Economia

Livro faz mergulho profundo e nada em saudáveis provocações da Economia Política

Em texto acessível e instigante, Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo desmascaram a mistificação da ortodoxia

Galípolo e Belluzzo: duas gerações unem ideias
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De tempos em tempos aparece nas Ciências Sociais alguém munido de sólida erudição, sensibilidade política e infinita ousadia capaz de dar uma freada de arrumação na algaravia do debate público e fazer a pergunta “como chegamos até aqui?” Melhor: de tempos em tempos aparece alguém capaz de fazer a pergunta e de respondê-la. 

Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo aceitaram o desafio no ensaio “A Escassez na Abundância Capitalista”. Desfiando prosa veloz e sintética, percorrem a história da Economia Política com propósito claro: retirar a nuvem de fumaça das chamadas expectativas racionais de modelos ortodoxos que de racionais pouco têm. 

O título do livro é uma saudável provocação. Crises capitalistas são – na visão marxista – centradas na esfera do valor-trabalho. E são crises de abundância por terem como processo essencial a concentração de riquezas nas mãos de minorias do topo da pirâmide e a correspondente escassez embaixo. Em outras palavras, vigora a contradição fundamental entre o caráter crescentemente social da produção e o caráter privado dos meios de produção, como advertia Karl Marx. “A escassez”, escrevem Belluzzo e Galípolo, “é a condição não menos importante para a avaliação subjetiva que converte os bens da vida em riqueza e lhes confere valor. Os objetos de desejo devem ter oferta limitada.”

Dispensando notas de rodapé e terminologias inacessíveis, Belluzzo e Galípolo advertem de saída a necessidade de se desmistificar a lógica da produção de modelos que buscam equilíbrios pretensamente estáticos em uma ciência moldada pelos choques políticos na esfera pública. “Cientistas supostamente têm de chegar às suas conclusões depois de pesquisar e avaliar as evidências, mas, em Economia, conclusões podem vir primeiro, com economistas gravitando na direção de uma tese que se encaixa em sua visão moral de mundo.” 

A dupla dinâmica percorre um caminho cujo ponto de largada se situa na pré-história moderna e no alvorecer do Iluminismo, quando o sistema da mercadoria começava a se impor na Europa. Para isso, sua bússola extrapola a bibliografia estritamente econômica. Ela envolve Hobbes, Kant, Hegel, Foucault e Rousseau, entre outros, que se mesclam com Adam Smith, Say, List, Ricardo, Marx, Keynes, Kalecki e Hayek. A ideia é rastrear o ponto na história do liberalismo em que a disciplina Economia se desvinculou da Política para compor a ilusão de que se poderiam trabalhar variáveis sociais com tecnicismo indolor, abstraindo-se choques distributivos. Ou luta de classes, em linguajar mais direto. 

A dada altura, ambos fulminam: “A turma das expectativas racionais entregou a chamada ciência econômica às forças do pensamento mítico, em nome da despolitização e da ‘limpeza ideológica’”.

A escassez na abundância capitalista
Contra a hegemonia.
Luiz G. Belluzzo e Gabriel Galípolo, 250 págs., R$ 44

A separação entre Economia e Política tem origem em Jean Baptiste Say, que em 1803 colocou no papel teses que se tornaram caras aos liberais ao longo dos séculos: “Durante muito tempo, confundiu-se a Política propriamente dita, a ciência da organização das sociedades, com a Economia Política, que ensina como se constituem, se distribuem e se consomem as riquezas que satisfazem as necessidades das sociedades. Entretanto, as riquezas são essencialmente independentes da organização política. Desde que bem administrado, um Estado pode prosperar sob qualquer forma de governo”.

É diante desse alicerce que Belluzzo e Galípolo examinam a desterritorialização da produção na esfera global, quando empresas deslocam sua produção “para regiões em que prevalecem baixos salários, câmbio desvalorizado e baixa tributação”. E destrincham as assimetrias entre a economia real e a monetário-financeira. “Aí estão centradas a concentração e a centralização do controle do capital monetário em instituições de grande porte e cada vez mais interdependentes.” É nessa lógica que a riqueza especulativa passa a comandar a administração empresarial, direcionar investimentos, inflar valores de ativos e conferir um poder crescente a acionistas desvinculados das decisões de gestão. 

Trata-se do caminho que coloca países e regiões inteiras à mercê do livre fluxo de capitais globais, em busca de pit stop onde as condições de reprodução ampliada sejam melhores. 

Cada página parece ter sido pensada a partir de decorrências práticas no embate das forças sociais

“No capitalismo financeirizado do século XXI, a apropriação de renda ‘rentista’ está intimamente associada ao inchaço das dívidas públicas nacionais.” Em torno dela se organizam e se cortam orçamentos e se traçam decisões de Estado acima de tudo e de todos. Não é à toa que ao fim o livro assinale algo quase óbvio e comumente ocultado nos debates públicos: “O neoliberalismo pressupõe um Estado forte, operando exclusivamente em benefício dos ricos e poderosos, sem qualquer pretensão de neutralidade ou universalidade”.

A escassez na abundância capitalista apresenta vantagem significativa sobre outras obras econômicas. Seus autores dominam os meandros da atividade política. Cada página parece ter sido pensada a partir de decorrências práticas no embate de forças sociais.

Duas observações merecem ser feitas. A primeira é que os autores poderiam ter dado maior ênfase ao ponto de mutação mais saliente da economia pós-1929. Trata-se da emergência do New Deal e de seu impacto não apenas na ciência econômica, como na própria definição do papel do Estado contemporâneo. A intervenção decidida do poder público na economia é concomitante ao estabelecimento de uma nova hegemonia global.

A segunda é um exame mais acurado dos tempos do “dólar flexível”. Trata-se da medida estatal tomada no bojo da queda de produtividade nos Estados Unidos, que pôs fim aos “trinta anos gloriosos” e desvinculou a riqueza monetária de seu lastro em ouro. Politizou-se ali como nunca a gestão da moeda. O preço do dólar, a partir de 1971, funda-se na combinação do soft e do hard power da potência hegemônica, materializada na fixação unilateral da taxa de juros. 

Obviamente, são temas que estão no radar apurado de Belluzzo e Galípolo e que mereceriam detalhamento em edição futura. O único tópico em que a dupla derrapa feio é na dedicatória da obra a João Manuel Cardoso de Mello, esta mais do que merecida. Contudo, no texto, mencionam-se os “embates entre o Tricolor Paulista e o Alviverde Imponente”. O último conceito não tem sustentação científica ou empírica alguma na boa Ciência das quatro linhas.

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