Cultura

Os solavancos da vida real e da política não afetam a realeza britânica

Quando um escândalo ameaça a monarquia, os executivos da ‘firma’ logo restauram o conto de fadas

Elizabeth II, seis décadas cumprindo as luxuosas formalidades
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The Firm fecha as contas de 2019 com um saldo razoável, apesar da turbulência adversa denominada Brexit e de o ano não ter produzido nenhum acontecimento espetacular, além do nascimento de um bebê apto a pegar uma senha, ainda que bem remota, da sucessão ao trono. The Firm é basicamente uma empresa de eventos e de entretenimento com uma queda para o suntuoso, a pompa e a circunstância. Atua com marcas imponentes: Casa de Windsor, monarquia britânica, Sua Majestade e Marinha Real, entre outras. Empresa familiar, centenária, mas com repertório sempre atualizado.

Ano bom para a contabilidade é aquele que produz o show que de fato tange o coração dos súditos – e mesmo dos não súditos – da mais longeva rainha da mais longeva monarquia europeia: um casamento real. O ano 2019 passou batido. Mesmo a habitual cota de escândalos, que mantém a nobiliarquia inglesa como campeã do talk of the town, teve de se resignar com o excesso de virilidade exibido por um executivo hoje relegado a um lugar subalterno na companhia; o príncipe Andrew, filho da rainha e irmão mais novo do herdeiro Charles, é do tipo para quem a ociosidade é um convite à confusão. 

A última de Andrew foi aparecer na agenda comercial do americano Jeffrey Epstein, que está sendo processado pelo que a mídia chama de tráfico sexual. Suspeita-se que a especialidade de Andrew, de 59 anos, é a pedofilia. Sua Alteza correu para dar uma entrevista pouco convincente à BBC e foi preventivamente dispensado de quaisquer funções oficiais representando o trono. Ele até perdeu o gabinete que mantinha no Palácio de Buckingham, a residência dos pais.

A cada bafafá na nobreza, o fervor republicano assanha-se, longe, porém, de seduzir a maioria dos súditos. A mais recente pesquisa Ipsos indicou que apenas 17% dos cidadãos do Reino Unido gostariam de se desfazer da monarquia, ante 72% favoráveis à burocracia de luxo que eles, contribuintes, se resignam em custear. O apreço vem da cota pessoal de Elizabeth  II; três em quatro britânicos expressam admiração por seus atributos, citando que ela é “admirável, digna de respeito e dedicada ao trabalho”. Ao perguntar se, aos 93 anos, a rainha não mereceria se aposentar, a pesquisa colheu um rotundo não de 70% dos entrevistados. O espectro meio abobalhado do herdeiro Charles tem também a ver com esse resultado. O Príncipe de Gales tem 48% de aprovação – o pior índice da realeza.

Quando a realidade perturba o sereno sono da monarquia, o imaginário compensa e logo restaura o conto de fadas. Os canais de streaming já exibem a segunda temporada de The Crown, com o aval da BBC, e o seriado Downton Abbey gerou um longa-metragem que glamouriza o cotidiano de uma família da alta nobiliarquia no seu esplendoroso castelo no countryside. O filme começa com uma inesperada visita da realeza, com direito a pernoite, e o delicioso choque entre as duas criadagens.

O momentum pertence à mais popular figura da realeza depois da rainha, naturalmente: Harry, o segundo filho de Charles e Diana, duque de Sussex. Harry usou e abusou na adolescência de sua fase ovelha negra. Irreverente e inconsequente, chegou a ser flagrado numa festa envergando uma jaqueta nazi. Por essas e outras que as colunas de gossip sussurram: ele não pode ser filho de Charles. A suspeita recai no cavalariço ruivo que servia a princesa Diana.

Quando um escândalo ameaça a monarquia, os executivos da firma logo restauram o conto de fadas

A rigor, Harry está na berlinda desde 2018, quando distraiu a nação do Brexit com um casamento heterodoxo. Teve o efeito, para a Inglaterra insular, fechada em si mesma, de um eficaz antidepressivo. Harry, o quinto na linha de sucessão de sua rígida avó, casou-se com a atriz americana Meghan Markle. O noivado foi anunciado pouco meses antes e surpreendeu pelo timing bem estilo século XXI, nada Jane Austen, do romance:  Harry e Meghan se conheciam há pouco mais de um ano. E as surpresas estavam apenas começando.

Os eventos da monarquia britânica buscam, em sua invariável linguagem de grandeur, em ritos alegóricos e exageros cenográficos, reiterar o propósito secular que é um só: a sua própria sobrevivência. Ao agasalhar com o manto de uma distinção enfatuada o que a outros povos poderia parecer uma relíquia obsoleta, destinada a proteger uma casta de desocupados, o show off do Império acaba por assegurar a fidelidade dos súditos e por injetar na economia o efeito turístico do suntuoso marketing real. Em abril de 2011, as núpcias de Kate Middleton e o príncipe William, irmão mais velho de Harry, renderam ao reino um surplus de 2 bilhões de libras (8,7 bilhões de reais). Naquele ano, 30,6 milhões de visitantes estrangeiros estiveram na Grã-Bretanha.

A realeza faz da tradição seu principal asset, mesmo sabendo que, na Inglaterra, em Gales e na Escócia, muitos dos seus emblemas, seus enunciados e suas narrativas são para estrangeiro ver. No clássico A Invenção das Tradições (primeira edição da Cambridge University Press de 1983), Eric Hobsbawm e uma seleção de historiadores analisam aquelas cerimônias públicas da monarquia que parecem ligadas a um passado imemorial, tão antigas na fachada, e chegam à conclusão de que esse aparato, em sua forma atual, data dos séculos XIX e XX. “Muitas vezes, ‘tradições’ que são consideradas antigas”, escreve Hobsbawm, “são bastante recentes, quando não são inventadas.” 

A Família Real de hoje é composta por Harry e Meghan; William, Kate e a prole, a esperança dos Windsor (na foto); o problemático Andrew e a mãe, Rainha Elizabeth.

Criar uma continuidade com um passado ainda que fictício, ou fantasioso, ajuda a cimentar uma legitimidade que torna o sistema monárquico a mais natural  e incontestável das realidades.

Hobsbawm cita o caso do Parlamento britânico. Ao ser reconstruído no século XIX, optou-se pelo estilo gótico, como que a proclamar que a solidez da instituição provinha, sem contestação, desde a Alta Idade Média. A mais exemplar manufatura de tradições fake é a do simbolismo clânico do kilt escocês. Não que os primitivos highlanders não envergassem seus saiotes, mas aquilo não era marca de charme, e sim de barbarismo. Conferir às cores do tartan uma identidade dinástica e familiar é coisa recente. Mas o kilt, para os conterrâneos de Sean Connery, acende o patriotismo com mais ardor do que a bandeira com a cruz de Saint Andrews.

Saber temperar a tradição ao fogo brando do aggiornamento é uma ciência na qual os operadores da monarquia excedem. As mudanças nem sempre acontecem sem solavancos, mas desde aquele final dos anos 30, em que um rei coroado, o complexo Edward VIII, teve de abdicar do trono por interessar-se pelos feitiços eróticos de uma plebeia divorciada até os dias de hoje muitos dos costumes mais carrancudos e dos dogmas mais rígidos foram caindo por terra. O herdeiro número 1 do trono, o príncipe Charles, é casado com uma desquitada com quem mantinha uma escandalosa relação mesmo durante o casamento com uma princesa de contos de fada. 

Harry, que tem no olhar uma chispa de inteligência rara na família, uma barba hipster e um humor meio debochado nas atitudes, cumpre agora, por acaso ou não, a nobre função de recauchutar a imagem dos Windsor. O casal é jovem, cool, hype, trendy – todos aqueles atributos que o distingue do ambiente careta, tenso, protocolar, que impera no circuito.

Na primeira temporada de The Crown, a jovem e ainda insegura rainha (Claire Foy) coroa seu príncipe consorte. O seriado, em nova temporada, desmente o desinteresse da monarca pela política.

Buckingham, Balmoral, Kensington, Sandringham. Harry tem 35 anos, Meghan, 38. Resta saber como vai sobreviver ao rigor teutônico dos descendentes dos Saxe-Goburn und Gotha uma princesa que não é 100% branca (sua mãe, negra, é assistente social), já teve um casamento anterior, é mais velha que o seu consorte, construiu a sua reputação nos ambientes cinematográficos de Los Angeles e entre os seus filmes há um de sintomático título Anti-Social.  

Por mais independente que o casal consiga se manter das convenções nobiliárquicas, há que saber que a visibilidade cobra um preço – e que esse preço vai além do burburinho dos paparazzi.

Meghan já provou do veneno destilado pela implacável imprensa de gossips e pelos arautos dos preceitos canônicos. Para as fotos de noivado, ela deixou-se clicar com um vestido de remota transparência. O alvoroço foi duplo; houve quem protestasse contra o traje inadequado a uma princesa, mas a indignação maior foi ver Meghan, em sua  majestosa beleza, envergando um modelo que custa 56 mil libras (245,3 mil reais). Assina a peça o duo australiano Tamara Ralph e Michael Russo e é bom que os britânicos saibam que Meghan costuma pagar seu figurino com seu próprio dinheiro.  

O assédio dos paparazzi incomoda, mas faz parte do espetáculo

A agora duquesa de Sussex tem obedecido às convenções, tanto que já compareceu, este ano, com seu royal babe. Archie Harrison Mountbatten-Windsor, sexto na linha de sucessão, nasceu em maio deste ano e seguiu o protocolo que faz da Casa de Windsor um vívido folhetim. Tipo: casal encontra-se e apaixona-se, noivado marcado, casamento pomposo, lua de mel, a gravidez anunciada, o bebê nasce, nome escolhido, batismo dois meses depois, festa do primeiro aniversário, primeira viagem ao exterior, primeiro dia de escola…  

A imprensa segue de perto, numa ansiedade febril em busca de uma manchete. O assédio dos paparazzi incomoda, mas faz parte do espetáculo. Meghan e Harry estão processando um tabloide que bisbilhotou o pai dela na Califórnia. Alegam que se previnem do efeito Di – o inferno provocado pela mídia em torno da melancólica mãe de Harry.

A nova temporada de The Crown mostra uma rainha madura e aguda, livre, ou quase, daquela moçoila assustada de 25 anos que se viu compelida a assumir o pesado fardo de guardiã dos códigos monárquicos. Compostura, contenção, a permanente fuga do que não é apropriado e do que é inconveniente – não é nada fácil para Elizabeth II esconder sua condição humana atrás dos rigores da tradição e do cerimonial. Exemplar, o diálogo dela com o primeiro-ministro Harold Wilson por ocasião da tragédia que soterrou mais de uma centena de estudantes de um vilarejo mineiro do País de Gales. A monarca relutou, mas cedeu à compaixão.

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