Cultura

Itamar Vieira Junior: esperança em meio a um cenário de terra arrasada

Sua entrevista ao ‘Roda Viva’ foi um verdadeiro bálsamo, um refrigério para a alma. Uma aula definitiva de literatura e cidadania

Geógrafo de formação e de família humilde, o escritor Itamar Vieira Junior tem grande ligação com a terra (Foto: Divulgação)
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Começo esse texto pedindo desculpas. Ainda não li Torto Arado, livro premiadíssimo do escritor Itamar Vieira Junior. Considero uma falha de minha parte, dado o sucesso do livro lançado no Brasil em 2019 pela Editora Todavia. Logo que eu terminar a leitura de Angústia, de Graciliano Ramos que, inclusive, exerceu grande influência na produção literária do jovem escritor soteropolitano, Torto Arado não me escapa. 

Se nesse momento ainda não posso dissertar algumas linhas sobre o romance vencedor dos prêmios Leya, Jabuti e Oceanos, com alegria e satisfação faça um registro da entrevista concedida por Itamar ao Roda Viva na última segunda-feira. Em tempos tão duros, ouvir e me encantar com o autor do best-seller, cuja história se passa nas “profundezas do sertão baiano”, foi um verdadeiro presente.

Itamar nos convoca também a refletir sobre um Brasil assombrado e atormentado pelo passado escravocrata

Geógrafo de formação e de família humilde, Itamar Vieira Junior tem uma grande ligação com a terra — em função da sua trajetória acadêmica e da sua condição de servidor público do Incra. Nesse percurso que já soma mais de duas décadas, ele conheceu de perto a lida diária e os desafios enfrentados por populações campesinas, indígenas e quilombolas. Nos primeiros instantes da entrevista, o ex-aluno da Universidade Federal da Bahia nos convida a voltar as atenções para o “Brasil profundo”, que segundo ele, “para muitos que vivem na cidade grande, quase não existe”.  

Itamar nos convoca também a refletir sobre um Brasil assombrado e atormentado pelo passado escravocrata, que em pleno século XXI, ainda submete indivíduos a regimes de trabalho e a condições de vida que remetem ao período anterior à abolição.

Para não deixar dúvidas em relação ao apreço da sociedade brasileira por essa página da história que deveria ser motivo de vergonha, o filho ilustre de Salvador rememorou os casos recentes de trabalhadoras domésticas exploradas e violentadas por seus patrões, como Madalena Gordiano, que durante 38 anos teve sua humanidade negada por uma família do interior de Minas Gerais.

Sobre esse passado que estrutura as relações sociais do país, Itamar Vieira Junior ressaltou: 

“Eu fui movido por contar uma história e dizer que esse país não superou inúmeros traumas. Esse trauma da escravidão é um trauma que nos persegue ainda hoje”. 

E é nessa sociedade estruturalmente racista e escravagista que há quase duas décadas foram implementadas as políticas públicas antirracistas no campo da educação, que conforme Itamar Vieira Junior apontou, têm sido responsáveis por mudanças significativas na organização sociorracial do Brasil. 

Ao ser indagado pela jornalista Adriana Ferreira Silva, da revista Marie Claire, sobre esse momento de insurgência e afirmação da produção teórica e literária de autores afrodescendentes, que pode ser percebido com a grande presença de obras produzidas, sobretudo, por mulheres negras nas estantes das livrarias, como também nas principais feiras de livros, Vieira Junior ressaltou: 

“Penso que autores negros e autores indígenas sempre escreveram e não tiveram a oportunidade, não tiveram o reconhecimento que mereciam em vida. (…) Há uma mudança em curso. Há um momento novo que é tributário de mudanças na sociedade brasileira, que a gente tem vivido nos últimos anos e que dizem respeito às políticas afirmativas que vêm se consolidando ao longo dos anos. Tem uma geração inteira de estudantes pobres e negros que puderam acessar a universidade pela primeira vez. São pessoas que saem da universidade com gana de leitura, querendo encontrar, buscando referências que se aproximem de suas vidas, de suas histórias”. 

Itamar Vieira Junior acrescenta que nunca a questão do racismo foi tão discutida no Brasil. Nesse momento, ele fala em esperança pela primeira vez. Certamente uma das palavras que ele mais repetiu ao longo da entrevista. A meu ver, um ato corajoso, dada essa fase de institucionalização do ódio, destruição e estupidez pela qual o país atravessa. No modo de falar, nos olhos, é possível perceber que Itamar fala de uma esperança genuína. Sorrindo, ele disse: 

“Eu vejo com muita esperança. Parece que de fato é um país que passa a olhar para os seus problemas e faz disso e tem encontrado isso na produção literária dos últimos anos”

Paulo Werneck, jornalista da revista Quatro Cinco Um, parecia  “desconfiado” da esperança convicta de Itamar Vieira Junior. Em sua pergunta, trouxe uma passagem do livro do general Villas Bôas, em que o ex-comandante do Exército afirma que os efervescentes debates em torno da igualdade de gênero, do racismo e das questões ambientais são os grandes responsáveis pelo aumento dos casos de feminicídio, da discriminação racial e das queimadas.

Mais uma vez, Itamar ensina, amplia o nosso olhar, surpreende: 

“Essa visão do general Villas Bôas, que ele põe no livro, que tem se manifestado com muita ênfase entre os políticos que fazem parte desse governo, eu penso que é algo que está restrito, até limitado a esse segmento político. Não é algo que está posto em nossa sociedade, muito pelo contrário. Eu tenho visto muitos avanços na sociedade civil”.  

Embora esperançoso, na condição de intérprete do país e funcionário público federal, Itamar Vieira Junior sabe que são tempos sombrios, marcados por ataques à democracia e retrocessos. Em razão das constantes ameaças sofridas por servidores, foi indagado se teme que sua exposição lhe cause prejuízos ou sanções.

O escritor não se furtou em dizer que sim, mas que ao mesmo tempo, o apoio e o amparo de seus colegas de trabalho fazem com que ele sinta confiança para seguir em frente, apesar de vivermos uma verdadeira “prova de fogo”. Vieira Junior fala ainda das medidas governamentais que têm inviabilizado o cumprimento do papel social do Incra e a garantia de direitos aos grupos historicamente excluídos:

“Vivemos uma prova de fogo em todos os sentidos. Acho que como autor, como pessoa ligada ao mundo das artes, eu vejo um grande retrocesso nas políticas públicas. Como servidor que tem como missão a pacificação do campo, a melhoria da qualidade de vida da população do campo, eu também sinto o mesmo. (…) O atual presidente da República foi muito claro durante sua campanha presidencial do que faria nesse sentido, e ainda assim fizeram uma opção por ele, mas eu tenho uma imensa esperança (…) na nossa sociedade, na educação do nosso povo, que eles despertem para o que está acontecendo.

Talvez a gente precisasse passar por isso para chegar do outro lado mais forte. Então essa prova de fogo vem como uma lição em todos os aspectos e, mesmo assim, temos resistido, não só no campo das artes, mas o trabalhador do campo tem resistido a todas as investidas para aniquilá-lo, para deixá-lo à margem, alijá-lo das políticas públicas. Acho que tudo isso era necessário para que a gente entendesse e valorizasse cada vez mais o que é nosso e o que podemos fazer, enquanto sociedade, para fazer desse país um lugar grande”

Conforme o exposto acima, apesar de todo horror que nos cerca, paralisa e desalenta, Itamar Vieira Junior insiste em falar de esperança. Mais do eu isso: ele nos ensina que a exemplo dos trabalhadores do campo, é preciso resistir e esperançar: 

“É uma esperança engajada. Eu tenho essa esperança engajada no Brasil. Não é uma esperança passiva, que está só esperando que as coisas aconteçam. É uma esperança ativa.”

A entrevista ao Roda Viva foi um verdadeiro bálsamo, um refrigério para a alma. Uma aula definitiva de literatura e cidadania. Uma oportunidade única de conhecer um pouco do escritor que tem encantado o público e a crítica. E não só. Ao longo de uma hora e trinta minutos, ficou evidente o que Itamar Vieira Junior representa para o Brasil nesse momento: esperança em meio a um cenário de terra arrasada

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