Cultura

Tito Leite desafia clichês do sertão nordestino em romance de estreia

Monge beneditino, o autor escreve em ‘Dilúvio das Almas’ uma história de violência na vida árida de uma pequena cidade do interior

(Foto: Domingos Melo)
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A tranquilidade com que o escritor Tito Leite fala na chamada de vídeo com a CartaCapital talvez não dê ideia de prosa tensa e da violência em seu excelente romance de estreia, Dilúvio das Almas, recém-lançado pela Todavia. O livro tem como protagonista Leonardo, um rapaz que depois de viver algumas décadas em São Paulo, volta para sua cidade, que dá título ao livro, no Sertão Nordestino, e se depara com um realidade que nunca mudou desde quando saiu – o que, possivelmente, se perpetua por décadas.

Leite, que é monge beneditino e vive no Mosteiro de São Bento, em Olinda (PE), conta que uma das motivações que o levaram a escrever o romance foi desafiar os clichês sobre o sertanejo. “Essa personagem costuma ser retratada sempre sorridente, mas a verdade é outra. Eu queria mostrar um Sertão com sua realidade árida, suas disputas e violência.”

Quando Leonardo volta à cidade Dilúvio das Almas reencontra a família e as histórias que permanecem de vinganças, dominação e disputas por terra. “No sertão, quando se pensa em partidos, trata-se de famílias, e nisso a morte escancara a falta de dignidade da política”, escreve o narrador-protagonista. Por meio dessa personagem, Leite usa o passado para acessar o presente do Brasil profundo. 

A trama se passa em dois momentos, no começo dos anos de 1970, quando Leonardo sai de casa, e vem para São Paulo, e depois, no retorno, duas décadas depois. A escolha desses tempos não é, obviamente, por acaso. O primeiro é o auge da ditadura, o outro, para Leite, é um período de uma falsa moralidade que parecia superada, mas que voltou com força nos últimos tempos no país do século XXI. 

“A mim, interessava muito retomar as questões políticas e até econômicas dos anos de 1990, coisas que pensávamos ter ficado para trás, mas que estão aqui novamente, como o moralismo, uma vigilância da sexualidade alheia, e também a inflação e incertezas políticas.” Ele destaca que, no começo dos anos 2000, com o governo Lula, aconteceram diversos avanços, que acabaram minados depois do golpe de 2016. 

Para figurar esses momentos em seu romance, Leite explica que começou a história a partir do protagonista, testando elementos e maneiras de narrar até encontrar a voz do próprio personagem contando sua história. Nascido na cidade Aurora, no interior do Ceará, o escritor afirma que o mundo com que Leonardo se depara em Dilúvio das Almas é muito próximo daquele onde ele mesmo cresceu. “Quando era criança, sempre ouvia dizer: ‘Em cara de homem não se bate, se for para brigar, é para matar.’ Essa  é a realidade do Sertão.”

Tal máxima é incorporada na cidade fictícia do romance. As brigas acabam, mais cedo ou mais tarde, em morte e vingança, que parece dar continuidade a um ciclo sem fim. As disputas entre os homens, no livro, lembram, me certa medida, aquelas dos faroestes. Mas o escritor cita outra tipo de narrativa com influência. “Gosto muito de Faulkner, o sul dos Estados Unidos dele é muito parecido com o Sertão nordestino.”

Morando no Mosteiro, o escritor tem uma rotina pautada pelas badaladas do sino. As atividades começam às 5h15 da manhã, e seguem ao longo do dia, envolvendo orações, meditações e trabalhos. Ele conta que encontra tempo para escrever entre uma atividade e outra – qualquer momento que sobra está, ao menos, fazendo anotações. Mas Dilúvio das Almas teve um processo peculiar, que começou em junho de 2020, ainda no início da pandemia, quando conseguiu voltar para sua cidade, onde passou três meses completamente dedicado a seu livro. 

O escritor explica que gosta muito de autores e autoras contemporâneas – “acho importante lermos nossos pares” – e cita como seus leituras mais recorrentes a argentina Selva Almada, e os brasileiros Joca Reiners Terron e Micheliny Verunschk. No audiovisual, gosta da série Mad Men (“revejo todos anos”), e confessa que adora os filmes de Pedro Almodóvar (“Carne Trêmula é meu favorito”), Quentin Tarantino e Cláudio Assis (“Baixio das Bestas é um grande filme”). A história de Dilúvio das Almas não deixa de estar, ao seu modo, inserida nesse mesmo universo dos longas do cineasta pernambucano. 

O autor já tem dois livros de poemas publicados, e isso aparece claramente em sua prosa. “O que gosto na poesia é a metalinguagem, a possibilidade de tirar toda a gordura do poema, deixar apenas o filé. Levei isso para a prosa também. É um romance curto, e a gente o lê rápido, mas não por esse motivo. As frase são curtas, elas que trazem velocidade ao texto. Guimarães Rosa faz isso em Grande Sertão: Veredas, mas ele é mestre, né?”, complementa com um sorriso. 

 

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