Economia

Entregadores da Rappi devem ter carteira assinada, dizem fiscais do trabalho

Relatório conclui que a ‘autonomia’ é uma fraude antiga com roupa nova

Entregadores de aplicativo em São Paulo (Foto: Roberto Parizotti)
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Por João Cesar Diaz

Uma fiscalização de auditores fiscais do trabalho, que durou oito meses, concluiu que entregadores não têm autonomia e que a Rappi deve assinar a carteira, garantindo assim seus direitos trabalhistas. A empresa colombiana de entregas por aplicativo opera no Brasil desde 2017.

“Pela legislação atual, os entregadores são funcionários da Rappi e deveriam ter suas carteiras assinadas”, explica a dupla de auditores fiscais do trabalho, Rafael Brisque Neiva e Rafael Augusto Vido da Silva, que investigou a relação trabalhista entre a Rappi e seus entregadores. “É claro para nós: os entregadores têm relação de trabalho subordinado a Rappi”, enfatiza Neiva.

O relatório de fiscalização de 220 páginas, ao qual a Repórter Brasil teve acesso, foi encaminhado para o Ministério Público do Trabalho e será adicionado a um o inquérito que já está em em andamento, segundo Ruy Fernando Gomes Leme Cavalheiro, procurador do Trabalho na cidade de São Paulo, que apura as relações de trabalho entre empresa e entregadores.

‘Pela legislação atual, os entregadores são funcionários da Rappi e deveriam ter suas carteiras assinadas’, concluem os auditores fiscais do trabalho responsáveis pela fiscalização

A fiscalização não prevê imposição de multa à Rappi porque, segundo os auditores, a empresa não forneceu a informação sobre o número de entregadores – mesmo depois de ter sido notificada pelos servidores do Ministério da Economia. A legislação atual prevê multa de R$ 3 mil reais por trabalhador não registrado, mas a Rappi tenta se blindar disso ao não passar a relação de entregadores para a auditoria, explica o fiscal do trabalho. “Doeria no bolso deles, com certeza”, afirma.

Os auditores destacam que os entregadores não são autônomos, já que os motociclistas e ciclistas que concluem os pedidos da plataforma dependem do aplicativo para trabalhar e recebem um “salário” com valor determinado pela empresa. Além disso, dependem do aplicativo para conseguir os serviços e não possuem autonomia para definir o valor do trabalho. “É uma fraude antiga com roupas novas”, afirma Rafael Vido, que faz parte do grupo de combate à informalidade e fraude nas relações de trabalho.

Procurada, a Rappi não quis comentar e não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil.

A “autonomia” dos entregadores se resumiria, em tese, a aceitar ou não uma entrega, mas, ainda assim, não é tão simples.“Podemos recusar corridas, mas, na verdade, não podemos. Aí arriscamos sofrer os castigos do aplicativo”, afirma um entregador entrevistado pela Repórter Brasil. Migrante do Haiti, o trabalhador – que preferiu não se identificar por medo de perder sua única fonte de renda –, esperava a notificação do aplicativo para subir em sua bicicleta e completar mais uma corrida.

No regime de trabalho informal da Rappi, os entregadores não têm acesso a direitos trabalhistas, como Previdência Social, depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (dever do empregador) ou mesmo horas extras e controle de jornada de trabalho. Isso não é exclusividade da Rappi. A falta de garantias e seguridade social é replicada em outras plataformas de entrega.

‘Qualquer entregador jamais prestou serviços para a Rappi’, foi a resposta da empresa aos auditores

Apesar de não ter respondido os questionamentos da Repórter Brasil, a empresa explicou aos auditores que é uma simples “intermediadora” entre entregador e consumidor e que se isenta de qualquer relação com quem trabalha fazendo as entregas. “Entregador algum jamais prestou serviços para a Rappi”, foi a resposta da empresa aos auditores, segundo consta no relatório da fiscalização.

Sonegação de informações

A fiscalização começou em abril de 2020 e durou oito meses. Desde então, a Rappi ainda não divulgou o número de entregadores, número de entregas, remunerações ou jornadas de trabalho, mesmo depois de ter sido formalmente notificada pelos auditores. “A sonegação dessas informações é uma estratégia deliberada para dificultar nosso trabalho – sabemos que eles [A Rappi] têm até salas com todos esses números constantemente exibidos nas telas de controle”, afirma Rafael Neiva

A empresa alega em sua página e no “contrato” para se inscrever no aplicativo – assinado com um clique na tela do celular – que seus entregadores são trabalhadores autônomos. Inclusive, a Rappi é registrada no Brasil no Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) como uma empresa de “agenciamento e intermediação de serviços e negócios em geral”. “Até aí tentam se distanciar dos trabalhadores e disfarçar seu papel de empregador”, explica Neiva.

Os auditores apontam ainda outra ilegalidade cometida pela empresa colombiana que atua em nove países: a venda casada. Para receber pelos serviços, o entregador é obrigado a criar uma conta em outro aplicativo, o SmartMEI. Não é permitido pelo app receber a cada frete. Esse dinheiro não pode ser sacado e só pode ser transferido para uma conta bancária uma vez ao mês de forma gratuita. “A Rappi transfere todos os riscos para o entregador e ainda impõem um desconto no salário dos trabalhadores com essa terceirização da remuneração”, denuncia Rafael Neiva.

Há somente duas opções de remuneração para o entregador autônomo da Rappi. Receber apenas uma vez ao mês, na primeira quarta feira do mês seguinte a uma entrega ou receber semanalmente pagando uma taxa de 1,99% do total mais 7,00 reais pela transferência eletrônica disponível.

Rafael Augusto Vido afirma que esse pagamento indireto e taxado é um “sistema predatório”. Para ele, a ponte “desnecessariamente burocrática” entre a Rappi e SmartMEI explora a vulnerabilidade financeira e social dos entregadores.

A SmartMEI foi procurada por e-mail e por meio de seus advogados; sem resposta.

“A gente não sabe o dia de amanhã”, conta um entregador sobre o porquê de optar pelo pagamento semanal (taxado) para a Repórter Brasil. “Mês passado tive um acidente. Minha moto foi pra oficina e eu fui pra ambulância. A gente tem de ter algum dinheiro no bolso”, afirmou o entregador, que não quis se identificar.

Punições e falsa autonomia

Rafael Neiva e seu colega Rafael Augusto Vido entrevistaram mais de 100 entregadores com o propósito de entender a relação trabalhista que está em jogo. Preocupados com represálias do aplicativo, apenas 21 deles concordaram em se identificar.

‘Não paramos: viramos o dia. No mínimo 10 horas diárias para ganhar alguma coisa’, lamenta um entregador.

Sentados numa mureta estreita na Avenida Paulista, em São Paulo, um grupo de entregadores esperava corridas. Suas motos, mobiletes e bicicletas encostadas na calçada. Alguns deles levaram o “gancho” e usavam contas registradas nos nomes de familiares e amigos para continuar trabalhando.

“Não paramos: viramos o dia. No mínimo 10 horas diárias para ganhar alguma coisa” explicou um entregador à reportagem. “Quem mais tem filho aí?” ele joga a pergunta na roda de entregadores cabisbaixos checando seus celulares – três dos seus colegas levantam a mão. “Olhe só. Um monte de gente aqui trabalhando para tentar trazer alguma renda para casa”, completa.

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