Economia

Guerra fiscal é ineficiente e piora crise nos estados, diz Bernard Appy

Proposta do economista, que inspirou a reforma tributária que tramita no Congresso, propõe transformar cinco tributos em um

O economista Bernard Appy: simplificação contra distorções do sistema tributário (Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados)
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Enquanto a reforma da Previdência patina, a Câmara dos Deputados vem tocando por contra própria outro tema prioritária da agenda econômico: a reforma tributária. O projeto, em ritmo acelerado de tramitação, é baseado em um estudo do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), chefiado pelo economista Bernard Appy.

O estudo que originou a PEC 45/2019 propõe a criação de um imposto único, aos moldes do IVA que vigora em vários países.  A ideia é que o Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) substitua cinco tributos federais, municipais e estaduais — PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS. Não se trata, porém, de mera simplificação.

A proposta de Appy quer o fim da tributação sobre investimentos e exportações, e que, se a barafunda fiscal do atual sistema, pagar impostos fique mais fácil e mais barato no país. O impacto mais significativo, diz, é sobre o crescimento potencial do país. “Um aumento de 10% do PIB potencial em quinze anos”, calcula o economista, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda.

Aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) com o apoio de partidos do centrão e da oposição, o projeto será discutido agora pela comissão especial.

Em entrevista a CartaCapital, ele comenta alguns pontos do projeto.

CartaCapital: Por que o atual sistema tributário é ruim?
Bernard Appy: Por vários motivos. Primeiro, porque ele é extremamente complexo, o que acaba resultando em um custo burocrático de pagar impostos que é o mais alto do mundo para tributos indiretos. E acaba resultando em uma taxa enorme de brigas na justiça entre os contribuintes e o fisco — que não só resulta em custo pros contribuintes, como gera insegurança jurídica, prejudicando muito o investimento.

O segundo problema é que esse sistema que gera muita cumulatividade: quando você paga um imposto no meio da cadeia produtiva que não é recuperado nas etapas seguintes. Ou seja, paga-se impostos e a empresa não consegue recuperar o crédito. Isso acaba fazendo com que os investimentos sejam taxados e também as exportações. Isso derruba o nível de investimentos e prejudica a competitividade da economia brasileira.

Há terceiro grupo de problemas, que é o mais importante de todos, a chamada distorção alocativa. Como nosso sistema tributário é cheio de exceções, que resultam em benefícios fiscais, regimes especiais, diferenças de alíquotas, diferenças de incidência setorial, e isso faz com que as empresas, ao tentar minimizar o custo total, acabem aumentando o custo econômico. Fazem menos, com a mesma quantidade de trabalho e capital. É perda de produtividade na veia.

Para levar o automóvel ao consumidor de automóvel e carne para o consumidor de carnes, gasta-se mais caminhão, mais motorista, mais gasolina, mais estradas

CC: Um dos pontos mais criticados da tributação é a guerra fiscal? Como a PEC 45 resolve isso?
BA: Os benefícios da guerra fiscal via ICMS não são concedidos para explorar a vocação regional, e sim para roubar uma empresa que, por vocação, iria para outro estado. São Paulo, por exemplo, dá benefícios fiscais para frigoríficos. Tem estados no Centro-Oeste — onde está o boi — que dá benefícios para montadoras. Se não fossem os benefícios, possivelmente teria mais frigoríficos no Centro-Oeste e mais montadoras em São Paulo. E talvez o frigorífico gere mais empregos que a montadora.

Com isso, há uma quantidade enorme de caminhões rodando o país à toa. Para levar o automóvel ao consumidor de automóvel e carne para o consumidor de carnes, gasta-se mais caminhão, mais motorista, mais gasolina, mais estrada do que se gastaria sem as distorções no sistema tributário. O fato é: toda vez que a tributação varia conforme se organiza a produção, ela induz a empresa organizar-se de uma forma que pode ser ineficiente. E isso tudo tira muitos pontos do crescimento potencial do país.

Um problema adicional da guerra fiscal hoje, além de gerar ineficiência, é que ela está agravando a crise nos estados.

CC: E como esse modelo ajudaria a resolver a grave crise fiscal dos estados?
BA: No longo prazo, de duas formas, primeiro interrompendo o processo de concessão de benefícios. O segundo, é que a reforma tributária tem um impacto extremamente positivo sobre o crescimento potencial do país. Por baixo, um aumento de 10% do PIB potencial em quinze anos. Portanto, mesmo mantendo a carga tributária, ela vai fazer que, ao longo da transição, a receita dos estados cresça mais do que cresceria mantendo o sistema tributário atual. Porque interrompe esse processo fratricida de concessão de benefícios fiscais e porque promove mais crescimento econômico, que beneficia todos os entes do pacto federativo. É uma solução de longo prazo. Para o curto prazo a discussão é outra.

CC: E a questão dos benefícios fiscais? Seu modelo prevê algum tipo de renúncia?
BA: Não, não há nenhum benefício fiscal no âmbito do imposto sobre bens e serviços. Os benefícios fiscais são usados hoje sobretudo como instrumento de política de desenvolvimento regional. A ideia é que, junto com a criação do IBS, reforce-se os instrumentos da política de desenvolvimento regional. Transformar o sistema atual de desenvolvimento, baseado na concessão de benefícios fiscais, em um sistema que vai investir recursos no fomento de atividades para as quais a região tem vocação. Isso melhora a infraestrutura e, possivelmente, qualifica a mão de obra. É um retorno extremamente positivo no longo prazo. A ideia é substituir uma política ineficiente e cara por uma política mais barata e mais eficiente para promover o desenvolvimento regional.

CC: Alguns deputados que votaram contra criticaram, por exemplo, o fim da diferenciação entre bens supérfluos e bens essenciais, que afeta os mais pobres.
BA: Não estamos acabando com a diferenciação, estamos acabando com o IPI e o ICMS. O uso desse princípio nesses impostos é ineficiente como política distributiva. Um bom exemplo é a desoneração da cesta básica. É ineficiente porque, mesmo que o pobre gaste mais de sua renda em cesta básica que rico, em termos absolutos é o rico que gasta mais. Estou dando um benefício que, em termos absolutos, é maior para as famílias ricas do que para as famílias pobres. Toda a literatura é unânime em afirmar que políticas de transferência de renda são muito mais eficientes que desoneração da cesta de bens de consumo. O Ministério da Fazenda comparou, há dois anos, a alocação de 1 bilhão de reais na desoneração da cesta básica do PIS/Cofins, e o impacto que isso tem no coeficiente de Gini, versus o impacto dessa mesma verba alocada no Bolsa Família. O Bolsa Família reduziu a desigualdade 12 vezes mais. Ou seja: uma política cara, porque desonerar a cesta básica aumenta a alíquota de todos os outras mercadorias e serviços. E ineficiente, porque reduz muito pouco a desigualdade.

CC: E qual a proposta alternativa da PEC 45?
BA: O que a PEC45 propões é substituir esse mecanismo de desoneração da cesta básica por mecanismo que chamamos de isenção personalizada, que dá às famílias cadastradas no CadÚnico [sistema do governo federal que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda], e devolve a elas, via crédito no cartão de programas sociais, o imposto pago sobre o que elas consumiram. Esse modelo tem dois efeitos: é mais eficiente para reduzir a desigualdade e custa menos. Não sei porque alguém pode ser contra uma política que custa menos e é mais eficiente. O pessoal está lá defendendo que a gente tenha políticas sociais ineficientes.

CC: Você já afirmou, em outras entrevistas, concordar com a premissa de que os ricos pagam menos impostos do que deveriam. Seu projeto contribui para mudar esse cenário?
BA: Pouco, porque trata de consumo. Para as famílias pobres, transferir renda é mais efetiva que tributação. Já para fazer política distributiva para famílias de alta renda, o melhor instrumento é o imposto de renda. De fato, no Brasil, a tributação que faz com que uma parcela relevante de pessoas de alta renda pague muito pouco imposto no Brasil. Se você tributasse 34% na empresa e não tributasse 27,5% na pessoa física, não seria um problema. O problema existe quando você, por N fatores, consegue pagar muito menos que 34% na empresa, e depois distribui os dividendos isentos. Isso acontece sobretudo nos regimes especiais de tributação. O caso dos PJs, por exemplo. Um profissional liberal que fatura 50 mil reais por mês. Esse profissional, vamos dizer que gaste 10 mil reais para pagar secretária, material de escritório… E tenha uma renda líquida de 40 mil reais. Essa pessoa vai pagar imposto de 32% sobre 50 mil reais, que é 16 mil reais. É óbvio que temos um problema distributivo muito sério aí. Essa distorção tem que ser corrigida. Mas a forma de fazer a mudança no sistema tributário brasileiro é via mudança no IR. Isso é lei ordinária, não é nada incompatível com a discussão que fazemos na PEC45. Ela é complementar a essa discussão.

CC: Como passaríamos do modelo atual para o modelo que você propõe? Há uma regra de transição?
BA: Há uma transição de dez anos, em dois períodos. Um período inicial de testes, no qual o IBS opera com alíquota de 1% durante dois anos. E nesse primeiro momento, ele reduz a alíquota da Cofins. Ou seja, não mexe com estados e municípios toda a receita do IBS é direcionada para seguridade social. Nos oito anos seguintes, você reduz 1/8 ao ano todas as alíquotas dos tributos atuais. Ou seja, no primeiro ano desses oito, os tributos atuais serão 7/8 do que eles são hoje, e sucessivamente até serem extintos no período final de transição. Sabendo quanto arrecadam os tributos atuais, sabe-se quando vai perder de receita em cada ano da transição. Sabendo quanto o 1% de alíquota do novo imposto arrecada, sabe-se quanto tem que subir a alíquota do IBS para repor essa perda na arrecadação. Isso permite fazer a transição mantendo a carga tributária constante, que é uma dificuldade comum aos projetos de reforma tributária.

CC: Uma mudança tão grande deve encontrar certa resistência nos estados e municípios, não?
BA: Não é uma mudança que se faz sem resistência. Alguns resistem por desconhecimentos. Temos aprendido, no nosso trabalho recente, que muitas vezes o estado ou o município que é contra a proposta muda de ideia quando entende o projeto. Inclusive porque, existe uma segunda transição, que é de cinquenta anos, da distribuição da atual da receita entre estados e municípios para a nova distribuição, que chamamos de ‘distribuição pelo princípio do destino’, que é a receita distribuída proporcionalmente ao consumo. Ou seja, o impacto dessa mudança sobre as finanças dos estados e municípios é extremamente diluído no tempo.

E sobretudo, eles entendem que serão beneficiados, no agregado, pelo maior crescimento da economia. Eles entendem que essa mudança tem um efeito bastante positivo sobre a economia. Isso ajuda na discussão. Obviamente, vão aparecer problemas. Um grupo pequeno de estados e de municípios que podem ter perdas mais elevadas nessa migração, e vão pedir medidas compensatórias. Aos estados mais pobres, querem que o reforço da política de desenvolvimento regional seja colocado de forma clara no texto da EC. Essas são questões que precisam ser aprofundadas e discutidas na comissão especial.

CC: Acha que essas tensões entre Congresso e Executivo podem prejudicar o andamento da PEC?
BA: O projeto cria um ambiente econômico extremamente favorável, melhora o ambiente de negócios no curto prazo. Ainda que o grosso do impacto seja de longo prazo, ele tem um impacto muito positivo sobre as expectativas no curto prazo, que aumentam investimentos, que abre espaço para a queda de juros. Não vejo porque o Executivo seria contrário à aprovação da proposta. O que eles têm dito é que a ideia deles é fazer numa outra ordem, mas se o Congresso avançar com a proposta, honestamente, não vejo o Executivo contra.

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