Cultura

Orwell volta à moda, mas quem captou o espírito do nosso tempo foi Huxley

A Londres fordista de Admirável Mundo Novo tem mais a ver com os dias atuais do que a Oceania totalitária de 1984

(Ilustração: Pilar Velloso)
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Refugiado em Jura, uma ilha escocesa que até hoje se orgulha de nunca ter rompido a barreira dos 200 habitantes, debilitado por uma severa tuberculose, George Orwell, sem saúde e sem diversão, teve tempo de sobra entre a primavera de 1947 e o outono de 1948 para colocar no papel uma “tese encapsulada no coração” havia muito tempo. Bisneto de um senhor de escravos que prosperou na Jamaica, fortuna desperdiçada pelos descendentes, anarquista, voluntário na Guerra Civil Espanhola contra as tropas de Francisco Franco, o escritor inglês de 1,88 metro, esguio, expressão severa amenizada por um bigode de galã do cinema mudo, gastou seus dias de isolamento para erigir uma ode contra o totalitarismo. O futuro distópico, mas não distante, no qual o Estado controla cada aspecto da vida dos cidadãos, influenciou não apenas a literatura moderna e a ficção científica. A sociologia, a filosofia, o jornalismo e os negócios também foram impregnados pela ideia. Sua imaginação peculiar e ao mesmo tempo universal o elevou ao panteão de Dante, Kafka e Marquês de Sade, sobrenomes transformados em adjetivos (“orwelliano” diz respeito a toda tentativa estatal de suprimir as liberdades individuais). 

Lançado no início de 1949, quatro anos após o fim dos horrores da Segunda Guerra Mundial, o lúgubre romance 1984 tornou-se um sucesso imediato. E nunca deixou de sê-lo. A queda do Muro de Berlim, em 1989, parecia confirmar as premonições de Orwell – e o livro voltou às paradas de sucesso naquele fim de década e de esperanças. A recente ascensão da extrema-direita reavivou o interesse pela obra. Em 2017, primeiro ano do governo de Donald Trump, 1984 liderou a lista dos mais vendidos nos Estados Unidos. No ano passado, deprimidos pela pandemia e pela demência do governo Bolsonaro, os leitores brasileiros impulsionaram as vendas tanto de 1984 quanto de outro clássico, A Revolução dos Bichos, uma crítica ao stalinismo. Agora que a produção do escritor caiu em domínio público, as editoras planejam uma avalanche de relançamentos.

Orwell não sai de moda, mas nada anda mais distante de seus alertas contra o totalitarismo do que o mundo atual. Ao contrário. À exceção da China, de algumas ditaduras islâmicas e das experiências démodés de Cuba e da Coreia do Norte, o mal que ameaça o planeta é o avesso do Estado controlador: o Estado fraco, ausente, submetido aos interesses de uma plutocracia. Cerca de 2 mil bilionários, 2.153 para ser exato, calcula a ONG Oxfam, controlam uma riqueza superior à soma da renda de 4,6 bilhões de seres humanos, ou 60% da população. A mobilidade social é a pior em mais de um século: os mais pobres precisam de nove gerações para subir um degrau na escala de renda. A pandemia só piorou a situação. Em 2020, enquanto os homens e as mulheres no topo da pirâmide acrescentaram às suas fortunas incalculáveis um patrimônio equivalente a meio trilhão de dólares, a base precisará de, no mínimo, uma década para recuperar os míseros centavos que obtinha antes de o Coronavírus ceifar milhares de vidas e empregos.

A Londres fordista de Admirável Mundo Novo tem mais a ver com os dias atuais do que a Oceania totalitária de 1984

Vivemos na Londres de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e não na Oceania de 1984. Uma casta de Alfa Mais, produzida em tubos de ensaio, dá as ordens e uma massa de Delta Menos e Ipsilons obedece, por todos terem juízo. Henry Ford é o Deus e sua máquina – o romance se passa em 632 d.F. Uma droga legalizada, a “soma”, controla os humores dos semiautômatos. Não é mera coincidência qualquer semelhança com a praga dos opioides nos Estados Unidos ou o abuso na prescrição de antidepressivos no Brasil. As incubadoras imaginadas por Huxley são linhas de montagem, não repartições públicas. Explica o senhor Foster, um dos gerentes: “Nós também predestinamos e condicionamos. Decantamos nossos bebês sob a forma de seres vivos socializados, sob a forma de Alfas ou Ípsilons, de futuros carregadores ou de futuro… – ia dizer “futuros administradores mundiais”, mas, corrigindo-se, completou: “futuros diretores de incubação”. 

Huxley, que deu aulas de francês a Orwell na prestigiosa Eaton, uma espécie de incubadora de Alfas Mais do Reino Unido, onde são projetados primeiros-ministros, banqueiros e artistas, publicou Admirável Mundo Novo em 1932, quase duas décadas antes do clássico do pupilo chegar às livrarias. Consta que ambos se inspiraram em Nós, do russo Iêvgueni Zamiátin. Em 1949, Huxley enviou uma carta a Orwell, mais elogiosa do que crítica, com observações sobre os dois livros. “Sinto que o pesadelo de 1984 está destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo mais semelhante ao que eu imaginei em Admirável Mundo Novo, anotou. 

Trajetórias distintas, pesadelos diferentes. Orwell atravessou a vida atormentado pelos riscos do totalitarismo e pelo crescimento da desigualdade social. Huxley misturou-se a dândis em uma Londres do início do século XX ansiosa para se despir do pudor vitoriano. 

O cinema recicla os clássicos ao mesmo tempo opostos e complementares

Manteve contatos bissextos com o grupo de Bloomsbury, uma confraria organizada pelo economista John Maynard Keynes e os romancistas Virginia Woolf e E.M. Foster, na qual ideias, desejos e amores se misturavam de forma livre. Em 1937, trocou a nublada capital inglesa pela ensolarada Los Angeles. Roteirista em Hollywood, adaptou para o cinema Orgulho e Preconceito e Jane Ayre. Sua versão para Alice no País das Maravilhas acabou recusada por Walt Disney. Nos anos 50, embarcou nas primeiras ondas do incipiente movimento hippie, mergulhou na espiritualidade e descobriu a mescalina e o LSD. Influenciado pelo poeta William Blake, escreveu o ensaio As Portas da Percepção, que, por sua vez, inspirou o nome da banda The Doors. Jim Morrison, um fã, aproximou Huxley das novas gerações.

Big Brother, o Grande Irmão de 1984, é um ícone pop. Mas, ironicamente, seu significado atual confirma a distopia de Huxley. O reality show que subsiste em vários cantos do planeta e que há 21 edições preenche as noites de verão na programação da TV Globo pode ser resumido em um trecho da carta do professor ao aluno. “Dentro da próxima geração”, escreveu Huxley, “eu acredito que os governadores do mundo irão descobrir que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de governança, do que porretes e prisões, e que a cobiça pelo poder pode ser completamente satisfeita ao sugerir que as pessoas amem a sua servidão, ao invés de chicoteá-las e chutá-las à obediência.”

Orwell morreu precocemente, em 1950, vítima de tuberculose. Tinha 46 anos. Huxley faleceu 13 anos depois, de câncer. Nas últimas horas, para aliviar a dor e atender ao desejo do marido, sua mulher Laura lhe injetou várias doses de LSD, a “soma” da moda.

Publicado na edição n.º 1142 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2021

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