Diversidade

Oscar 2019 ousou com a variedade de corpos e discursos

Importa que discursos de inclusão estejam disputando todos os espaços – ainda mais em tempos de homens brancos da extrema direita

(Foto: Valerie Macon/ AFP)
Apoie Siga-nos no

É ingênuo supor que estratégias de comunicação corporativa estejam na dianteira das lutas por equidade, tanto quanto é míope negar que elas têm impacto. Escrevi linhas parecidas quando comentei a campanha global da Gillette que colocou a masculinidade no fio da navalha, e emprego esse raciocínio ao tecer este texto sobre o Oscar.

Neste 2019 conturbado pela iminência de uma guerra global e despautérios do governo doméstico – para os quais, vale lembrar, apoio ou repúdio intensos são engendrados pela via do simbólico – importa entender porque e como produções discursivas progressistas estão surgindo das narrativas audiovisuais e departamentos de marketing.

Seja com publicidade ou no show business, grandes jogadores da indústria de mídia parecem estar investidos na promoção da diversidade. Essa produção é fruto de uma tomada repentina de responsabilidade social, ou simples adaptação a mercados cada vez mais exigentes com questões de representatividade e equidade?

Estas questões importam, assim como importa que discursos de inclusão estejam disputando todos os espaços – ainda mais em tempos de homens brancos da extrema direita fascista nas rédeas da política internacional, que com a simbologia refratária de todo o medo e ódio que têm de tudo o que não se parece com eles, tentam restaurar uma estrutura social que sequer tombou e da qual são os maiores beneficiários.

Não posso opinar sobre o merecimento dos prêmios, tampouco comentarei os filmes, a maioria dos quais sequer assisti. Porém, desde o tapete vermelho foi difícil não vibrar com a variedade de corpos e discursos que agraciaram o evento, sobretudo os que subiram ao palco para a coleta de estatuetas.

A magnífica aparição do ator, cantor, escritor e diretor Billy Porter vestindo um híbrido entre o smoking e o longo típicos das festas de gala não poderia ter sido mais reveladora da tônica que viria a dominar a cerimônia. Um entusiasta da confusão de gênero causada pelo deboche drag, Porter adentrou o teatro fazendo alusão à tradicional esquete de entrada nos palcos de Bob the Drag Queen – vencedor/a da oitava temporada do reality show RuPaul´s Drag Race, cujo jargão de apresentação é “purse first”.

A indumentária é de luxo, e quem a veste é um milionário que reverencia uma drag queen cuja vida financeira é rarefeita; assim, não é exagero sugerir que a celebração da diversidade em uma festa deste porte não passe de uma versão neoliberal da política de pão e circo. Mas faz diferença que os protagonistas desta cena sejam homens negros e gays?

Hollywood ainda é majoritariamente branca e heterossexual. Basta uma olhada rápida no que está em cartaz – nos cinemas, Netflix, TV, e sobretudo contemplado o passado – para perceber que a maioria das produções cinematográficas oriundas dos estúdios de LA narra histórias de gente branca e hetero.

E mesmo quando narra histórias não brancas, Hollywood costuma escalar atores caucasianos para papeis principais – vide Angelina Jolie como Marianne Pearl ou Elisabeth Taylor como Cleópatra – ou atores hetero para papeis LGBTQI, como Benedict Cumberbatch interpretando Alan Turing ou Jared Leto no papel de Rayon em Clube de Compras Dallas.

April Reign, criadora do #OscarsSoWhite em 2015, publicou um artigo ano passado em que defendia a relevância da campanha, demonstrando que ainda falta muito trabalho para Hollywood dar conta da diversidade. E, em 2019, a academia parece ter entendido o recado; se meu registro de cerimônias passadas não falha, o número de corpos de homens brancos, tanto como apresentadores quanto como recipientes do prêmio, caiu consideravelmente.

Leia também: Oscar premia diversidade. Mas podia ter sido mais

Pantera Negra levou três prêmios, dentre eles um para Hannah Beachler, primeira mulher negra a ganhar o Oscar de design de produção, outro para Ruth E. Carter, primeira pessoa negra a ser premiada pela Academia por figurino. Ao todo, sete estatuetas foram para profissionais negros, e 15 para mulheres, e Rayka Zehtabchi e Melissa Berton levaram um por Absorvendo o Tabu, curta documental sobre menstruação. Os vencedores nas categorias de atuação foram Olivia Colman, Regina King, Mahershala Ali e Rami Malek; nenhum homem branco em vista, e o prêmio do último é pelo filme da vida de Freddie Mercury, ícone gay, do rock e do pop de origem indiana, nascido na Tanzânia e residente do Reino Unido até sua morte.

Estes fatos, que merecem comemoração, não foram bem recebidos por uma série de homens brancos que, confundindo a celebração da diversidade com um ataque a sua identidade –  acostumados que estão a ver corpos como os seus no centro de todos os direitos, posições de poder e representação simbólica – retaliaram.

Notoriamente, o presidente dos Estados Unidos, que enquadrou Spike Lee como racista. O discurso de Lee – para quem finalmente chegou um Oscar, pelo roteiro de Infiltrado na Klan e diretamente de um abraço entusiasmado de Samuel L. Jackson – narrou de forma emotiva e concisa aspectos concretos e duradouros da realidade da vida e trabalho forçosos de populações africanas no continente americano. Sugerindo que existe uma escolha moral entre o amor e o ódio, o genialmente auto-referencial diretor convocou a audiência a fazer a coisa certa.

Explicar o óbvio com fins didáticos partindo do pressuposto de que o que é óbvio para uns não é necessariamente óbvio para outros é bastante diferente de dar murro em ponta de faca no afã de demonstrar o óbvio para gente teimosa e soberba que não consegue dar conta do fato de que é parte do problema. A primeira ação é pedagógica e inclusiva; a segunda, desgastante e neurótica.

Talvez homens brancos refutem tanto a revelação incontestável da hegemônica presença de seus pares identitários no poder por, narcisicamente, não darem conta da realidade que interpela a ideia comum de humanidade que conferem a si mesmos.

Pelo mesmo motivo, é comum que nós, brancos, gritemos “racismo reverso” ao menor apontamento dos privilégios de nossa branquitude. Rever-se, e descobrir-se em vantagem social por conta das benesses do lado forte da opressão sistêmica – e não por mérito – chacoalha mesmo o senso de self.

Homem branco não é xingamento. Mas, se fosse, ao menos faria sentido real, visto que são mesmo a maioria dos perpetradores de violências sistêmicas. É exasperador que alguns relutem tanto em reconhecer este fato. E o fato é que a produção disso que chamamos de História, até agora, esteve majoritariamente nas mãos de homens brancos. A força reacionária que assola o ocidente me cheira a patriarcado jogando sujo para manter-se na vantagem. Aliás, como sempre o fez – e aqui desvio do glamour de La La Land para invocar uma recente história de horror sobre violência de gênero no Brasil, assustadoramente facilitada por aplicativos de flertinho ciborgue.

Do misógino médio e feminicida em potencial que a protagonizou – um homem branco – foi exigido pela justiça um exame psiquiátrico. É impossível não reparar que apenas homens brancos parecem poder agir monstruosamente mantendo intacta a percepção de seu caráter e índole.

Diz-se que ele surtou, que é maluco, ainda que investigações provem crime premeditado. Trump e Bolsonaro tampouco são doidos. Insisto: o que protege homens brancos das consequências dos comportamentos criminosos, perversos, violentos e predatórios que apresentam são o machismo e a misoginia estruturais, que sancionam socialmente os horrores que cometem.

Ninguém pode esperar que homens brancos se toquem, e enquanto eles empregam guerra para manter a majestade, vamos narrando outras histórias – as nossas histórias, por eles apagadas da/ou distorcidas para inserção na própria História.

E por falar em História, Lady Gaga é a primeira pessoa a ganhar, no mesmo ano, um Grammy, um Globo de Ouro, um Bafta, o Critics’ Choice Award, e agora um Oscar. Este último um prêmio que Madonna nunca escondeu almejar. Mas contrariando a perversão das narrativas machistas sobre rivalidade feminina, Madge e Gaga comemoraram a vitória com uma série de imagens em que posam juntas, comemorando abraçadas, e alegando que ninguém segura garotas italianas.

Ninguém segura o fim do patriarcado. Vai cair. E mulheres sabem disso. Já nos Oscars de 2018 avisamos: time’s up.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.