Economia

A voz da razão

Sob o comando de Josué Gomes da Silva, a Fiesp afasta-se do viés golpista e mira no desenvolvimento do País

Mudança de direção. Gomes da Silva encerrou a fase arrivista da Fiesp, que havia sido transformada em um partido político. A entidade retoma assim seu papel no debate público - Imagem: Suamy Beydoun/Agif/AFP
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A sabatina de Lula na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, na terça-feira 9, encerrou o ciclo de encontros de industriais com candidatos a presidente em meio a um processo de renovação da entidade e da sua adesão à ampla manifestação de associações semelhantes e empresários de outros setores em apoio ao processo eleitoral, sob ataque constante de Jair Bolsonaro e seus seguidores. Presidida por Josué Gomes da Silva, eleito no ano passado com apoio inédito de 95% dos votos no colégio eleitoral formado por 113 sindicatos empresariais, a Fiesp enxugou órgãos colegiados, renovou a sua composição, reforçou o departamento de economia e engajou-se no esforço para a retomada do crescimento, com uma atenção maior em relação aos problemas da sociedade.

Antecedida pelas sabatinas de Luiz Felipe D’Ávila, Ciro Gomes e Simone ­Tebet, a de Lula seria seguida pelas de Jair Bolsonaro e André Janones, mas o primeiro cancelou sua participação com a justificativa, segundo se divulgou, de que o presidente encontraria um ambiente desfavorável, na mesma semana do lançamento, pela Faculdade de Direito da USP, da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, que até o encerramento desta edição contava com mais de 800 mil assinaturas. Janones retirou sua candidatura e declarou apoio ao petista. Caso fosse à Fiesp, Bolsonaro seria convidado por Gomes da Silva a assinar o documento da entidade intitulado “Em Defesa da Democracia e da Justiça”, que soma forças à mobilização da USP. O ex-capitão compareceu, no entanto, a uma reunião na Federação dos Bancos, entidade signatária do manifesto da Fiesp, e durante o encontro referiu-se ao documento como “cartinha” e denominou “mamíferos” os empresários que o assinaram, o que abrangia os signatários na plateia.

A Fiesp entregou aos candidatos sabatinados um sumário executivo da sua própria proposta de diretrizes prioritárias para o País no próximo governo. O texto marca uma mudança crucial de postura e de ideias em relação à gestão de Paulo Skaf, que transformou a Fiesp em partido político de apoio ao fundamentalismo liberal de Bolsonaro e Paulo Guedes e deu infraestrutura às mobilizações que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, simbolizada pelo pato amarelo inflado na entrada da entidade na Avenida Paulista. O documento defende a estabilidade e o respeito ao Estado de Direito como condições indispensáveis para o Brasil superar seus principais desafios, inclui, de forma inédita, a taxação de dividendos, reconhece a importância da participação do Estado na economia e defende o aumento do espaço da mulher nas empresas e na sociedade, entre outros pontos.

Sai o pato amarelo, entra a defesa do processo eleitoral, das instituições e do crescimento

“Na reforma da tributação da renda,” diz o documento, “a taxação sobre a distribuição de dividendos relativos aos lucros futuros deve ser ajustada, proporcionalmente, à carga que incide sobre as empresas.” Outro ponto muito importante é reconhecer que “a significativa complexidade dos desafios atuais exige a atuação do Estado como articulador de investimentos e intermediador do processo de desenvolvimento”. Não se trata, segundo a Fiesp, de discutir a presença de um Estado mínimo ou máximo, mas de um Estado necessário. Quanto à ampliação da participação das mulheres o texto é específico: “O Brasil deve também adotar políticas ativas para a igualdade de gênero, especialmente no mercado de trabalho, por meio de ações que promovam o aumento da participação feminina em cargos de liderança e o desenvolvimento de habilidades técnicas para o maior acesso das mulheres a profissões nos campos da ciência e tecnologia”.

Segundo o economista Antonio Corrêa de Lacerda, integrante do Conselho de Economia da Fiesp, uma novidade importante do texto apresentado aos candidatos é ressaltar o papel do Estado na economia. “A visão que prevalecia era neoliberal, de que o Estado não tem que intervir. Esse documento diz claramente que o papel do Estado é muito relevante, assim como o do setor privado, mas um não substitui o outro. Eu acho que isso é uma mudança fundamental”, destaca Lacerda, “que se contrapõe, obviamente, às visões do ministro Paulo Guedes e companhia.”

Outros tópicos do documento abordam a necessidade de uma política industrial moderna, atualizada do ponto de vista tecnológico e sustentável em termos ambientais, combate ao desmatamento, aumento da participação da bioenergia na matriz energética e fortalecimento da infraestrutura. Propõe-se também a recuperação da capacidade­ de planejamento, a ampliação do investimento em inovação e tecnologia e a melhora da qualidade da educação para atuar como alavanca do desenvolvimento econômico. Cabe destacar ainda a defesa, no texto, da necessidade de ampliação das políticas públicas de saúde e combate à fome e de aprimoramento dos programas de habitação de interesse social. A missão é “reconstruir um país que investe, promove a inovação, gera empregos de qualidade e o crescimento sustentável”.

Novo mundo. Um projeto de reindustrialização precisa levar em conta a revolução tecnológica, o impacto das mudanças climáticas e o desenvolvimento regional – Imagem: iStockphoto

Um dos avanços da atual gestão, destaca Lacerda, é o fortalecimento dos conselhos consultivos de economia, inovação e relações exteriores como orientadores das posições da entidade, após apreciação da diretoria. “Os conselhos ficaram mais enxutos e focados. Novos integrantes foram incorporados ao Conselho de Economia, como os economistas André Lara Resende, Paulo ­Gala e Gabriel Galípolo. Houve também fortalecimento do quadro técnico para suportar as análises.” Outro destaque, diz, é a contratação de um “jovem economista de boa bagagem, Igor Rocha”, para o posto de economista-chefe. Ex-ocupante da mesma posição na Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Rocha é doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, onde defendeu tese sobre a industrialização da Coreia do Sul.

A tomada de posição da Fiesp, agora comandada por Gomes da Silva, filho do falecido vice-presidente no governo Lula, José Alencar, em favor do desenvolvimento e contra o golpismo faz parte da sua história, percurso no qual, por diversas vezes, fez a defesa pública do Estado de Direito e da sociedade civil. A nova cúpula da entidade inclui dirigentes de algumas das poucas empresas de porte que resistiram à desindustrialização crônica iniciada décadas atrás, a exemplo de Dan Ioschpe, André Bier, Jorge Gerdau Johannpeter e José Roberto Ermírio de Moraes. Alguns desses sobrenomes estão ligados à tradição dos líderes da indústria que, em 1978, em pleno regime militar, se pronunciaram pelo fim da ditadura. O “Grupo dos Oito”, escolhido em eleição de líderes empresariais promovida pelo jornal Gazeta Mercantil, era formado por Antônio Ermírio de ­Moraes, Cláudio Bardella, Jorge Gerdau, José Mindlin, Laerte Setúbal Filho, Paulo Vellinho, Paulo Villares e Severo Gomes. Em um manifesto, eles defenderam a democracia, a empresa nacional, o disciplinamento das companhias estrangeiras atuantes no País, investimentos públicos, uma política salarial justa, gastos sociais e liberdade sindical para patrões e empregados, entre outros pontos.

Ao empresariado não interessa o golpismo, pois a instabilidade é péssima para os negócios

Em 1980, Ermírio de Moraes, Bardella, Gerdau, Setúbal Filho e Mindlin foram reeleitos e, ao lado de Luís Eulálio de Bueno Vidigal, Olavo Setúbal, Abílio Diniz, José Ermírio de Moraes Filho e Mário Garnero, assinaram novo documento, de crítica à estratégia recessiva causadora de desemprego e desnacionalização e de defesa das instituições democráticas. Em 1998, um grupo de industriais entregou a FHC um projeto para melhorar o País e cobrou uma atitude do governo.

A enorme adesão de industriais, banqueiros, empresários do comércio e do agronegócio e suas entidades aos documentos da USP e da Fiesp foi acompanhada de alguns posicionamentos diversos. A CNI decidiu não aderir ao documento da indústria e o Ciesp, órgão da própria Fiesp, informou que não assinaria. Não faltaram tentativas de rotular a ampla manifestação como um movimento pró-Lula e anti-Bolsonaro. Em uma fake news elaborada nesse campo, chegou-se a dizer que o documento da entidade teria sido aprovado por apenas 15% dos sindicatos empresariais. “No caso da proposta eu estava presente, o presidente da Fiesp colocou em discussão em uma reunião plenária da diretoria. Leu a carta, que é muito curta, e quando terminou a leitura foi aplaudido pelos 80 a 100 delegados ou presidentes de sindicatos de empresas, que representam a indústria em São Paulo. Não houve ninguém que fizesse objeção nem que deixasse de aplaudir”, afirma o empresário ­Mario Bernardini, conselheiro da entidade. “Agora, em São Paulo, tem 120 mil CNPJs industriais, evidentemente um bocado deles deve ser de bolsonaristas, imagino. Por certo, tem gente que não gostou, por entender que aquilo era um documento contra Bolsonaro, quando na realidade não é contra ninguém, é a favor do Estado de Direito, só isso. Se alguém vestiu a carapuça, problema dele.”

“A instabilidade,” explica ­Bernardini, “é péssima para os negócios. Ao empresariado não interessam situações em que se coloque em dúvida o Estado de Direito. Já temos muita insegurança jurídica.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A voz da razão”

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