Diversidade

A vida dos LGBTs na zona rural

No conservadorismo do campo, moradores ainda se dividem entre curiosidade e falta de entendimento sobre homoafetividade

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Ninguém entendia bem como Altair Norback daria conta do trabalho no campo. Ele e outras 100 famílias haviam acabado de ser assentados em Nova Santa Rita, cidade gaúcha de 26 mil habitantes. E as primeiras atividades eram pesadas: erguer cercas para delimitar os espaços, cortar lenha, capinar o terreno, etc.

Não que Altair tivesse algum problema físico ou de saúde. A questão era outra. Altair é gay. E, para seus companheiros rurais, trabalho braçal é coisa para “macho de verdade”. “Quando me viram fazendo essas coisas foi um espanto total”, relembra Altair. “E só foi um espanto por que as pessoas acham que esses trabalhos são restritos aos homens fortes, bem machos”, conta.

Quebrar preconceitos faz parte da vida de Altair desde os 16 anos (hoje, ele tem 45). Nascido e criado em áreas rurais, sempre lidou com presenças masculinas que seguiam à risca os comportamentos exigidos de homens verdadeiramente homens – sem qualquer traço mais sensível ou delicado, características tão ligadas aos papeis femininos.

E parte dessas regras exige que homens se casem com mulheres. Até porque, na roça, família só existe na forma tradicional: homem, mulher e filhos. Dois homens ou duas mulheres não cabem. Diz a religião que Deus criou assim e assim deve ser. E, dentro de comunidades tradicionais, os preceitos da religião ainda regem os comportamentos.

Até por isso, ainda na adolescência, quando começou a sentir atração por homens, Altair foi aconselhado a procurar um padre. “Eu queria abraçá-los, tocá-los. Eu não entendia e fui desabafar com o padre”, conta. A solução do padre: rezar um monte de pai nosso e ave maria para se livrar daquele mal. “Ele disse que era coisa maligna! Olha que padre cruel”, relembra.

Rezou, rezou, rezou, rezou, mas nada do desejo passar. Altair aceitou sua sexualidade aos 16 anos. Sentiu algumas pessoas se afastarem, mas os amigos verdadeiros ficaram. E, ainda que não entendam, respeitam Altair. “Causa estranheza a eles porque nunca tiveram abertura para o diálogo, para debater. Só veem os estereótipos de gays que passam na televisão. Então não entendem muito bem, por falta de conhecimento mesmo”, diz Altair.

Sem informação, nem sempre essas pessoas compreendem como funcionam relacionamentos homoafetivos. E só acham respostas ligando essas pessoas a problemas religiosos (“coisa do demônio”) ou de saúde (aquele antigo estigma que ainda relaciona homossexualidade à doença).

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Juntas desde 2007, Mariana Arante e Daiane Paz também deram um nó na cabeça dos colegas da zona rural de Catanduvas, em Santa Catarina. As duas têm um filho de três anos, gerado por meio de inseminação in vitro.

“Na maioria das vezes, eles têm dúvidas muito simplórias. Achavam que uma de nós duas tínhamos algum problema biológico – uma de nós devia ter pênis, já que temos um filho”, explica Mariana. “Não chega a ser um preconceito no sentido de ataque ou violência. É de não saber o que acontece mesmo, com pouco esclarecimento”, completa. E gerou ainda outra dúvida: como duas mulheres, sem nenhum homem para dar suporte, podem cuidar da terra?

Mariana.jpg Mariana e Daiane vivem em Catanduvas, em Santa Catarina, e precisaram explicar como duas mulheres tinham um filho (Rafael Stedile)

Mariana e Daiane vivem num assentamento de quase 200 hectares – mas a maior parte é área de preservação permanente. Oito famílias ocupam lotes de 7,5 hectares, onde plantam milho, feijão, arroz e outros vegetais para consumo próprio. As duas alternam entre o cuidado com o filho e a manutenção da horta.

Se dentro dessa pequena comunidade, os olhares curiosos e a falta de conhecimento são vencidos pelo dia a dia, na cidade de quase 10 mil habitantes, o preconceito não passa. “Eu sinto mais olhares desagradáveis em Catanduva, na parte urbana, do que no assentamento”, explica Mariana.

União de bandeiras

Há uma razão: Mariana, Daiane e Altair fazem parte do Movimento dos Sem Terra e, desde 2015, o MST tem aberto oficialmente discussões e espaço para os LGBTs do grupo. Justamente porque, no campo, eles não se sentiam confortáveis – muito menos representados.

“A base dos acampamentos expressa a sociedade. E as pessoas são religiosas, tratam vivências sexuais homoafetivas como pecado. Quando chegam ao campo, acabam tendo um choque”, explica Alessandro Mariano, um dos 150 membros do coletivo LGBT do MST.

Alessandro viveu as mesmas reclamações de Altair e Mariana – e é o mesmo que deve vivenciar qualquer pessoa assumidamente homossexual em áreas tão conservadoras quanto as rurais. “No campo o machismo fica muito mais implícito.

Há uma confusão em associar o trabalho do campo à imagem do homem heterossexual, viril. E os LGBTs sofrem”, diz Alessandro. “Nessa relação do machismo, do patriarcado do campo, o padrão heterossexual é normalizado. Essa é uma grande contraposição que a gente tem feito”.

Com mais liberdade, segundo Alessandro, cada vez mais as pessoas se sentem confortáveis e seguros para assumir sua sexualidade. E a luta pela reforma agrária se une à militância LGTB. Com os debates sobre diversidade (inclusive sobre feminismo) e a convivência com a população LGBT, os assentamentos do movimento parecem mais modernos do que as zonas urbanas das cidades interioranas – como contou Mariana. 

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