Riad Younes

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Médico, diretor do Centro de Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e professor da Faculdade de Medicina da USP.

Opinião

A verdade nua e crua

A revista New England Journal of Medicine fez um editorial extenso e eloquente sobre os médicos que espalham desinformação nas redes sociais

Pílula de Hidroxicloroquina - Foto: GEORGE FREY/AFP
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Fake news. Desinformação. Enganação. Palavras que se tornaram uma rotina diária. Está ficando difícil distinguir a verdade da mentira em praticamente todos os aspectos de nossas vidas. Na medicina, não é diferente. Durante a pandemia, isso se exacerbou, com médicos divulgando falsas informações que tiveram o potencial de prejudicar as pessoas, e até levar à morte.

Na terça-feira 24, a revista New ­England Journal of Medicine fez um editorial extenso sobre isso. Sob o título “Médicos espalhando desinformação nas mídias sociais: respostas certas e erradas ainda existem na medicina?”, o texto começa com a seguinte frase: “A medicina tem um problema com a verdade”.

Conversamos a respeito desse tema com o doutor Carlos Eduardo Pompilio, pensador, médico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Literatura, Narrativa e Medicina da USP e autor do livro O Tempo da Medicina (Via Verita, 2021).

CartaCapital: O que discutiram os autores do editorial?

Carlos Eduardo Pompilio: O argumento desses cientistas é eloquente: na era das mídias sociais e da intensa politização da ciência, a verdade tornou-se fruto de uma contribuição colaborativaw ­(crowdsourced). Se muita gente espalha e acredita em alguma coisa, outros acabarão por aceitá-la como verdade apenas por não acreditar que tanta gente possa estar enganada.

CC: Mas isso não é necessariamente ciência sólida.

CEP: Essa forma de se atingir a verdade não tem nada a ver com o método científico. Segundo os doutores R.J. Baron e Y.D. Ejnes, membros de sociedades médicas estadunidenses, a sabedoria das massas tem um enorme poder nas sociedades democráticas, nas quais escolhas são feitas de acordo com as opções da maioria. Estão em jogo aqui conceitos muito caros a nós, como direitos e liberdades. Mas, quando se trata de decidir se vacinas funcionam ou se o peso de um avião é adequado para sua estrutura, tal raciocínio não parece ser o mais adequado. Isso cria um enorme problema para instituições e para quem decide as políticas públicas.

CC: Como eles encaram a divulgação de fake news?

CEP: O problema que Baron e Ejnes levantam institui-se quando alguém autorizado pela sociedade para exercer medicina, que tem, portanto, acesso a corpos, terapias, liberar ou proibir pessoas de trabalhar ou de ir a debates, afirma que “crianças não transmitem Covid” ou que “as vacinas não previnem mortes ou hospitalizações”. Nesse caso, deixamos de lidar com simples desacordos profissionais e passamos a falar de erros e mentiras.

CC: A incerteza é parte inerente da medicina. Será que alguém tem a verdade absoluta?

CEP: Médicos são acostumados a lidar, desde muito cedo, com incertezas. Isso se deve ao fato de que a todo momento são exigidas decisões. Operar ou não operar. Tratar com esta ou com aquela medicação. Agir ou não agir. Uma decisão, no momento em que é tomada, não permite mais dúvidas, apenas compunção ou contentamento quando erradas ou certas, julgamentos que apenas ao tempo caberão. Transmitir essas incertezas aos pacientes é sempre complicado, mas o que é de fato lamentável é ceder ao desejo de confortá-los com fantasias travestidas.

CC: Durante a pandemia, afirmações maliciosas, enganosas, alcançaram níveis sem precedentes. Isso é perigoso para a saúde pública.

CEP: Exatamente, no caso de afirmações que citei não se trata apenas de alegações discutíveis. São respostas totalmente erradas! Os autores do editorial defendem que quem afirma tais coisas deveria perder sua licença para exercer medicina nos EUA.

CC: E no Brasil?

CEP: No Brasil, algumas associações médicas tiveram um papel omisso ou mesmo contrário à punição desse tipo de desinformação. O Conselho Federal de Medicina deixou a prescrição de drogas para o tratamento precoce da Covid “a critério da autonomia dos médicos”, mesmo já havendo evidências suficientes de que vários componentes do chamado “Kit Covid” não funcionavam. O presidente da República afirmou, na ONU, que essa posição serviu de base para a adoção de políticas públicas do País. Nesse caso, o problema com a verdade fica bem exposto. São órgãos reguladores da profissão médica que deixam de estabelecer critérios de conduta. Aqui, além da pandemia, temos um verdadeiro pandemônio de condutas. Tudo para deixar os pacientes ainda mais inseguros e sem saber como proceder. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A verdade nua e crua”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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