Diversidade

Não pode ser só eu a plantar, diz líder indígena Alessandra Munduruku

Vinda do Médio Tapajós, ela conta como foi da timidez ao protesto com Maia e ao prêmio de direitos humanos que recebeu em 2020

Líder indígena Alessandra Korap Munduruku (Foto: Cleia Viana/Câmara dos deputados)
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O que faz uma mulher indígena da etnia Munduruku, que se dizia tímida para falar em público, ser projetada da luta política no Médio Tapajós, chegar até Brasília e ganhar holofote ao ganhar um prêmio internacional de direitos humanos? Para Alessandra Korap Munduruku, é a vontade de viver. E, descendentes de guerreiros como são os Munduruku, quem vive deve lutar.

A indígena brasileira foi a homenageada com o prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos de 2020, cuja cerimônia de premiação foi feita online devido à pandemia. Alessandra conta que ficou honrada quando ficou sabendo do prêmio, mas não imaginava que o valor em dinheiro que receberia poderia ajudar a Associação Indígena Pariri, que já presidiu, a ter uma caminhonete apropriada para locomoção.

“Não entendi muito bem como me acharam nos Estados Unidos – o meu nome lá, sabe? E aí me explicaram que tinha me visto nas redes sociais e lido outras várias matérias sobre mim”, diz.

Uma delas foi um protesto [veja o vídeo abaixo] em uma reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em maio de 2019 – tempos em que a Covid-19 sequer era um pesadelo para os brasileiros, mas as ameaças de invasões de grileiros e garimpeiros nas terras Munduruku já chamavam atenção.

Além do aumento das invasões, a luta de Alessandra também passa pela pressão para o reconhecimento da Terra Indígena Sawre Muybu, às margens do rio Tapajós, no sudoeste do Pará, e denuncia a instalação de hidrelétricas e outros projetos como a Ferrogrão, ferrovia que ligará Sinop (MT) a Mirituba (PA) para atender aos interesses do agronegócio.

Sem detalhar onde está pelo perigo das ameaças que sofre – ela teve a casa revirada por invasores no ano passado -, Alessandra Korap conversou com CartaCapital sobre o atual enfrentamento à pandemia de coronavírus nas aldeias, o que a impulsionou à luta política e qual é o legado que quer deixar para futuras gerações Munduruku.

CartaCapital: Como você recebeu a notícia de que havia ganhado um prêmio internacional de direitos humanos?

Alessandra Korap: Foi por um amigo meu que já tinha vindo aqui na aldeia. Ele me chamou no Instagram falando que precisava falar urgente comigo porque uma organização queria entrar em contato. Quando marcamos o dia da conversa com a presidente da organização, ele foi o tradutor e me deu os parabéns pelo prêmio. Eu fiquei muito feliz, mas eu não imaginava o que era. Achava que era um troféu.

Não entendi muito bem como me acharam nos Estados Unidos – o meu nome lá, sabe? E aí ela me explicou que tinha me visto nas redes sociais e lido outras várias matérias sobre mim. Fiquei muito feliz e agradeci, porque uma organização grande de direitos humanos está ouvindo o nosso pedido de socorro. Não é só o povo Munduruku que pede socorro, e sim todos os povos indígenas do Brasil.

Quando me falaram que era 30 mil dólares, eu não entendi muito… não entendo muito a questão de dinheiro. E o meu amigo falou que, dependendo do real, vai dar mais de 130 mil reais. Quando ele falou isso, a primeira coisa que veio na minha cabeça foi ajudar a minha organização, a Associação Indígena Pariri, que há muito tempo sofre com a questão de transporte… Eu chorei no momento. Vou poder ajudar.

CC: E o que motivou a sair das relações internas na aldeia para se projetar na luta política pelos direitos dos povos indígenas?

AK: A minha aldeia é perto da cidade, e eu vi o desenvolvimento crescer. Não podíamos mais estar onde plantávamos ou pescávamos porque virava área particular. Todo esse crescimento da cidade nos afetava indiretamente.

O que mais me interessou uma reunião falando sobre políticas indigenistas do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), e eu comecei a perguntar sobre nossos direitos, porque muitas vezes a gente não tem conhecimento. Comecei a participar mais com os caciques – eu ouvia do que se falava sempre sobre autodemarcação, protocolo de consulta, o projeto da usina hidrelétrica que poderia afetar os territórios indígenas, e aí fui chamada para participar. Só que eu era muito tímida e ficava só ouvindo… imagina, eu, tímida? Mudou! Não consigo mais ser tímida, não.

Na minha cidade, eu já enfrentava prefeito e vereadores… sempre que eu tenho razão, eu vou para o enfrentamento. Eu não consigo recuar. Quando comecei a sair para fora do município, eu deixei de ser tímida.

O que me incentivou mais a falar e pegar no microfone foi uma grande guerreira, a Maria Leusa Munduruku, do alto Tapajós, que ganhou o prêmio Equador [da Organização das Nações Unidas], e ela me inspira até hoje. Muitas vezes, nós mulheres somos discriminadas até pelos caciques, e eu tive que ouvir e aprender. Quando eu disse pros caciques que queria fazer um encontro de mulheres no Médio Tapajós, foi um momento difícil em que eu precisei fazer uma articulação. O cacique não aceitava que as mulheres quisessem falar.

Na persistência, comecei a participar e eles começaram a me observar. Muitas vezes, eles acham que as mulheres precisam só cuidar de seu marido, filho e roça, mas eu não queria esse papel. Minha mãe mesmo brigava comigo porque não era pra eu falar, e hoje várias mulheres falam. Não pode ser só eu a plantar, brotar, crescer e morrer. Tem que vir outras. Temos que enfrentar o governo e as empresas, porque tudo que elas querem é acabar com o território e com a vida.

CC: Um dos grandes inimigos dos povos indígenas neste ano é a Covid-19. Qual que foi o impacto na sua aldeia? E como tem sido lidar, principalmente, com a perda de lideranças históricas? 

AK: Eu sofri com a perda de um dos meus tios, o Amâncio [Amâncio Ikon Munduruku], fundador da Fundação Pariri, que trouxe as escolas para dentro da aldeia. De repente, a gente o perdeu. Várias outras lideranças perderam também.

A gente percebeu que todos os indígenas que iam para os hospitais de campanha não voltavam mais. Eles simplesmente morriam. Foi um pesadelo. Teve um momento que eu só consegui dormir com remédio mesmo. Todo dia eu ouvia que morria um cacique, uma liderança, e todo o trabalho que a gente teve parece que foi em vão.

A gente sabia que o governo não gostava da gente, então a gente teve o trabalho de não depender muito do governo, porque sabíamos que eles queriam nossas mortes. Por isso que eu falo: a gente precisa estar viva para continuar a luta. Em todo lugar que chegávamos, não tinha controle. Eu chorava muito. Estávamos preocupado com as crianças, com os idosos, com as mulheres grávidas. Toda vez que um deles ficava sem ar, ia para o hospital e muitas vezes não voltava.

Então a gente começou a falar de curar com nossos próprios remédios. As mulheres fizeram pomadas, fizemos sabão para levar nas aldeias – eu tive que aprender para poder ensinar às mulheres. Teve um aprendizado, sim, em que eu me senti mais forte… foi um momento de muita tristeza, mas também um momento de repensar o que podemos fazer para ajudar o nosso povo. Mas, infelizmente, muitos não enxergam isso.

CC: Como fazer com que a sociedade brasileira conheça cada vez mais e apoie a luta indígena?

AK: Quando vamos denunciar, muitos acham que a gente não tem o que fazer. Nós viajamos para onde a porta está aberta para nos ouvir. Muitas vezes, quando a gente vai para um lugar desses [Brasília], a porta está fechada. As mulheres têm que largar a roça, largar de pescar, a família, levar seus filhos e passar dias para encontrar portas fechadas.

Sabemos conquistar com muita luta. Vou ficar sentada esperando que o governo me ouça? Não, você tem que fazer manifestação, tem que ocupar Brasília, estar com o papel protocolado para eles te ouvirem. O papel, muitas vezes, passa a ter 10 anos sem ver uma assinatura.

Com esse governo, a situação piorou. Se fosse aguardar pela educação e pela saúde, pelo território… esquece. Mas se for plantação de soja, mineração, para destruir o seu território, eles abrem a porta para te ouvir para mostrar que você é à favor. É muito venenoso.

Quando temos lideranças a favor dos indígenas, é mais fácil porque eles abrem as portas e eles querem conversar. Com a Joenia Wapichana [deputada federal pela Rede, primeira e única indígena do Congresso], a gente já foi duas vezes conversar. Sentamos com ela porque ela entende nossa luta e o que a gente tá passando.

CC:  A Sonia Guajajara, outra liderança importante, recebeu uma premiação junto à Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) neste ano; o cacique Raoni foi um dos favoritos ao Prêmio Nobel da Paz. Ao que você credita essa grande visibilidade dos indígenas brasileiros lá fora neste momento?

A visibilidade veio mais forte com as queimadas e quando São Paulo, a grande capital, ficou escura. Até então, existiam várias queimadas e a gente fazia várias denúncias, mas não aparecia. Para ter queimada, é preciso ter invasores, e os invasores estão aqui. Quando São Paulo ficou escura, foram perceber que veio da Amazônia por conta do Dia do Fogo. Isso chamou muita a atenção do povo e, felizmente, os povos indígenas tiveram coragem de falar.

Não é uma luta para todo mundo. É muito mais fácil ficar pelas redes sociais, mas quando você está na base e está de frente, é bem diferente. Você precisa se esconder, ficar toda hora mudando de número para não te acharem, porque sua batalha é uma luta para defender.

Nosso tema é ação, mas o que os nossos inimigos mais odeiam é o nosso sorriso. E a gente é feliz. A gente sorri para não ficar a vida toda triste. A nossa maior felicidade é ter o seu rio, a floresta, por mais com vários invasores, mas a felicidade de ter a vida, liberdade de ir onde você quiser.

A partir do momento que a empresa pega, você tem que dar satisfação [para a empresa] de que horas vocês vai chegar, que horas vai sair, onde você vai, e quem você vai colocar dentro do seu território. É monitorado 24h.

Qual é a liberdade que queremos? A luta vem dessa estrutura do coletivo. Tenho sempre que agradecer a quem confia em mim. Quando recebo críticas de fora, eu não ligo não. Mas se é alguém que me conhece e falar: ‘você está errada’, vou abaixar minha cabeça e pedir um conselho.

A prioridade sempre vão ser as mulheres, as crianças. Eu sei que vou deixar nem que seja um pedacinho de chão, porque quando eu for, outra pessoa vai poder usar, vai poder correr.

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