Cultura

Lugar de alegria

Sobrevivente de incêndio no circo de Niterói, até hoje o mais trágico da história, conta como aceitou ver as filhas se tornarem artistas circenses

Edenir, sobrevivente do maior incêndio do País, com as filhas Carolina e Camila, hoje artistas de circo.
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Por Anna Carolina Cardoso

 

Do alto de um tecido preso à estrutura do circo, Carolina Palma sabe que a plateia vai levar um susto. Preparado o movimento, ela se solta de repente, como se estivesse em queda livre. A plateia inteira se levante. Pensa que ela vai cair e prende a respiração. No meio do público, a mãe de Carolina também suspira. Até que a filha para “a um palmo de dar com a cara no chão”.

“Todo mundo no circo ficou de pé, perdeu o ar. E depois ela levantou, linda, maravilhosa, para receber os aplausos. E eu com o coração assim”, diz a mãe, fazendo um gesto trêmulo.

Carolina ri. “Assim que é bom”, diz.

A mãe também ri. Alguns anos acompanhando as filhas pelo picadeiro e ela já se diverte com os sustos. Esses são alegres. Bem diferentes daquele que ela tomou há 50 anos e não terminou com aplausos.

Edenir Palma tinha seis anos. Acabava de sair de São Gonçalo, região metropolitana do Rio, para assistir, com a mãe e a irmã, ao espetáculo do Gran Circo Norte-americano, que se apresentava pela primeira vez na vizinha Niterói. Era a primeira vez que ia a um circo.

Como era quase véspera de Natal, ela e a irmã, de 14 anos, foram com roupas e sapatos novos ao espetáculo, que, calcula-se, atraiu mais de 3 mil pessoas naquela tarde de domingo.

“Minha mãe era uma apaixonada por circo. E naquela época era uma grande novidade, um circo trazendo muitas atrações…”

Era um acontecimento: a temporada era curta, e ninguém queria ficar de fora.

“Parecia que eu estava no Maracanã, no Fla-Flu. Naquela época, eu não tinha essa referência. Mas minha mãe disse isso e ficou gravado”, lembra.

O final daquele espetáculo é uma história conhecida, e foi recentemente contada pelo jornalista Mauro Ventura no livro “O Espetáculo Mais Triste da Terra”.

Aquela tarde quente de domingo deveria ter sido só mais um dia de espetáculo, mas terminou em um incêndio que bateu dois tristes recordes: é até hoje o maior incêndio da história do País, e também o maior incidente ocorrido em circo do mundo. O número exato de mortos nunca foi registrado. A contagem oficial ficou em 503 vítimas fatais e centenas de feridos. Entre eles, a mãe e a irmã de Edenir.

Quando percebeu que se tratava de um incêndio, a mãe chamou as filhas. Mas o vestido da mais velha ficou preso à arquibancada e, como era novo, ela não queria rasgá-lo. Quando conseguiu descer, o tumulto já era grande.

A mãe pegou a filha mais nova no colo, mas Edenir fez força para descer porque o sapato novo tinha caído e ela queria apanhá-lo. Foi aí que se perdeu da mãe e da irmã.

“O pessoal que foi me levando, quando eu vi, estava do lado de fora. Lá eu vi dois rapazes enormes e fiquei pedindo para eles pegarem a minha mãe. E quem ia entrar? Não tinha como entrar. As pessoas estavam desesperadas, tentando sair”, conta.

Apesar do tempo, Edenir nunca esqueceu as cenas das pessoas sendo pisoteadas, correndo para fora do circo em chamas, se jogando no chão para apagara o fogo. “Não me esqueço. Vi muita coisa ruim até sair”, diz. “Até hoje não sei se colocaram mesmo fogo no circo, eu vi um fogo correndo no alto da lona e o trapezista caindo”, diz.

Da porta do circo, ela foi levada para o porto de Niterói. Ali, um repórter a levou até sua casa, graças à mãe de Edenir, que só saía com as filhas de casa depois de conferir se elas haviam decorado o endereço.

Depois disso, nunca mais foi a um espetáculo de circo. “Não era nem porque eu não queria. Era porque a família ficou traumatizada. Meu pai não podia nem ouvir falar em circo.”

Assim, quando as filhas nasceram, o circo já não fazia mais parte do imaginário de Edenir. Carolina e a irmã, Camila, assistiram a algumas apresentações quando eram pequenas, levadas pela tia. Mas a mãe só voltou a ficar embaixo de uma lona quando as duas filhas, então com 14 e 11 anos, começaram a fazer aula de circo.

Carolina estudava teatro quando o primo falou das aulas que estava fazendo em um espaço cultural perto de casa. Em seguida, Camila, a filha mais nova que tinha ido ao mesmo centro cultural interessada nas aulas de balé, se encantou com o monociclo e também resolveu fazer aulas.

E foi por causa das aulas das meninas que Edenir acabou entrando em um circo de novo. Primeiro, acompanhando-as na plateia. Depois, para assisti-las.

Depois da escolinha, as duas começaram a trabalhar em espetáculos. A mãe se assustou com a decisão, ficou com medo, mas deixou que fossem. Carolina seguiu com o tecido e Camila fez alguns números como palhaça, partner de mágico e até ficou na mira de um atirador de facas. As duas já se machucaram no picadeiro. Mas Edenir sempre apoiou.

As filhas foram para a Escola Nacional de Circo, onde se formaram neste ano. Camila, aos 19 anos, não sabe ainda se quer seguir na vida de artista circense. Carolina, 22, sonha em trabalhar em um circo grande, viajar com o marido, também artista circense, e o filho.

“As pessoas dizem que fui corajosa, como eu posso ter deixado [as meninas virarem artistas de circo]. É que você quer ver seu filho realizado, não importa o que queira ser. Depois que perdi minha mãe, fui criada pela minha avó, que era muito durona, minha infância não foi feliz. Eu não queria isso para elas. Queria que fossem felizes. Minha história com o circo poderia ter sido muito triste. Mas elas ajudaram a mudar isso. O circo é lugar de alegria.”

Por Anna Carolina Cardoso

 

Do alto de um tecido preso à estrutura do circo, Carolina Palma sabe que a plateia vai levar um susto. Preparado o movimento, ela se solta de repente, como se estivesse em queda livre. A plateia inteira se levante. Pensa que ela vai cair e prende a respiração. No meio do público, a mãe de Carolina também suspira. Até que a filha para “a um palmo de dar com a cara no chão”.

“Todo mundo no circo ficou de pé, perdeu o ar. E depois ela levantou, linda, maravilhosa, para receber os aplausos. E eu com o coração assim”, diz a mãe, fazendo um gesto trêmulo.

Carolina ri. “Assim que é bom”, diz.

A mãe também ri. Alguns anos acompanhando as filhas pelo picadeiro e ela já se diverte com os sustos. Esses são alegres. Bem diferentes daquele que ela tomou há 50 anos e não terminou com aplausos.

Edenir Palma tinha seis anos. Acabava de sair de São Gonçalo, região metropolitana do Rio, para assistir, com a mãe e a irmã, ao espetáculo do Gran Circo Norte-americano, que se apresentava pela primeira vez na vizinha Niterói. Era a primeira vez que ia a um circo.

Como era quase véspera de Natal, ela e a irmã, de 14 anos, foram com roupas e sapatos novos ao espetáculo, que, calcula-se, atraiu mais de 3 mil pessoas naquela tarde de domingo.

“Minha mãe era uma apaixonada por circo. E naquela época era uma grande novidade, um circo trazendo muitas atrações…”

Era um acontecimento: a temporada era curta, e ninguém queria ficar de fora.

“Parecia que eu estava no Maracanã, no Fla-Flu. Naquela época, eu não tinha essa referência. Mas minha mãe disse isso e ficou gravado”, lembra.

O final daquele espetáculo é uma história conhecida, e foi recentemente contada pelo jornalista Mauro Ventura no livro “O Espetáculo Mais Triste da Terra”.

Aquela tarde quente de domingo deveria ter sido só mais um dia de espetáculo, mas terminou em um incêndio que bateu dois tristes recordes: é até hoje o maior incêndio da história do País, e também o maior incidente ocorrido em circo do mundo. O número exato de mortos nunca foi registrado. A contagem oficial ficou em 503 vítimas fatais e centenas de feridos. Entre eles, a mãe e a irmã de Edenir.

Quando percebeu que se tratava de um incêndio, a mãe chamou as filhas. Mas o vestido da mais velha ficou preso à arquibancada e, como era novo, ela não queria rasgá-lo. Quando conseguiu descer, o tumulto já era grande.

A mãe pegou a filha mais nova no colo, mas Edenir fez força para descer porque o sapato novo tinha caído e ela queria apanhá-lo. Foi aí que se perdeu da mãe e da irmã.

“O pessoal que foi me levando, quando eu vi, estava do lado de fora. Lá eu vi dois rapazes enormes e fiquei pedindo para eles pegarem a minha mãe. E quem ia entrar? Não tinha como entrar. As pessoas estavam desesperadas, tentando sair”, conta.

Apesar do tempo, Edenir nunca esqueceu as cenas das pessoas sendo pisoteadas, correndo para fora do circo em chamas, se jogando no chão para apagara o fogo. “Não me esqueço. Vi muita coisa ruim até sair”, diz. “Até hoje não sei se colocaram mesmo fogo no circo, eu vi um fogo correndo no alto da lona e o trapezista caindo”, diz.

Da porta do circo, ela foi levada para o porto de Niterói. Ali, um repórter a levou até sua casa, graças à mãe de Edenir, que só saía com as filhas de casa depois de conferir se elas haviam decorado o endereço.

Depois disso, nunca mais foi a um espetáculo de circo. “Não era nem porque eu não queria. Era porque a família ficou traumatizada. Meu pai não podia nem ouvir falar em circo.”

Assim, quando as filhas nasceram, o circo já não fazia mais parte do imaginário de Edenir. Carolina e a irmã, Camila, assistiram a algumas apresentações quando eram pequenas, levadas pela tia. Mas a mãe só voltou a ficar embaixo de uma lona quando as duas filhas, então com 14 e 11 anos, começaram a fazer aula de circo.

Carolina estudava teatro quando o primo falou das aulas que estava fazendo em um espaço cultural perto de casa. Em seguida, Camila, a filha mais nova que tinha ido ao mesmo centro cultural interessada nas aulas de balé, se encantou com o monociclo e também resolveu fazer aulas.

E foi por causa das aulas das meninas que Edenir acabou entrando em um circo de novo. Primeiro, acompanhando-as na plateia. Depois, para assisti-las.

Depois da escolinha, as duas começaram a trabalhar em espetáculos. A mãe se assustou com a decisão, ficou com medo, mas deixou que fossem. Carolina seguiu com o tecido e Camila fez alguns números como palhaça, partner de mágico e até ficou na mira de um atirador de facas. As duas já se machucaram no picadeiro. Mas Edenir sempre apoiou.

As filhas foram para a Escola Nacional de Circo, onde se formaram neste ano. Camila, aos 19 anos, não sabe ainda se quer seguir na vida de artista circense. Carolina, 22, sonha em trabalhar em um circo grande, viajar com o marido, também artista circense, e o filho.

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