Cultura

Uma lei, mil e um empecilhos

Seis meses após a publicação de novas regras de patrocínio, produtores de projetos tradicionais começam a abrir mão dos incentivos

Exigências inviáveis. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo lançou um programa de patronos para ajudar na realização da sua 46ª edição. - Imagem: Mário Miranda Filho/Mostra SP
Apoie Siga-nos no

Quando veio a público, em fevereiro deste ano, a Instrução Normativa 1 deixou atônito o setor cultural. Na prática, a regulamentação engendrada pela Secretaria Especial da Cultura, então comandada por Mário Frias, inviabilizaria vários projetos feitos com incentivos federais.

Passados seis meses, enquanto Frias faz campanha para deputado federal, os efeitos da IN ganham materialidade. Em junho, uma segunda IN, a número 2, alterando a primeira, foi publicada. Mas ela pouco melhorou as coisas.

Embora, desde o início do governo Bolsonaro, as pressões sobre o modelo de renúncia fiscal sejam enormes, a captação, até 2021, tinha se mantido nos patamares anteriores. Agora, isso tende a mudar.

Na semana passada, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo anunciou que fará a 46ª edição, em outubro, sem a Lei Federal de Incentivo à Cultura – a Lei ­Rouanet – e lançou um programa de patronos. Também o Festival de Inverno de Campos do Jordão, encerrado no último domingo de julho, viabilizou a 52ª edição sem a lei.

“Nosso escritório é conhecido por sempre dizer: ‘Vamos lá!’ Pela primeira vez, me vejo dizendo: ‘Desta vez, não vai dar’”, conta a advogada Cristiane Olivieri, resumindo o estado de espírito do setor.

Cristiane observa que, para além dos empecilhos concretos, as INs criaram uma enorme insegurança jurídica – inclusive, porque várias regras não são claras. “Algumas deliberações parecem, simplesmente, ter problemas de redação. Mas quem vai arriscar?”, pergunta.

“Algumas deliberações parecem ter, simplesmente, problemas de redação”, diz Cristiane Olivieri

Se há muito tempo os pequenos produtores penam para lidar com as exigências e as prestações de contas da lei, hoje também as instituições maiores, que contam com grandes escritórios de advocacia e equipes contábeis, se sentem assim.

Para a Mostra, um evento anual, sem estrutura fixa, caminhar por esse labirinto legal tornou-se inviável. “Na secretaria, ninguém dá clareza de nada. Há meses, prometem publicar novas regras para resolver algumas coisas. Prometem para dentro de 30 dias, mas nunca sai”, diz Renata de Almeida, diretora da Mostra.

A IN prevê, por exemplo, que um evento do porte da Mostra ofereça, como contrapartida ao uso da lei, um curso de 40 horas, presencial, para mil pessoas, sendo 50% delas “estudantes e professores de escolas públicas, crianças em orfanatos ou idosos em casas de repouso”.

“Sempre fizemos ações de formação, mas algo nessa proporção escapa da nossa capacidade, e é impossível obrigar as pessoas a frequentar cursos ou salas de cinema, mesmo gratuitos”, pontua Renata. Para não correr o risco de se comprometer a entregar ações irrealizáveis, ela fará o evento com os recursos diretos aportados por Sesc, Spcine e Projeto Paradiso e com o programa de patronos, que oferece cotas a partir de 2 mil reais.

Chai Rodrigues, produtora do grupo de circo e teatro LaMínima, cuja estrutura faz jus ao nome, não nega que, apesar de as oficinas integrarem, há anos, a rotina da companhia, as novas demandas a inquietam. “Estamos falando de um projeto artístico, não pedagógico. Se isso não for bem dosado, podemos ter uma distorção”, diz, ecoando a diretora da Mostra.

O LaMínina está em turnê por nove cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo, em um projeto de celebração dos 25 anos do grupo (ler texto à pág. 56) contemplado, via Lei Rouanet, por um edital da Vale. O périplo enfrentado por eles é revelador do desmonte da estrutura de fomento – processo do qual as duas INs são o cume.

Após ser selecionada no edital, no segundo semestre de 2021, a companhia tinha três meses para obter o número do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) – registro oficial do projeto no governo. O tempo corria, e nada.

Périplo. O LaMínima tinha patrocínio, mas não conseguia contato com a Secretaria – Imagem: Carlos Gueller

Passados mais de dois meses, veio o aguardado retorno: o projeto tinha sido arquivado por causa de um erro. O número de apresentações divergia em dois campos. “Corrigimos e pedimos o desarquivamento. Levou mais de um mês para o pedido ser processado”, conta a produtora. Um dos artistas do LaMínima, Fernando Sampaio, chegou a aproveitar uma apresentação em Brasília para ir à sede da Secretaria. Deu com a cara na porta.

“Diariamente, eu mandava e-mails para todos os endereços disponíveis no site”, detalha Chai. Aos 45 do segundo tempo, o projeto foi habilitado. Mas a saga não acabava ali. Depois de passar pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, rito ­usual, o projeto teve de ser referendado pelo secretário de Cultura – exigência criada em um decreto publicado no ano passado.

Quando o projeto chegou a essa fase, Frias tinha acabado de deixar a pasta. “Em uma das únicas vezes em que consegui ser atendida por telefone, uma pessoa me disse: ‘Você precisa ter calma. O secretário tem muitos projetos para ler. E ele ainda precisa se adaptar’”. Entre idas e vindas, a companhia, já no limite do prazo, pôs, na semana passada, o pé na estrada.

Outro ponto sensível diz respeito aos Planos Anuais, que podem – ou podiam – ser apresentados por instituições com atividades contínuas e perenes. As INs tiraram essa possibilidade, por exemplo, dos museus privados – caso do Masp – e estabelecem que todos os planos terão de ser submetidos ao secretário. “Muitas instituições têm os planos anuais vigentes (alguns apresentados em 2019). Mas, em 2023, vamos ter uma crise de proporções inimagináveis”, antecipa Cristiane.

Marcelo Lopes, diretor-executivo da Fundação Orquestra Sinfônica do ­Estado de São Paulo (Osesp), enviou o plano de 2023 para a Secretaria e aguarda a avaliação. “As alterações implicam uma nova estruturação de despesas e menor flexibilidade de atividades, sobretudo fora da Sala São Paulo”, explica. “Ainda não sabemos, por exemplo, como realizar os festivais de Verão e Inverno de Campos do Jordão e os concertos itinerantes, fundamentais para a circulação do produto cultural.”

Outra bomba-relógio é que, desde fevereiro, a publicação dos números de Pronac tem ocorrido a conta-gotas. Sem Pronac, não há captação. E, como se sabe, sem captação de recursos incentivados, dificilmente há patrocinador.

“A lei foi criada para mostrar para a iniciativa privada que valia a pena investir em cultura”, lembra Renata, retomando a origem do programa pensado por Sérgio Paulo Rouanet no início dos anos 1990. “Mas, como o investimento sempre foi 100% incentivado, acho que a lei passou o recado errado: só vale a pena investir em cultura com renúncia fiscal de 100%.” •


25 ANOS DE PALHAÇADAS

Na pandemia, o LaMínima voltou a se apresentar em praças e a “passar o chapéu”

Em 2021, quando a pandemia começou recrudescer, o grupo LaMínima voltou ao início de tudo: iam para praças de São Paulo e de Cotia com uma caixa de som, vários apetrechos e um chapéu.

A qualidade das performan­ces, além de impressionar os desavisados, passou a atrair quem já os conhecia. Ao fim de cada apresentação, os palhaços passavam o chapéu e falavam que a pandemia não lhes deixou alternativa a não ser retornar às ruas, ambiente onde nasceram, em 1997.

Criado por Fernando Sampaio e Domingos Montagner, o LaMínima estreou com o ­espetáculo LaMínima Cia. de Ballet. Nele, Sampaio e Montagner, os palhaços Agenor e Padoca, recuperavam velhas paródias acrobáticas e mostravam seu talento para o humor físico. Desde então, foram 16 espetáculos, dezenas de prêmios e, no meio do caminho, uma tragédia.

Em 2016, quando o grupo se preparava para celebrar 20 anos, Montagner morreu afogado no Rio São Francisco, durante as gravações da novela Velho Chico, na TV Globo. “Fomos, durante 30 anos, uma dupla de palhaços. A passagem do Domingos foi algo muito forte, muito duro”, diz, contido nas palavras, Sampaio.

Ambos haviam se conhecido no Circo Escola Picadeiro, em São Paulo, em meados dos anos 1980. Sampaio decidira virar palhaço depois de ver a peça UBU – Folias Físicas, Patafísicas e Musicaes, dirigida por Cacá Rosset, do Ornitorrinco. Foi estudar com Roger Avanzi, o Picolino, e assim retorceu seu destino.

Administrador de empresas, passou a dividir-se entre o trabalho em escritório e apresentações em praças, festas de criança e portas de lojas. Até que chegou a hora de apenas fazer rir. “É um ofício que não é nosso pai que escolhe para a gente, né?”, diz. “Apesar de ser verdade que a gente mata um leão por dia, é maravilhoso.”

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Uma lei, mil e um empecilhos”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.