Cultura

‘Enciclopédia Negra’, um estudo abrangente e politizado das personalidades afro-brasileiras

Os mais de 500 verbetes tratam de anônimos e figuras célebres

Machado de Assis e Mário de Andrade vistos como eram de fato. Marielle Franco e Madame Satã se impuseram em um Rio de Janeiro violento e de poucas oportunidades. (Arquivo Nacional/Machado de Assis Real/Bernardo Guerreirp)
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É evidente que a decisão de publicar uma Enciclopédia Negra no Brasil de 2021 é um ato político. Ainda mais se, entre os 550 verbetes da publicação, constarem nomes de personalidades de destaque como a vereadora ­Marielle Franco, assassinada em 2018 por milicianos no Rio de Janeiro, Mestre Moa do Katendê, assassinado no mesmo ano na Bahia por um extremista bolsonarista, Madame Satã, lendária figura da boemia carioca dos anos 1940, e Carlos Marighella,­ guerrilheiro baiano que lutou contra o regime de exceção na década de 1960.

Mas há diversas outras implicações também de cunho político e afirmativo em Enciclopédia Negra – Biografias Afro-Brasileiras (Cia das Letras, 2021), trabalho de fôlego do historiador Flávio dos Santos Gomes, do artista plástico Jaime Lauriano e da antropóloga Lilia ­Moritz Schwarcz. A obra escora-se, como salientam os autores, na evidência de que, enquanto os registros de atos empreendidos pela população branca estão por toda parte, as referências acerca da imensa população negra são escassas – e há um especial vácuo em relação à população escravizada por quase quatro séculos.

Ao reconstruir o passado de muitos personagens que foram convenientemente esquecidos, a Enciclopédia dedica-se a “nomear, assim, a violência do nosso presente

A principal façanha da enciclopédia é “tirar do armário” do embranquecimento compulsório ou da falta de declaração pessoal algumas personalidades de grande destaque e incluí-las definitivamente no rol dos afro-brasileiros – casos de ­Mário de Andrade, Chiquinha ­Gonzaga e Machado de Assis. Mas, além dos grandes vultos da história e da arte, o livro reinsere no debate público figuras do passado escravista que, muitas vezes, não passam de fotografias em álbuns de família, como foi o caso da enigmática ama de leite Mônica, do Recife, Pernambuco (fotografada por Alberto Henschel e João Ferreira Vilela no século XIX), ou de um quilombola chamado Miguel, que criou estratégias de sobrevivência e afirmação nas fronteiras transnacionais das Guianas.

Essa gama de desconhecidos (entre eles feirantes, garis, cabeleireiros e eletricistas) assoma com suas sagas pessoais­ e sua contribuição de luta e orgulho faz do livro um tipo de garimpo especial, muito além de mera coleção de verbetes. Há figuras como o carioca Professor Pretextato, que fundou uma escola para alfabetizar os negros libertos no século XIX, combatendo a segregação nas salas de aulas. “Sobram lacunas acerca da maior parte da trajetória dos indivíduos retratados – por vezes não sabemos nem mesmo aproximadamente seus anos de nascimento e morte”, escrevem os autores. “Todavia, cada biografia narra, sempre, uma linda história: foram pessoas que se agarraram ao direito à liberdade; profissionais liberais que romperam com as barreiras do racismo; esportistas que desafiaram as amarras de seu tempo; mães que lutaram pela alforria de suas famílias; professoras que ensinaram seus alunos a respeito de suas origens; indivíduos que se revoltaram e organizaram insurreições; curandeiros e médicos que salvaram doentes; músicos que criaram e expandiram maneiras diferentes de se fazer cultura; ativistas que escreveram manifestos e fundaram associações e jornais; líderes religiosos que reinventaram outras Áfricas no Brasil.”

Ao reconstruir o passado de muitos personagens que foram convenientemente esquecidos, a Enciclopédia dedica-se a “nomear, assim, a violência do nosso presente”, que se expressa, hoje em dia, de forma muito nítida no aparato do Estado. É o caso, por exemplo, dos diversos “expurgos” realizados pelo atual presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, um homem negro que se dedica a negar o racismo estrutural do País e a fustigar os militantes afirmativos ­(demonstra especial rancor em relação ao ator e produtor Lázaro Ramos, que protagonizou Madame Satã no cinema).

(Ilustração: Pilar Velloso)

É, por isso, irônico que uma das referências fundamentais da Enciclopédia­ Negra seja justamente o trabalho do pai de Sérgio Camargo, o respeitável pesquisador Oswaldo de Camargo, que publicou, na década de 1980, o livro A Razão da Chama – Antologia de Poetas Negros Brasileiros (1986). Esse livro é citado como alavanca do trabalho, assim como outros esforços – o projeto A Mão Afro-Brasileira (1988), de Emanoel Araujo, que recupera perfis, trajetórias e obras de artistas negras e negros de várias gerações; Quem É Quem na Negritude Brasileira (1998), de Eduardo de Oliveira, com pequenas biografias de artistas, intelectuais, ativistas e personagens históricos do século XVI ao XX, e o Dicionário da Escravidão Negra no Brasil (2004), organizado por Clóvis Moura e Soraya Silva Moura, com verbetes de personagens e de eventos da escravidão. Há diversas outras fontes de referência, como duas obras de Nei Lopes – Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, de 2004, e Dicionário Literário Afro-Brasileiro, de 2007.

Nem tudo na Enciclopédia Negra se configura necessariamente como espelho às avessas dos expurgos de Sérgio Camargo. Por coincidência, alguns nomes que o dirigente da Fundação Palmares fez incorporar ao livro de personalidades da instituição, julgando-os negligenciados, estão presentes na enciclopédia, como o comediante Mussum e o cantor Wilson Simonal.

É possível, evidentemente, apontar ausências ou esquecimentos, como, por exemplo, o caso do pianista e compositor Johnny Alf (1929-2010), negro e gay, um dos pais da bossa nova, frequentemente escanteado também em ensaios ou livros do gênero, ou do jogador de futebol Arthur Friedenreich (1892-1969), primeira grande estrela do mais popular esporte brasileiro. Pelo leque de biografados, percebe-se que não se deixou que a noção de celebridade ou de reconhecimento público fosse mais importante do que a presença simbólica. “O certo é que não há mais espaço para tratar de África no singular, tampouco para retomar convenções coloniais utilizadas e canonizadas durante tantos séculos”, escrevem os autores.

O esforço foi abrangente e inimigo da invisibilização social – tanto que a enciclopédia incorporou, ainda em novembro de 2020, os fatos do bárbaro assassinato de João Alberto Silveira Freitas num supermercado Carrefour de Porto Alegre, produzindo um verbete-manifesto de última hora, abrigando mais uma vítima da violência racista. “A grande utopia deste livro é devolver à sociedade brasileira, sobretudo a negras, negros e ­negres, histórias e imaginários mais diversos e plurais”, dizem os pesquisadores. “Com esta Enciclopédia pretendemos, também, que a visibilização da vida (e da morte) de uma série de pessoas de origem africana contribua para o término do genocídio dessa população no Brasil. Pois tornar estas histórias mais conhecidas e dar rostos a estas personalidades colabora para a reflexão por trás das estatísticas, que nos acostumamos a ler todos os dias nos jornais, ‘naturalizando’ histórias brutalmente interrompidas, seja fisicamente, seja na memória.”

Publicado na edição nº 1152 de CartaCapital, em 8 de abril de 2021.

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