Cultura

O Messias

O dia em que me livrei de 15 mil discos de vinil de uma só vez

Não consegui me livrar de todos os discos
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A segunda-feira amanheceu esquisita, com caminhões de bombeiros passando na minha rua, pedindo passagem. Fiquei em dúvida se ele viria. Quando o interfone do meu apartamento tocou uma, duas vezes seguidas, não tive dúvida. Era ele.

– É o Messias!

Foi assim que o porteiro do meu prédio anunciou a chegada do Messias, dono de um dos maiores sebos de São Paulo. O porteiro deve ter perguntado a si mesmo que diabos teria vindo fazer, tão cedo, na minha casa nessa segunda-feira, o Messias. Ainda perguntou se ele poderia parar o carro na minha garagem, e eu disse que sim. O carro era uma Kombi metade branca, metade azul-calcinha, vi pela janela do meu escritório.

Na sexta-feira liguei para o Messias, e o fim de semana inteiro passei vendo e revendo cada um dos meus 15 mil vinis. Fazendo escolhas. Como se estivesse em Brasília, menino ainda, arrumando a mudança e ouvindo o meu pai recitar o nome de cada disco, de cada música, eu também anunciava em voz alta os meus.

Como se estivesse em Paris, arrumando a mudança de volta ao Brasil, eu ia cantando:  Adoniran Barbosa! Trem das onze! Saudosa maloca! Apaga o fogo, mané! Iracema! Torresmo à milanesa!

Depois veio Adriana Calcanhoto. Enguiço! Caminhoneiro! Senhas! Tons! Continuei com Afoxés Filhos de Gandhi, Alceu Valença, Almôndegas, Antônio Adolfo, Aracy de Almeida, Ary Barroso e Arnaldo Dias Baptista. Cê tá pensando que eu sou Lóki? Não estou nem aí! Navegar de novo! Será que eu vou virar bolor?

Veio a letra B, de Baden Powell, da Banda de Pau e Corda, Batatinha, Bendegó, Belchior, Beto Guedes, Billy Blanco, Braguinha e Bobby de Carlo. Tijolinho, O pesadelo, Não vou me entregar, Emoção, Soluçando, Cuidado para não derreter.

Chegou em Cassia Eller, depois Cassiano, Clara Nunes e Ciro Monteiro.

Sabendo das minhas preciosidades, o Messias estacionou sua Kombi logo cedinho na vaga número 14 e subiu os dois andares de elevador. Tocou a campainha, atendi. Ele arregalou os olhos quando viu as pilhas no chão da sala e aquelas paredes forradas de vinis.

– É tudo isso?

Sim, era tudo aquilo, quase tudo. A revolução tecnológica tinha começado, e um exocet acertou em cheio a minha cabeça. Decidido a entrar na era do CD, eu estava naquela segunda-feira me desfazendo de todos os vinis da minha casa, inclusive dos discos de Yoko Ono que, acho, só eu tinha, nem ela. Fly, Feeling the Space, A Story, London Jam, New York Rock, Kiss Kiss Kiss.

Um Ruy Castro, um Sérgio Cabral, um Tárik de Souza, um Luís Antônio Giron, uma Ana Maria Bahiana, um José Ramos Tinhorão, teriam um enfarte vendo a cena, eu me desfazendo daquelas maravilhas,  pensei.

No domingo à noite, havia separado, escondido do Messias, algumas preciosidades que não tinham preço. O Sgt. Pepper’s original, o Banquete dos Mendigos do Jards Macalé, Two Virgins de John e Yoko, Caetano cantando Marcianita, Gil cantando a Língua do P, Jorge Mautner cantando Eu queria ser uma locomotiva, Roberto Carlos cantando João e Maria, coisas assim. Esses foram salvos do bombardeio.

– Por onde posso começar?

Os discípulos do Messias haviam chegado, carregando dezenas de caixas de papelão desmontadas, perguntando por onde poderiam começar e eu não pensei duas vezes.

– Por onde vocês quiserem.

Messias pegava um, olhava, abria e observava atentamente o estado do vinil. Chico Buarque, Chico Cesar, Chico Maranhão, Chiquinha Gonzaga, Clementina de Jesus, a Cor de Som. Olhou cada Djavan, cada Dominguinhos, cada Dorival Caymmi. Foi pra Eduardo Dusek, Edu Lobo, Ednardo, Edy Star, Egberto Gismonti, Elis Regina, Elton Medeiros, Erasmo Carlos, Elza Soares.

Ofereci um café ao Messias, que já estava sentado, colocando os discos no chão, separando alguns, enquanto seus discípulos também olhavam e iam guardando. Já tinham seis caixas cheias.

Na letra F ele começou com Fagner, Francis Hime, Fausto Fawcett, e foi guardando. Chegou na letra G de Gal, de Geraldo Azevedo, Geraldo Vandré, Gilberto Gil e Gonzaguinha. Ele tomava o café, comia biscoito maizena com geleia de damasco e continuava. Assim foi até chegar a Walter Franco, Wanderléa, Wilson Batista, Wilson Simonal, Zé Keti, Zé Ramalho e Zizi Possi.

Quando acabou a parte nacional, foi pra estante dos internacionais. De Alpha Blondy a ZZ Top.

Aos poucos eu ia vendo meus vinis sendo empacotados. Beatles, Bob Dylan, Bruce Springsteen, Clash, Serge Gainsbourg, Jimmi Hendrix, Herman’s Hermits, John Lennon, Linton Kwesi Johnson, Mamas & Papas, Monkees, Paul McCartney, Paul Simon, Public Image, Sex Pistols, UK Subs, Tom Waits, até chegar a Wendo Kolosoy e Frank Zappa, inúmeros Zappa, inclusive aquele em que aparece na capa fazendo a barba com um esquilo, presente de Patrícia Mesquita.

Quando o Messias acabou de encaixotar tudo, olhou para o canto, viu aquele aparelho Technos solitário e disse:

– Nem agulha para esse som você encontra mais.

As caixas estavam todas uma ao lado da outra, ocupando todo o chão da sala e do corredor. Dei uma última olhada e vi que Paulinho da Viola agora estava ao lado de João Bosco, entre Vinicius de Moraes e Tom Zé. João do Vale foi parar ao lado de Ronnie Von e Sérgio Sampaio.

Os Tapes ao lado dos Cobras, entre Olivia Byington, perto da Olivia Hime e a Turma da Pilantragem. Martinho da Vila, como é possível, coladinho com Marcelo Nova. O que Noel estava fazendo entre Edson Cordeiro e Edson Gomes?

Pouco antes de começar a descer as caixas no elevador, ainda passei os olhos em todas e pesquei um disco, perdido ali no tapete. Era um João Gilberto original, cantando Chega de Saudade.

– Esse fica!

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