Economia

“Neoliberalismo vive fase autoritária pois concentra renda”

É o que diz economista brasileiro da Universidade de Londres, para quem o capital financeiro requer combate

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O ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou em 21 de agosto a privatização de 17 estatais. Após a reforma da Previdência, é uma das medidas neoliberais mais vistosas do governo. No dia do anúncio, um economista brasileiro professor na Universidade de Londres palestrou na Universidade de Brasília (UnB) sobre neoliberalismo. O que Alfredo Saad Filho expôs mostra que só por milagre a população vai melhorar de vida com a atual política econômica.

É essa a visão, aliás, do deputado que presidiu a comissão da mudança nas aposentadorias, Marcelo Ramos (PR-AM), que admite: a reforma é dura com o povão. “O governo aposta num liberalismo econômico que ninguém mais no mundo defende, com privatizações, abertura comercial…”, afirma. “O Paulo Guedes faz tudo pelo sistema financeiro, que está matando a indústria. É um fanfarrão.”

“Fanfarrão” é uma palavra capaz de definir o sentimento, em relação a Guedes, da economista-chefe de uma dessas empresas do sistema financeiro por quem o ministro se guia, Zeina Latif, da XP. Em uma reunião na XP em 16 de agosto, em São Paulo, Zeina estava preocupada. A economia não anda, o governo logo ficará sem dinheiro e Guedes fala, fala, fala feito Jair Bolsonaro e só.

Bolsonaro é a representação, no Brasil, do que Saad Filho, um estudioso da história da economia, chama de “neoliberalismo autoritário”. Este caracteriza-se por ser aplicado por líderes políticos extremistas, pois só assim seria possível recorrer a um receituário que há mais de 40 anos torna os ricos mais ricos e deixa os mais pobres na mesma.

“O capitalismo global conseguiu tudo o que queria”, diz Saad Filho. Fim da União Soviética e dos movimentos de libertação nacional em países asiáticos e africanos, livre fluxo de capital como nunca, sindicatos e partidos de esquerda enfraquecidos. “E a economia não avança. Vemos a mais lenta recuperação depois de uma crise, baixo crescimento e aumento das desigualdades”, afirma.

Desde a crise financeira global de 2008, a economia mundial anda com roda presa. De 2009 a 2011,  cresceu 2,8% em média, conforme o Fundo Monetário Internacional (FMI). De 2012 a 2016, 3,4%. Em 2017, 3,8%. Em 2018, 3,6%. Para 2019, o FMI projeta 3,2%.

O avanço modesto não significa que todo mundo esteja infeliz. Os 10% mais ricos, comenta Saad Filho, embolsaram toda expansão econômica nos Estados Unidos entre 2009 e 2013. Os outros 90% andaram para trás. O resultado é concentração de renda.

Em junho do ano passado, a OCDE, clube de países ricos ou simpatizantes do qual o Brasil quer fazer parte desde o governo Temer, divulgou a pesquisa “Elevador social quebrado?”. A resposta está no primeiro parágrafo: “Os dados mostram uma imagem nítida: a renda média dos 10% mais ricos da população é agora de 9,5 vezes a dos 10% mais pobres na OCDE, em comparação com 7 vezes há 25 anos”.

“A desigualdade de riqueza é ainda mais acentuada”, segue o estudo. Os 10% mais ricos controlam metade e os 40% mais pobres, 3%. A crise financeira reforçou a tendência concentradora, segundo a OCDE, mas o aumento da desigualdade existia “mesmo durante os períodos mais altos da expansão econômica global antes de 2008”.

Segundo Saad Filho, o neoliberalismo concentra renda sempre: quando há crescimento, quando não há e após crises. Tem sido assim desde que começou a espalhar-se pelo globo, nos anos 1970. De lá para cá, viveu mais duas fases, antes da “autoritária”, na definição do professor. As três guiadas pelo interesses do mercado financeiro, principal marca do neoliberalismo.

(Foto: ABr)

Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o sistema financeiro mordia 10% dos lucros nos EUA, diz o economista. Em 2002, 41%. Essa fatia caiu após a crise global de 2008, nascida pois os bancos abusaram da criatividade ao buscar ganhos, mas em 2009 já voltava a 30%. “O capital financeiro não produz nada, caça o lucro dos outros setores”, afirma Saad Filho.

Ele chama de “transição” a primeira fase da era neoliberal. Começa no Chile com a ditadura de Augusto Pinochet, ídolo de Bolsonaro, e uma política econômica comandada por Chicago Boys neoliberais como Paulo Guedes. Margareth Thatcher, primeira-ministra britânica a partir de 1979, e Ronald Reagan, eleito presidente do EUA em 1980, deram impulso global ao experimento chileno.

A segunda fase é a de um neoliberalismo “maduro”. Inicia-se nos anos 1990, com governos, caso do brasileiro Fernando Henrique Cardoso, dispostos a moderar os efeitos sociais negativos da implantação selvagem do neoliberalismo, mas sem abandoná-lo. E não só praticam o neoliberalismo, como ajudam a difundi-lo como ideologia.

“Uma ideologia que valoriza o consumo acima de tudo, que coloca o mérito do sucesso e o peso do fracasso estritamente em cima do indivíduo”, diz Saad Filho. “As falhas sistêmicas do neoliberalismo somem de vista, vira tudo problema de maus indivíduos”. Se a população vive mal, ou o cidadão não tem capacidade ou os políticos são corruptos. O sistema econômico é inocente.

Essa fase termina com a crise global de 2007/2008. Na época, EUA e Europa gastaram bilhões para salvar da falência bancos que haviam abusado na caça ao lucro. As pessoas perceberam o “custo astronômico” da salvação, segundo Saad Filho, e isso tirou legitimidade do neoliberalismo. Pior: os bancos se salvaram, mas as economias passaram a crescer pouco, uns 3%.

A partir daí, o neoliberalismo precisou de político linha-dura para seguir adiante. “Essas percepções (populares sobre o custo de salvação dos bancos e o baixo crescimento) foram desestabilizadoras e exigiram a chegada de formas de governo autoritárias, com discursos nacionalistas e racistas. Uma virada que se tornou essencial”, diz o professor da Universidade de Londres.

Nessa fase “autoritária” do neoliberalismo, tem havido reformas trabalhistas, destinadas a baratear os trabalhadores, enquanto os lucros bancários são preservados. Em 1995, a fatia dos salários na renda mundial era de uns 58%, segundo Saad Filho. Em 2014, tinha caído para 55%.

Realidade brasileira: desde a volta do neoliberalismo com a reeleição de Dilma Rousseff em 2014, o PIB encolheu cerca de 7% em 2015 e 2016, subiu 1% em 2017, 1% em 2018 e para este ano o FMI prevê 0,8%. O desemprego nesse período quase dobrou: de 6,5% no fim de 2014 para 12% em junho passado. Há 12,8 milhões de pessoas sem vaga e 4,9 milhões que desistiram de procurar.

E os bancos? Os quatro maiores – três privados (Bradesco, Itaú e Santander) e um estatal (do Brasil) – tiveram lucro recorde em 2018, 69 bilhões de reais juntos, 19% acima de 2017. São eles que se dão bem com o neoliberalismo de Paulo Guedes. A reforma da Previdência afasta risco de calote na dívida pública com a qual eles lucram (o governo vai gastar menos dinheiro com aposentadorias). Nas privatizações, bancos montarão sociedades compradoras e emprestarão o dinheiro da compra.

Para Saad Filho, os perdedores econômicos globais na era do neoliberalismo (trabalhadores e classe média) voltam-se para líderes autoritários, pois não veem como melhorar de vida com políticos convencionais. Motivo: o neoliberalismo praticamente tornou as eleições inúteis do ponto de vista de mudanças na política econômica, ao emplacar ideias como independência para o Banco Central.

Como um governo que queira enfrentar o capital financeiro poderia usar a taxa de juros do BC e a desvalorização do dólar como armas, se o BC tem dirigentes com mandato fixo, geralmente saídos do próprio “mercado”?

As estruturas institucionais dos governos foram “trancadas” pelo neoliberalismo e tornaram “praticamente impossível” sair do neoliberalismo, diz Saad Filho. O caso da Grécia é exemplar. Um governo radical de esquerda e contra o mundo financeiro elegeu-se por lá em 2015, o do primeiro-ministro Aléxis Tsípras, do Syriza, e acaba de ser destronado pois Tsípras sucumbiu às finanças.

Aléxis Tsípras Foto: Louisa Gouliamaki / AFP

A desesperança popular e social com o “sistema” fez triunfar gente como Trump e Bolsonaro, diz o professor de Londres. Uma vez no poder, contudo, a dupla adotou políticas econômicas neoliberais que os perdedores econômicos que ajudaram a elegê-los não queriam. Trump encobriu a defesa dos ricos como ele com uma retórica nacionalista. Bolsonaro, com mamadeira de piroca e quetais.

Se jogar no terreno moral contra Bolsonaro, que é onde o ex-capitão deseja fazer a disputa política, o campo progressista continuará errando. Para Saad Filho, a esquerda global deveria voltar às origens e “se concentrar em suas virtudes tradicionais”: crítica das desigualdades, propostas de distribuição de renda, de melhoria da saúde, da educação, do transporte público.

Para o economista, a esquerda está presa numa “armadilha”, herança da luta por direitos civis (casamento gay, aborto, igualdade racial) surgida nos anos 1960 nos EUA. “A geração de 1968 acreditava na libertação coletiva através da libertação individual”, diz Saad Filho. “O individualismo extremo converge com a extrema-direita.”

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