poderia sinalizar fragilidade. O problema é que o cenário externo está se deteriorando rapidamente, nossa política comercial vem acumulando erros em série e ainda temos a instabilidade doméstica”.

O País perdeu competitividade e o resultado no médio prazo deve ser a continuidade do enfraquecimento do real, sublinha Holanda. As exportações reduziram-se em mais de 15 bilhões de dólares no ano passado em relação a 2018, prossegue o economista, e as importações crescem rapidamente, não como sinal de vigorosa retomada da atividade econômica, como querem alguns menos atentos, até porque, de vigorosa não tem nada. A produção industrial, as vendas do comércio, os serviços e o PIB decepcionaram fortemente no último trimestre do ano, resultado dos estragos generalizados provocados pela drástica retração do investimento público e privado, que acarretaram grandes danos na infraestrutura de transportes, nas indústrias petroquímica e nas de bens intermediários, entre outras.

O estoque de alternativas da política econômica do governo esgota-se rapidamente. Para Esther Dweck, a taxa de 4,25%, considerada aí a taxa de juros externa mais um prêmio de risco no Brasil, é basicamente o piso e funciona como um limitador para a política monetária, pois é difícil continuar baixando muito os juros, porque isso poderia eventualmente criar uma fuga de capitais ainda maior do que está acontecendo agora.

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