Cultura

“Meia-noite e vinte” e ocaso de uma geração

Aurora, uma das personagens de Daniel Galera, não anuncia a manhã, mas um mundo pós-2013 que parece estar “morrendo para sempre”

Apoie Siga-nos no

Aurora, diz o Houaiss, é a claridade que aponta o início da manhã. Por extensão, significa o despontar da vida, a infância, e o conjunto das primeiras manifestações de algo prestes a acontecer. “Em Meia-noite e vinte”, livro mais recente de Daniel Galera, Aurora é o prenúncio de um estado de impotência.

Ela é um dos três personagens do romance que emprestam a voz para falar de uma geração que ficou velha antes de envelhecer. Que se atualizou e se desatualizou a cada lançamento de equipamento, site ou aplicativo que mudaram, e têm mudado, as formas como aprendemos a ler, falar, gravar, ouvir música e, consequentemente, pensar e sentir. Que entregou trabalho em papel almaço no ensino fundamental, aprendeu a mexer no computador no colégio (a palavra “colégio” acusa o golpe) e terminou a faculdade guardando as anotações no quadro negro em imagens captadas por smartphone. E que, como resume a personagem, “queria tanto que 1999 durasse para sempre que nem reparou na virada do milênio”.

O livro encara o difícil desafio de resgatar essa geração do limbo – e, ao menos até onde entendo de livros e limbos, se saiu bem na tarefa. Nele, os amigos que assistiram e acompanharam a chegada de novas tecnologias e linguagens de comunicação, muitas delas esquecidas em algum cemitério da rede, se reúnem no Brasil pós-Junho de 2013 durante o enterro de um amigo com quem idealizaram um fanzine eletrônico que fez sucesso entre os jovens da cena-alternativa recém-conectados da Porto Alegre dos anos 90.

Os amigos que, na virada do século, apostaram alto na produção, distribuição e compartilhamento de ideias e bens imateriais numa rede supostamente democrática e acessível tentavam juntar os cacos, quase duas décadas depois, ao saber que a chave para aquele mundo virtual – um aparelho celular, agora com acesso a internet e aplicativos que mapeiam e regulam atividades simples como correr pelo bairro – fora o motivo do latrocínio que vitimara o antigo colega.

A rotina daqueles jovens dos anos 1990, já não tão jovens mas ainda presos, de certa forma, a uma transição imperfeita de modelos herdados e rejeitados de pais e avós, é fiel aos anseios que tem levado essa geração esquecida a andar em círculos e voltar a pontos de origem sem saber exatamente para onde vão, por que seguem e (pior) de onde saíram.

No caminho destituído de referenciais, esbarram em questões comuns da contemporaneidade como assédio, crises de pânico e ansiedade, aborto, empregos precários, mercantilização de desejos e afetos, objetificação, sexualidade, violência urbana, casamento, fugacidade das relações, frustração, competição predatória no ambiente universitário, mapeamento genético, mobilidade, superexposição, superinformação, superexcitação, superaquecimento. Tudo isso é abordado no livro de exatas 200 páginas mais ou menos como vivenciamos as duas últimas décadas: sem tempo para digestão.

Essa geração, representada pelos três personagens remanescentes de uma experiência também interrompida, esbarram com a (quase impossível) tarefa de definir identidades a partir de processos de comunicação consagrados e desconstruídos em alta velocidade.

Essa identidade é um Frankenstein montado a partir das pegadas deixadas para a posteridade pelas redes onde circulamos, montamos playlists, lançamentos pensamentos, e deixamos, de um dia para o outro, de circular. (Um paralelo: na série Black Mirror, também uma pretensão de expandir a compreensão sobre a vida em rede, a partir de uma distopia futura já em funcionamento, a protagonista de um dos episódios consegue ressuscitar o namorado morto num acidente com base nas informações, áudios e vídeos postados em vida. A distância entre expectativa e realidade da experiência frustrante era a total ausência de alma do catado à sua frente, um conjunto de expressões artificiais destituído de conflito e essência – de alma, enfim).

A sensação de fim do mundo compartilhada por Aurora é a sensação de quem tentou, sem sucesso, reinventar o mundo a partir de fórmulas que já não vêm com manual de instrução e passou a circular pelo mundo de maneira desarticulada.

A certa altura ela conclui, em um diálogo fictício com o amigo morto, que Sísifo tinha sorte de viver na Antiguidade. Pois “se vivesse agora, saberia demais a respeito da pedra, da montanha e de si mesmo para se entregar eternamente ao absurdo de sua tarefa”. “Saberia demais sobre a tarefa em si. Teria a ciência e a tecnologia. Teria a história dos últimos dois mil anos e a nuvem de informação. Teria a superpopulação de Sísifos, o multiverso dos Sísifos. Se fosse uma cria de nosso tempo, Sísifo leria O mito de Sísifo. Chegaria ao ponto em que não entenderia mais nada, nem mesmo a liberdade que conseguira encontrar em seu castigo.

O que ele pensaria se seu heroísmo absurdo aparecesse na forma de zonas coloridas em imagens de ressonância magnética do cérebro, feitas em laboratórios de neurociência? O que restaria de sua rebeldia em meio a considerações sobre gasto calórico e explicações evolucionistas para juízo moral do ser humano? Nem nos deuses ele poderia seguir acreditando”.

É dela a sentença sobre esses tempos em que ferramentas como o xvideos e sua profusão de fetiches tageados colocou o contato, e os delírios das experiências das coisas reais – para não dizer que não falamos de Belchior – numa falsa dicotomia entre a ação e a imaginação: “O nosso mundo, eu começava a suspeitar, não estava acabando nem avançando. Estava em estase. Era possível que ficasse estagnado, preso na condição de estar morrendo para sempre. Quando eu pensava nisso, a raiva, o medo e a ansiedade que me impeliram à ação ou à fuga às vezes cediam lugar a uma passividade que não deixava de ser agradável, se comparada com o resto”.

Talvez esta seja a contradição da contemporaneidade: do medo do bug do milênio à cegueira branca da comunicação em rede, a ideia de ação se imiscuiu aos poucos dos afetos paralisantes, como medo e esperança. A incapacidade de acompanhar as mudanças deixou como rescaldo uma multidão diversa apenas por camadas de desatualização, uns mais, outros menos ultrapassados, mas nenhum deles capaz de elaborar compreensões e estabelecer respostas elementares sobre o que fomos, o que somos, o que seremos, de onde viemos e para onde estamos indo.

Estamos perdidos, prenuncia a Aurora, e as novíssimas rotas de saída não oferecem respostas como antigamente. Mais do que iluminar caminho, a literatura tem na reafirmação do desamparo uma elaboração ao menos do mal-estar. Pode não parecer muito, mas serve como grito – a faísca, de qualquer tempo, para denunciar, e quem sabe quebrar, a nossa própria letargia.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo