Economia

Crise do coronavírus expõe vulnerabilidade da globalização, diz economista

Para especialista, pandemia pode ser oportunidade para desenvolvimento de um modelo econômico mais sustentável, seguro e também mais estável

Professor Niko Paech - Foto: Marcus Sümnick/Wikimedia Commons
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A escassez de equipamentos médicos em meio à crise do novo coronavírus expõe o ponto fraco de um modelo de produção que se baseia numa cadeia produtiva globalizada, na qual a produção de bens é distribuída pelo mundo inteiro, argumenta o economista alemão Niko Paech.

“Esse modelo é um tipo de economia de céu de brigadeiro. Quando não há crise, ele é vantajoso por reduzir os custos, mas quando um elemento desta rede em algum lugar falha, ele desmorona”, afirma Paech, em entrevista à DW Brasil.

Para o professor da Universidade de Siegen, a atual pandemia pode ser uma oportunidade para o desenvolvimento de um modelo econômico mais sustentável, seguro e também mais estável diante de crises.

Paech, que é uma das principais vozes da chamada economia de pós-crescimento, baseada não no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), mas numa estrutura de abastecimento estável e sustentável, fala ainda sobre as vantagens do modelo que defende, sua importância diante das mudanças climáticas e como ele poderia ser aplicado no Brasil.

A crise causada pelo novo coronavírus era previsível?

Niko Paech: A atual crise não, mas a instabilidade das redes econômicas globais, ou seja, das cadeias de logística, era previsível. Quanto mais complexo e extenso no âmbito geográfico esses entrelaçamentos e cadeias são, mais vulnerável a crises é o sistema como um todo. Num mundo onde tudo é ligado com tudo, tudo depende de tudo, por meio desse entrelaçamento internacional, não só bens e pessoas se locomovem mais rápido e se propagam, mas também todas as adversidades, como um vírus.

O que a crise do coronavírus revela sobre o atual modelo econômico?

NP: O atual modelo de produção, que nos tornou ricos, se baseia em dividir a produção de todos os bens em vários processos únicos altamente especializados, que são deslocados pelo mundo inteiro conforme a comparação dos custos. Esse modelo é um tipo de economia de céu de brigadeiro: quando não há crise ou interrupção, ele é vantajoso por reduzir custos, mas quando um elemento dessa rede em algum lugar falha, o modelo desmorona, pois os países se fizeram cada vez mais dependentes dos entrelaçamentos globais.

Vemos isso agora na Alemanha e em outros países europeus, com a escassez de equipamentos médicos necessários. Mas também vemos que a cadeia de produção de alimentos na Alemanha depende de vários fornecedores, que devido ao custo foram deslocados para locais de produção distantes. A economia se tornou um castelo de cartas global, e quando apenas um elemento é retirado, tudo desaba. Essa vulnerabilidade do sistema econômico foi exposta com a atual crise.

O que podemos aprender com a pandemia?

NP: Há um conflito de metas entre a eficiência técnico-econômica de uma divisão de trabalho extensa e globalizada e a estabilidade do nosso sistema de abastecimento. No futuro, nós, e também os políticos, aprenderemos, ou arcaremos com as consequências, que é melhor desistir da eficiência em prol da segurança e em prol de se tornar mais resistente a crises. Precisaremos pensar sobre trazer de volta para o país uma parte da produção para sermos capazes de produzir os bens necessários para a vida quando há uma crise econômica ou pandemia.

A pandemia pode trazer mudanças importantes para o desenvolvimento de um modelo econômico mais ambiental e estável?

NP: A atual situação resulta em duas chances. O medo da próxima crise, que pode gerar gargalos no abastecimento ou paralisação da economia, pode fazer com que a política econômica esteja mais disposta a incentivar a produção regional, não por ela ser mais eficiente técnico-economicamente, mas por ser mais estável. Isso significa adotar as mesmas medidas que, de qualquer maneira, seriam necessárias para proteger o clima.

Por outro lado, a sociedade civil começou a aprender que uma vida modesta também pode trazer alegrias. Na Europa, nós somos muito estressados e atingimos os limites psicológicos do crescimento econômico, ou seja, não temos mais condições de aproveitar ao máximo todo o bem-estar que podemos comprar, pois nos falta tempo. Agora temos uma pausa obrigatória que não desejamos, mas que mostra para muitos que é bom não trabalhar 40 horas por semana, que é muito mais importante ter descanso. Pode ser que, depois da crise do coronavírus, cresça a disposição de viver uma vida sustentável, modesta, com menos viagens e consumo e mais tempo para amigos e vizinhos.

Por que o atual modelo econômico, baseado em crescimento, não é sustentável?

NP: Principalmente porque se tornou impossível de sustentar ambientalmente o modelo de bem-estar, o qual não se pode estabilizar sem crescimento, por meio de progressos tecnológicos. Tentamos desacoplar a economia baseada em crescimento dos danos ambientais e isso não funcionou. Sempre se alegou que o crescimento “verde” [sustentável] foi desenvolvido na Alemanha, mas isso está errado.

A Alemanha é um dos maiores pecadores ambientais, e a mudança da matriz energética alemã fracassou completamente. Todas as tentativas de possibilitar proteção climática por meio da tecnologia fracassaram. Algumas dessas tentativas não só fracassaram como produziram danos ambientais adicionais.

Quais danos?

NP: Por exemplo, a destruição da paisagem por meio da utilização de energia renovável, como ocorre no Brasil com a construção de hidrelétricas, é extrema. A natureza está sendo destruída para supostamente produzir uma energia limpa, o que seria equivalente a substituir a cólera pela lepra. Isso não é uma solução – é transformar um problema em outro problema.

A consequência que podemos tirar dessas tentativas frustradas de resolver o problema ambiental com tecnologia é que precisamos do desmantelamento da economia para aliviar a biosfera. Desmantelar a economia não significa que ficaremos pobres, mas que começaremos a nos concentrar e nos lembrar do que realmente nos deixa felizes.

Essa economia reduzida seria então regional?

NP: Não somente. Uma economia pós-crescimento se baseia em combinar três possibilidades do abastecimento de bens. A economia global, industrial e altamente tecnológica, a economia regional e o mero abastecimento próprio. A sugestão é desmantelar a sociedade industrial globalizada entrelaçada, não ao ponto zero, mas até alcançarmos o suficiente para que, mesmo com uma produção menor, tenhamos um bom abastecimento.

O senhor poderia dar um exemplo de como seria esse desmantelamento?

NP: Se reduzirmos em dois terços a produção de automóveis no mundo, perderíamos empregos e teríamos menos carros. O primeiro problema poderíamos solucionar reduzindo a jornada de trabalho de 40 horas semanais para 20 horas. Assim, mesmo com um encolhimento da economia, todos teriam emprego. O segundo problema podemos solucionar andando menos de carro, ao usar o transporte público ou dividir um automóvel com outras pessoas.

Mas neste caso a renda também cairia…

NP: Sim, mas ao não precisar mais pagar sozinho os custos de um carro, pois estou dividindo com os vizinhos, preciso de menos dinheiro para viver. Se divido, além do carro, por exemplo, a máquina de lavar, o cortador de grama, a furadeira e outros objetos, vou economizar uma grande quantidade de dinheiro. Quanto mais dinheiro economizo, menos eu preciso trabalhar e menor pode ser a economia.

Quando as pessoas precisam trabalhar apenas 20 horas, sobram 20 horas livres valiosas que podem ser usadas para produzir, sozinho ou em comunidade, coisas e alimentos, para consertar objetos ou ainda para organizar o uso comum. Dessa forma, as pessoas viverão uma vida muito mais criativa e social. Precisamos nos desacostumar de sermos apenas consumidores, precisamos ser consumidores e produtores, ou seja, prosumidores.

Esse modelo econômico de pós-crescimento seria possível num país como o Brasil?

NP: Com certeza, porque o Brasil está no limite de sua fronteiras ambientais. Naturalmente, há no Brasil muitos setores rurais que precisam de certo desenvolvimento, mas seria um erro repetir o que fizemos no Norte global. Seria viável em cidades do Brasil começar a promover a produção em pequenas fábricas locais, o trabalho manual, a economia sustentável e sobretudo o cultivo ecológico, e assim possibilitar uma economia mais modesta, mas mais estável e autônoma.

Todos não podem ter a típica vida urbana de consumo, pois sempre há pobreza. Uma economia que se orienta fortemente nas necessidades e não na cobiça é sustentável, além de integrar a todos. Naturalmente, esse tipo de economia não é uma economia de pobreza, pois nela há consumo, mobilidade e tecnologia.

Esse modelo econômico de pós-crescimento seria, então, mais justo?

NP: Absolutamente, pois a desigualdade é um produto da economia de consumo e do sistema financeiro. Numa sociedade de consumo, cada um pode acumular bens e dinheiro à vontade, mas numa sociedade na qual o trabalho manual e as relações sociais são o decisivo, por exemplo, quando divido algo com meu vizinho ou junto consertamos algo ou plantamos alimentos numa pequena área, nossas diferenças não podem ser tão grandes. A igualdade entre as pessoas numa economia de pós-crescimento é mais provável do que numa sociedade de consumo.

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