Cultura

O Primogênito

As preocupações de um pai com o primeiro filho

A enfermeira, que fazia as fotografias em preto e branco, me ensinou a cortar o umbigo
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O meu primogênito nasceu num dia de  domingo, 6 de novembro de 1977, num casarão em Lilás, cidadezinha perto de Paris, na clínica do Doutor Frederick Leboyer, o papa do parto natural.

Era um dia de inverno bravo, de muito vento, muita emoção. Ele foi nascendo devagar, bem tranquilo. Eu fui desenrolando o seu umbigo, segurando sua cabeça, puxando os bracinhos, as perninhas, até ele sair inteiro e abrir o bué.

A enfermeira, que fazia as fotografias em preto e branco, hoje quase apagadas pelo tempo, me ensinou a cortar o umbigo e eu, com o coração em polvorosa, passei a tesoura naquele espaço entre uma pinça e outra, que ela deixou no cordão.

Bem sujinho, o meu primogênito ficou um tempo na  barriga da mãe e logo depois foi pra banheira, onde uma água morna o esperava.

Ali ele ficou até tremelicar os olhos e dar uma piscadinha pro pai, que tinha as pernas bambas, os braços trêmulos, a roupa ligeiramente suja de sangue e o coração beat acelerado.

Tenho tudo documentado, passo a passo, em polêmicos cadernos guardados em um armário de aço, na sala de um juiz na Comarca de Belo Horizonte, Nona Vara de Família. Mas isso é outra história.

Está tudo lá, registrado. O dia em que o umbigo caiu, o primeiro sorriso , o dia em que falou tatá pela primeira vez, os primeiros passos, o dia em que deixou a fralda, entrou pra maternal, caiu o primeiro dente, conseguiu dar sozinho o nó no tênis, o dia em que escreveu as primeiras palavras.

Pato

Mato

Sapo

Rato

Jogo

Eu, jovem cabeludo, jurava que o meu primogênito seria a pessoa mais feliz do mundo, que nunca iria chorar, sofrer, arranhar, cair, machucar, brigar. Porque eu não ia deixar.

Pai de primeira viagem, ia anotando com minha letra miúda a sua vida, dia após dias, semana após semana, tudo nos mínimos detalhes.

A pediatra disse que nosso filhinho precisa tomar 100 mililitros de água. Hoje ele só tomou 82 mililitros. Será que ligamos pra ela?

Não sei se ligamos pra Doutora Pappo, mas dormimos preocupados aquela noite, com certeza.

O nosso bebê foi crescendo e chorou. Sofreu, arranhou, caiu, machucou e brigou. Nada conforme estava previsto no figurino.

O meu primogênito levou tombos homéricos. Treze pontos na testa de uma só vez. Gostava de correr dentro de casa e foi ali, naquela que chamávamos de curva do Tamburello, entre o corredor e a cozinha, que ele rasgou a testa.

No dia seguinte, comprei um vaso enorme com um pé de jabuticaba e coloquei na fatídica curva, o que acabou servindo de air bag para suas corridas, para suas escorregadas.

O segundo tombo, lembro-me bem, foi do beliche, em plena madrugada. Apavorado, coloquei o meu primogênito de pé e comecei a fazer perguntas:

– Qual é a capital da Suécia?

– Como é a bandeira do Japão?

– Qual é a moeda da Alemanha?

– Onde eu trabalho?

Sonolento, ele foi respondendo uma a uma.

– Estocolmo

– Branca com uma bola vermelha no meio

– Marco

– No Estadão

O meu primogênito era craque nas capitais, sabia quase todas as bandeiras do mundo, as moedas de vários países e costumava passar os sábados de plantão comigo na redação.

Só depois de responder todas as perguntas, voltei a dormir tranquilo, seguro de que a queda não tinha afetado o cérebro.

Aos seis anos, desenhou uma bandeira verde e amarela e escreveu, dentro dela, duas palavras da moda: Diretas e . Fiquei orgulhoso do garoto e achei que estava no bom caminho.

Ontem à noite, achei aqui em casa um desenho dele, feito quando tinha sete anos. Uma nuvem de chumbo, um toró caindo, um sapo com uma língua vermelha enorme, tentando capturar uma borboleta.

Escaneei, mandei pra ele inbox e, logo cedinho, a resposta do Julião piscou no meu computador.

Que legal o desenho, pai. Essa noite sonhei com você. Sonhei que estávamos no Japão. Hehe…

Enfim, nossa vida tem sido assim. Distante 500 quilômetros um do outro, mas cheia de mensagens inbox, cheia de sonhos, de vida e muita poesia. 

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