Economia

“O governo age como se o coronavírus fosse acabar em agosto. É um absurdo”

Brasil poderá ter uma recessão pior que a prevista pela OCDE seguida de uma depressão, alerta a economista Esther Dweck

A economista Esther Dweck. Foto: Divulgação
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A economia mundial está na corda bamba, diz o título do relatório deste mês da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e o Brasil balança mais que a média mundial na crise sem precedentes associada à pandemia, que desencadeou “a recessão mais severa em quase cem anos e causa enorme dano à saúde, aos empregos e ao bem estar”. A OCDE prevê recessão mundial de 6% este ano mas, se houver nova onda de contágio, o declínio poderá atingir 7,6%. As projeções para o Brasil são de 7,4% negativos sem uma nova onda da covid-19 e de 9,1% negativos se houver um retorno da doença.

Há muito espaço, entretanto, para um desempenho do Brasil ainda pior que a previsão mais negativa da OCDE. A interrupção generalizada do isolamento social em um momento de ascensão da covid-19, a atitude do governo de negar a doença em vez de combatê-la e a política econômica de austeridade e privatização radicais apontam para um agravamento acentuado tanto da pandemia quanto da recessão no País. Os erros da área econômica do governo pesam de modo decisivo na escalada recessiva, mostra a economista Esther Dweck, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na entrevista a seguir, em que analisa várias decisões anacrônicas ou absurdas do ministro Paulo Guedes, sem amparo na prática nem no conhecimento acumulado pela chamada ciência econômica.

CartaCapital: Como a senhora vê o modelo econômico adotado pelo atual governo brasileiro, oposto à condução dada à economia nos países avançados e nos desenvolvidos bem sucedidos?

Esther Dweck: Esse modelo que o governo apresenta parece furado, porque eles não mostram exatamente como fazem e principalmente porque pressupõe que se o governo mantiver uma política austera, haverá uma recuperação econômica porque os agente privados vão sair das trevas, etc. Essa é uma teoria que já se mostrou errada no mundo, foi totalmente abandonada, o mundo inteiro está rediscutindo o papel do Estado, a necessidade tanto de um plano de investimento quanto de um estado de bem estar social. Realmente não faz o menor sentido o que eles estão propondo.

CC: A senhora criticou recentemente o governo por não abrir a caixa preta da modelagem sem sentido feita pela equipe do ministro da Economia Paulo Guedes. O ministro chegou a dizer que se for adotado um plano de obras públicas o PIB poderá cair.

ED: O governo inventou um modelo maluco dizendo que se aumentasse o investimento público, possivelmente haveria uma retração do PIB ou um crescimento menor do que sem o investimento público. Isso realmente não faz sentido porque há uma situação de altíssima capacidade ociosa, os últimos números apontam mais de 50% de capacidade ociosa. Há uma expectativa de uma queda muito grande de renda da população e de baixíssimo nível de investimento. Do ponto de vista mundial, a economia tende a apresentar mais adiante uma recuperação lenta ou pelo menos bastante protecionista, o que significa que as nossas exportações não vão bombar. Não há portanto opção a não ser um grande projeto do governo de recuperação econômica, que passe principalmente por investimento público e inclua uma política de distribuição de renda, adote a proposta de reforma tributária solidária e outras iniciativas que com certeza ajudariam muito o crescimento do PIB.

CC: O governo anunciou o rebaixamento da renda mensal emergencial. Como analisa isso?

ED: A propósito de baixar o valor do auxílio emergencial, no fundo um parcelamento do valor atual, é claramente uma combinação de insensibilidade social por conta dos efeitos da pandemia, que tendem a persistir por um tempo muito maior, com uma esperteza política de subdividir o auxílio e manter um pouco o peso da popularidade do Bolsonaro entre as pessoas que recebem esse benefício. Parece esperteza política combinada a insensibilidade social.

CC: Além disso, o governo planeja cortar encargos trabalhistas por até dois anos, recriar a CPMF agora restrita ao comércio digital.

ED: Parece uma sinalização para caminhar rumo a carteira verde-amarela, que diminui encargos trabalhistas para os jovens mas, por outro lado, reduz a proteção dos trabalhadores. Quanto a CPMF, é um imposto bastante ruim.

CC: Na mesma linha, Guedes anunciou congelamento dos salários do funcionalismo por dois anos.

ED:  Ele disse que esse congelamento é uma granada colocada no bolso do inimigo, trata o servidor público como inimigo. Mais um absurdo. É necessário repensar o papel do Estado e o servidor público é o próprio Estado, é ele que permite que o Estado funcione, atue, faça políticas públicas. Nesse sentido, uma política de valorização do funcionalismo seria essencial. Este ano a inflação será muito baixa, o que por si só não demandaria uma reposição salarial muito grande nos próximos anos. É preciso levar em conta, entretanto, que a  depender de como será o impacto quando a economia retomar depois dessa mega desvalorização da moeda, poderemos ter inflação alta daqui a dois anos, por exemplo, o que geraria uma perda salarial muito grande em todos os níveis caso isso se concretize. Outro aspecto é que muitas pessoas têm uma visão muito equivocada do servidor público, como se todos fossem ministros do STF ou juízes que têm não só salários altos, mas uma série de penduricalhos também. Um estudo do IPEA e de um órgão de representação de servidores mostra que na verdade há uma disparidade enorme entre os servidores públicos, e principalmente, entre o funcionalismo federal e os funcionalismos estadual e municipal, que têm um salário muito mais baixo, e na área de educação também, em geral mais baixo que a média.

CC: O ministro Paulo Guedes afirmou em uma reunião ministerial que o governo não vai perder dinheiro salvando empresas pequenininhas, mas redirecionou o BNDES para apoio às PME. Disse apoiar as grandes empresas, mas não dá uma solução à grave crise das companhias aéreas de grande porte.

ED: Isso é um absurdo. No Brasil, grande parte do emprego está nas pequenas empresas, portanto quando ele diz que não vai salvar as PMEs, está dizendo que não vai salvar os empregos. Obviamente, do ponto de vista social e econômico, é um equívoco total. E não é verdade que o governo perde dinheiro. É curioso, pois eles fazem um discurso público em defesa das pequenas empresas, nas quais o BNDES vai se concentrar, aí o BNDES começa a inventar uma porção de problemas para emprestar. Além de que é um absurdo concentrar-se nas pequenas, o crédito deveria ser acessível para empresas de todos os tamanhos. Como se isso tudo não bastasse, em uma reunião interna Guedes disse que deveria deixar as empresas pequenas quebrar e só apoiar as grandes. São absurdos sobre absurdos.

CC:  Qual o efeito combinado de rebaixamento da renda emergencial, corte de encargos trabalhistas, congelamento dos salários dos funcionários públicos e nenhum apoio às pequenas empresas?

ED: A combinação dessas políticas tende a agravar a crise. Fizemos na UFRJ um estudo sobre a economia brasileira com três cenários, no cenário mais extremo haveria uma queda do PIB de 11% neste ano, com reflexo negativo para o próximo ano. Nenhum aumento de salário para servidores, nenhum apoio às empresas pequenas que são as maiores empregadoras, o rebaixamento do auxílio emergencial que tem sido uma das poucas medidas para manter ainda alguma demanda da população e conter um pouco o aumento da desigualdade, isso tudo tende na verdade a gerar uma recessão muito forte na economia brasileira seguida de uma depressão, principalmente se o governo não fizer absolutamente nada para tirar o País da crise e mantiver a sua proposta de voltar no ano que vem com as políticas de austeridade e a emenda do teto de gastos. O governo age como se o coronavírus e seus efeitos fossem acabar em agosto deste ano, o que é um absurdo, ele tende a permanecer por alguns anos. Precisamos de uma política como um New Deal de Franklin Roosevelt, nos EUA, um Green New Deal, de preferência, isto é, que incorporasse a dimensão da sustentabilidade ambiental, como vem sendo discutido no resto do mundo, para mudar os padrões de desenvolvimento.

CC: Como vê a intenção declarada pelo governo de tomar emprestado 4 bilhões de dólares no exterior para pagamento do auxílio emergencial, da inclusão de beneficiários no Bolsa Família, do programa que complementa parte da renda de trabalhadores que tiveram salário reduzido e do seguro-desemprego?

ED: Essa ideia de tomar 4 bilhões de dólares para pagar o auxílio emergencial é um dos maiores absurdos e uma das maiores barbeiragens econômicas que eu já vi. E olhe que esse governo é mestre em fazer barbeiragens econômicas. Não tem nenhuma lógica. Parecia que o governo tinha percebido que não existem limites para o gasto público. Este é um ponto em que sempre insistimos, que o governo não é uma dona de casa. Principalmente, numa situação como a atual, ele pode gastar muito além do que arrecada. O que impedia isso eram regras fiscais que na minha opinião são bastante equivocadas, que deveriam ter sido revistas há muito tempo e, uma vez afastadas essas regras, como ocorreu desde o decreto de calamidade pública e mais fortemente depois com a aprovação da PEC do orçamento de guerra, na verdade não haveria nenhum limite ao gasto público, a não ser a vontade política do governo. E neste caso, ele tenta inventar que existe um limite e que por isso seria preciso buscar empréstimo externo. Se houvesse necessidade de dinheiro externo, por que não usar parte das reservas de 340 bilhões de dólares? Veja bem, eu acho isso absurdo, não se deveria mexer nas reservas, só para deixar bem claro esse ponto, de que não faz o menor sentido essa proposta, duplamente desnecessária. Há um gasto que é em reais para a população brasileira, que é uma transferência de renda, e que é um gasto que automaticamente volta para a economia, gera inclusive mais arrecadação. Deveríamos estar usando recursos públicos na forma de empréstimos que o governo pode fazer facilmente, para poder gastar. Felizmente, nós conseguimos mudar o padrão da dívida brasileira, hoje limitada a uma dívida interna, mas parece que o governo quer voltar a ter uma dívida externa. Talvez para ficarmos novamente sob a égide do FMI e sermos obrigados a fazer as políticas de ajustamento que, hoje, felizmente nem são mais aquilo que eram na década de 1990.

CC: Como vê o comportamento recorrente do governo de afrontar a China, seu maior parceiro comercial?

ED: Ofensas ao maior parceiro comercial são uma coisa louca, ainda mais porque a estratégia de Bolsonaro e Guedes é se abrir unilateralmente para os EUA e brigar com a China. Realmente, não dá para entender isso do ponto de vista econômico, parece uma coisa puramente ideológica, sem sentido, e já estamos vendo as consequências de ficarmos sem capacidade produtiva interna e sermos muito dependentes de importações de reagentes e outros elementos básicos para fazer os testes do novo coronavírus, que estavam racionados no mundo. Brigar com a China não faz o menor sentido.

CC: Conhece precedente de um conjunto semelhante de medidas e propostas econômicas tão contraproducentes e contraditórias colocado em prática em algum país, ao longo da história?

ED: Realmente não há precedentes. Veja o caso dos Estados Unidos. Trump, tem semelhanças com Bolsonaro e vice-versa, mas eles são diferentes na condução das economias domésticas de cada um. Trump tem um projeto de defesa e valorização da economia estadunidense enquanto que aqui há um plano de abertura, entreguismo, fim da soberania e austeridade a todo custo, enquanto nos EUA nada disso está acontecendo. Quem acha que Bolsonaro imita Trump não percebe que ele imita só o discurso, mas na economia realiza no Brasil o projeto de Trump para os Estados Unidos. Em outras palavras, o governo Bolsonaro toma, em relação a economia brasileira, medidas que são importantes para a economia americana, não para a economia brasileira. Enquanto Trump só faz o que é importante para a própria economia americana. Se isso continuar assim, infelizmente teremos um cenário bastante grave no País. Em um dos editoriais mais marcantes dos últimos tempos, o Financial Times de 3 de abril destaca que o vírus expôs a fragilidade do contrato social mundial, com uma gravíssima desigualdade social crescente no mundo e o Brasil, infelizmente, é um dos países mais desiguais. Os problemas graves na condução da economia combinam-se a uma ausência de coordenação no enfrentamento da pandemia. O País precisa repensar completamente essa visão equivocada, obsoleta, destruidora e bastante nociva do ministro Paulo Guedes para a economia brasileira, que está à frente de como o governo encara tanto o coronavírus quanto a economia.

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