Diversidade

A história de Bianca, uma vida salva por políticas de inclusão

Casa 1 e projetos de inclusão salvaram a vida da mulher trans que poderia ser mais uma estatística

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Moka é o nome da empresa onde quero chegar. Coloco no GPS e ele me leva até um prédio branco, um arranha-céu na avenida Angélica, região central de São Paulo. Anuncio minha chegada na portaria e subo até o 9º andar. O elevador abre e eu me deparo com um ambiente absolutamente corporativo. Salas de reuniões com vidros, pessoas de terno, salto alto, cabelos bem arrumados e um constante senso de urgência. Encontro um sofá branco, ao lado da entrada, e me sento.

Após cinco minutos, ouço um “oi querido,  desculpa a demora, tudo bem?”. É Bianca Vanzo, minha entrevistada. Iniciamos o papo às 16 horas e deixamos o prédio 30 minutos depois. “Bora para um café?”, disse ela, que vestia uma calça social preta, uma blusa agarrada nude e um salto bege. “Bora”, respondi.

Enquanto caminhávamos até o café escolhido por ela, reparei que Bianca é uma pessoa que chama muito atenção por onde passa. Estamos falando de uma mulher loira, alta, bem magra, que esbanja sensualidade em um andar firme em cima do seu salto. Os olhares são de admiração, desejo, e, algumas vezes, de preconceito.

Bianca é uma mulher trans. Rompeu barreiras. É Fiscal de Títulos em uma empresa de fundo de investimento. A paulista, natural de Ribeirão Preto, mora sozinha em um apartamento na Bela Vista, região central de São Paulo. Além do trabalho fixo na Moka, Bianca faz frilas na noite badalada da cidade. De quinta a domingo, recebe os convidados das casas noturnas Yacht e Jerome.

Não acabou. Bianca é ainda coordenadora administrativa do Transsol, um coletivo que da aulas de costura, bonecaria, crochê vendas e moda para pessoas trans. As aulas e os encontros acontecem na Casa 1, um projeto de cultura e acolhimento LGBT no Centro de São Paulo, local onde já foi moradora.

Bianca é fruto de uma trajetória que muitas pessoas não dariam conta de superar. Passou por abandono familiar, estupro, fome e prostituição. A história de uma pessoa que seria apenas estatística, mas encontrou em seu caminho iniciativas como a Casa 1 e empresas que estão abertas a receber pessoas independente de suas escolhas e de seu gênero.

Adalberto, o menino afeminado do interior

Adalberto Silva Souza Júnior nasceu em 14 de janeiro de 1990, em Ribeirão Preto. O capricorniano morava com sua mãe e dois irmãos de pais diferentes. Com um pai ausente, foi sustentado pela mãe e pela madrinha, com quem mantinha um contato bem próximo.

Sendo o filho mais velho, começou trabalhar cedo. Aos 12 anos, percebeu que era diferente dos meninos do colégio. Tímido, ele sempre foi motivo de bullying. “Achava que eles estavam certos quando faziam essas brincadeiras, mas ao mesmo tempo me sentia confusa”, diz Bianca, lembrando-se de Adalberto.

Aos 14, se assumiu para família. Havia começado a namorar um rapaz de 24 anos. “Descobri depois que ele já tinha uma família. Ele me iludia para abusar de mim.”

A família recebeu a notícia de sua sexualidade de forma natural. A mãe apoiou. A vida seguiu normalmente. Mas foi com esse namorado, que Adalberto sentiu que era diferente até mesmo dos meninos gays que conhecia. “Meu namorado me pediu para usar lingerie feminina. Me senti completa, inteira, mas com muito medo. Não entendia o que estava acontecendo. As pessoas me chamavam de viadinho.”

Fim do namoro

Sempre bem magro, o menino de 15 anos não conseguia se defender das agressões físicas no colégio. Foi aí que Adalberto teve uma ideia: utilizar a inteligência em vez de músculos. “Fazia uns trabalhos e colocava os nomes dos meninos, com isso eu fui ganhando espaço e proteção. Depois eu tive um ensino médio mais tranquilo, sem agressões.”

Adalberto não tinha facilidade de se relacionar com as pessoas e encontrou no mundo virtual sua chance de fazer amigos. Sempre utilizou os videogames para socializar e viver uma realidade que não a dele.

Passou a viver um pesadelo quando seu padrasto voltou a frequentar sua casa para a formatura de seu irmão. Em uma noite, Adalberto foi estuprado pelo padrasto.

“Fiquei arredia, nervosa, minha mãe me questionava o que estava acontecendo e eu não falava. Não queria sair de casa, não queria ver ninguém. A única coisa que eu fazia era ficar na frente do computador. Criei coragem e resolvi contar para minha mãe e ela me levou para a psicóloga. Foi bom conversar. Tomei remédios por um tempo. Quando me senti mais forte, resolvi me aprofundar e dar início ao período da minha transição.”

A existência de Adalberto chegava ao fim

Adalberto seguiu com sua vida. Formou-se no colégio, trabalhava cuidando de idosos e tentava ingressar em uma universidade. Desde que sofreu o abuso, continuou o tratamento e aos poucos foi entendendo que não era apenas homossexual.

Aos 24 anos, entendeu que seu corpo era diferente daquele com o qual se identificava e procurou ajuda no SUS. Foi encaminhado por sua terapeuta, em agosto de 2014, ao Hospital das Clínicas, e começou seu tratamento. “Não sabia como contar para minha mãe. Pensei: ‘vou, faço a consulta, vejo os processos, se é algo em que me identifico e depois conto'”.

Um dia, o menino que estava com os dias contados voltou para casa e deixou a mochila em cima do sofá. Foi tomar banho e nesse tempo sua mãe mexeu em suas coisas e encontrou os papeis do tratamento. “Nossa conversa foi rápida. Ela falou que, se era isso mesmo que eu queria, na casa dela não dava para ficar. Saí e, quando voltei, minhas coisas já estavam arrumadas.”

Adalberto deixou a família na última atitude que tomou como um garoto.

Nasce a mulher Bianca

Bianca foi morar na casa de Jéssica, uma amiga. Ela chamava os país de sua amiga de pai e mãe e era tratada por eles como uma filha. A menina de 25 anos juntou um dinheiro e saiu da casa da amiga para alugar um quarto.  Durante a mudança nas roupas, cabelo, maquiagem e hormônio, Bianca ficou sem ver sua família, até que um dia reencontrou todos em uma situação nada agradável: o velório de seu avô.

“Foi muito forte, até então ninguém ainda tinha me visto como Bianca. Eu não sabia como minha mãe iria reagir, estava com medo. Algumas pessoas que eu até criei coragem para conversar. Me arrependo. Não deveria ter conversado com ninguém. Minha mãe não olhou na minha cara durante o velório. Óbvio que não ia chegar até ela. Só se ela mostrasse algum sinal, mas não aconteceu. Fiquei extremamente abalada.”

Bianca entendeu naquele momento que estava sozinha. Trabalhava como vendedora em uma empresa e sentiu o peso da transfobia. Foi demitida. Procurava emprego e, em toda entrevista questionavam o RG de Adalberto e a imagem da mulher. Voltava para casa derrotada. Desesperada. Precisava de dinheiro para sobreviver.

Estimativa feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), com base em dados colhidos nas diversas regionais da entidade, aponta que 90% das pessoas trans recorrem a prostituição em algum momento da vida. Bianca se tornou estatística.

Com a palavra, Isis Venturini, a prostituta magrela

Bianca está sozinha, desempregada, renegada. E decide virar Isis Venturini.

“Não sabia como fazer. Fui para a avenida Brasil, em Ribeirão Preto. Uma experiencia horrível. A cafetina queria que eu ficasse na casa dela. É um modo dela prender as meninas e ganhar mais dinheiro, pois você paga o aluguel da casa e da rua. Expliquei que tinha casa e quis fazer um teste. Achei que ela fosse me agredir. Sempre cuidei muito bem do meu corpo e ia entrega-lo para qualquer um.”

Bianca segue com suas memórias. “Primeiro dia foi horrível. Não tenho, até hoje, silicone. Sempre fui magra, e isso era motivo de chacota.  ‘Você não é travesti. Travesti tem peito. Você é um viadinho’, diziam para mim.”

“Se parava algum carro pra mim, elas se sentiam ameaçadas. Existem muitos traficantes que procuram as meninas ali. Se fulano de tal fica sabendo que saiu com ciclano, matam. É uma situação de vulnerabilidade pura. Tem muita menor de idade com documento falso. Um dia eu vi uma menina subir em um carro bonito Não voltou mais. Depois disso,  fiquei 15 dias em confinamento.”

“Não conseguia trabalho, acabei voltando para a prostituição. Tentei sites, bate papo, e minha amiga concordou em me receber, pois também não me queria na rua. Deu certo por um tempo, mas logo a filha dela quis mudar para Ribeirão. Não poderia mais ficar lá. Isso foi em 2015.”

“Certo dia, faltava um cliente para eu atingir o valor que queria. Encostou um carro, combinamos o valor e ele topou. Senti que não deveria subir no carro. Mas subi. Precisava daquela grana. Chegamos ao motel e ele não tinha o dinheiro combinado. Estava muito drogado. Começou a ficar violento e pedi para ir embora. Ele não deixou. Na hora de sair, não tinha dinheiro para pagar o motel. Me deu o celular e pediu para eu pagar. Disse que passaríamos em um caixa eletrônico e ele sacaria o valor. ‘Te deixo onde te peguei, você devolve meu celular e vamos embora’, disse ele.”

“Como ele não estava mais agitado, aceitei. Só que ele não me levou de volta para o lugar que tínhamos combinado. Fomos para um canavial. Fiquei extremamente nervosa. Não tinha como sair com o carro em movimento. Achei que aquele seria o último dia da minha vida”, recordou Bianca.

A mulher viver para contar a história, mas não sem muita dor. Eles saíram do canavial, mas Bianca foi espancada e largada no meio de uma estrada. Depois disso, ficou ainda uma semana na rua, procurando empresa e ouvindo negativas. E decidiu então se mudar para São Paulo.

A salvação pelas políticas de inclusão

Com dois mil reais no bolso, conseguidos com a prostituição, Bianca rumou para São Paulo. Encontrou uma república na estação Belém e começou a procurar emprego. Encontrou uma vaga em telemarketing.

Algum tempo depois, foi demitida por conta de uma política de cortes na empresa.  Se viu novamente em dificuldades, mas agora mais forte. E foi então que encontrou a Casa 1, um projeto de cultura e acolhimento LGBT no centro de São Paulo. Novo problema: Bianca tinha 28 anos e a idade máxima do acolhimento é de 25. Reprovada.

Não desistiu e pediu uma nova entrevista. “Chorei para eles, expliquei toda a minha situação. E recebi um sim. A Casa 1 oferece muito mais que moradia, é uma experiência de vida, de fato uma ressocialização. Existem diversas atividades no local e eu passei a fazer todas.”

Mais que isso, a instituição tem parcerias com empresas, como agência Cuco, especializada em eventos. Surgia uma nova oportunidade de trabalho para Bianca, em uma concorrida festa. “Comecei a aprender muito e a fazer contatos. Foi lá que eu cresci”, disse.

Um tempo depois, Bianca foi aceita na Moka, seu emprego atual, e passou por um intenso treinamento. “Não basta apenas empregar, você precisa preparar essa pessoa, realmente entender que a sociedade nos jogou nessa situação e não temos culpa.”

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