Cultura

Como novas plataformas digitais e a criptoarte estão mudando as formas de expressão artística

Peças são transmitidas em áudio, espetáculos viram fragmentos a serem caçados em vídeos curtos e álbuns são gravados em sessões com os fãs

(Fotos:Rerodução/DoryKramer/Twitch)
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Era 7 de março de 2020 e o ator Ivam Cabral, da Cia Os Satyros, encerrava a encenação do seu solo Todos os Sonhos do Mundo para uma plateia de 500 pessoas, no Cine Teatro de Cuiabá. Foi a última apresentação presencial. Mas dias após o início do isolamento social, a peça transformou-se em lives no Instagram. Na última segunda-feira 8 de março, às 21 horas, Cabral reestreou o monólogo em um inusitado formato, o teatro por áudio, no aplicativo Clubhouse, a mais nova onda do mundo digital. “Coloquei o celular num pedestal e fiz a peça em pé, como se estivesse no teatro. E curti a sensação de estar aqui falando com vocês”, afirmou à reportagem de CartaCapital, em bate-papo que se seguiu ao espetáculo.

Bem-vindos a um novo universo em que peças são transmitidas apenas em áudio, espetáculos viram fragmentos a serem caçados em vídeos curtos, álbuns musicais são gravados em sessões com os fãs e a obra de arte é vendida em criptomoedas. Tudo muito confuso para quem ainda tem a viva lembrança de só ir a um cinema, ao teatro, a um show de música ou a uma galeria de arte. A tecnologia vem ressignificando tudo isso. Novas plataformas digitais como Clubhouse, Twitch e Tik Tok, e mais a emergente criptoarte, são uma realidade para produtores culturais.

Ivam Cabral escreveu a peça em meados dos anos 2010, com a motivação de lidar com uma grave depressão. O boca a boca tomou conta desse espetáculo dramático e profundo, fundamentado no trabalho do ator. No palco não há música, som, luz ou figurino que tire o foco de sua fala. O ator e Rodolfo Garcia Vázquez, diretor da peça e cofundador da Cia Os Satyros, buscam agora atingir novos públicos pelo Clubhouse. “Entendemos que o teatro não é mais um lugar regional, da Praça Roosevelt. Estamos pensando em trabalhar aqui dentro, porque é uma plataforma muito interessante”, diz.

Novas plataformas digitais como Clubhouse, Twitch e Tik Tok, e mais a emergente criptoarte, são uma realidade para produtores culturais.

O Clubhouse é uma rede social de bate-papos apenas audiofônicos. Não há textos, emojis ou memes. Funcionam como clubinhos, com a vantagem de poder entrar e ficar só de ouvinte, em salas de assuntos variados. Um pouco antes da pandemia, a cantora e compositora Leesa, nascida Lisa Kalil, trabalhava no lançamento de Maná, seu segundo álbum, depois de Vitrais (2018). Mas problemas na distribuição das faixas fizeram o projeto ser adiado. Em janeiro deste ano, ela recebeu um convite para entrar na “nova rede social”. Lá reencontrou uma antiga amiga, Alexa Devi, e as duas tiveram a ideia de criar o House Teatro, uma leitura diária do livro A Volta ao Mundo em 52 Histórias, do inglês Neil Philip.

A obra digital Janus, do artista-programador Vamoss (Foto: Reprodução)

“Trouxemos o teatro para o ao vivo, que só acontece naquele momento. Dá um frio na barriga, porque estou criando os sons, as músicas, tocando os instrumentos, escaleta, piano, flauta, tudo na hora”, afirma Leesa. Ela e Alexa estão em São Paulo, e Michele de Paula, do elenco fixo, em Sorocaba. “Nos anos 1940, na época do radioteatro, ninguém sabia o corpo da pessoa, o que importava era se ela tinha talento e se conseguia respeitar o outro durante as conversas.” O Clubhouse conta hoje com mais de 6 milhões de usuários. As marcas, sempre de olho no potencial comercial das redes sociais, trabalham para entrar nesta nova plataforma.

Ganhar dinheiro é sempre uma necessidade para empresas e artistas, mas não sob os mesmos patamares. Não raras vezes, os criadores recebem bem menos do que quem mercadeja o produto cultural.

É por isso que os artistas estão de olho nas criptoartes, ou nas NFTs (non-fungible token, na sigla em inglês). E mais ainda no lançamento, em 5 de março, da primeira coleção NFT da história, pela banda de rock Kings of Leon. Ao lançar o álbum When You See Yourself, acessível nas plataformas de streaming, o grupo ofereceu também uma coleção de arte digital com 25 peças exclusivas e vendidas sobre um tipo de criptomoeda (o ethereum). Há itens, negociados na plataforma Yellow Heart, que vão de disco de vinil de edição limitada, capa alternativa a assentos cativos em shows da banda. 

O princípio é o mesmo do bitcoin, uma moeda baseada na tecnologia da blockchain, totalmente rastreável e escassa, com a diferença de que a criptoarte negocia itens culturais, que podem ser arquivos, GIFs, fotografias ou artes digitais. Quem compra ganha um atestado de originalidade da obra, o que aparentemente soa despropositado em tempos da reprodutibilidade maciça da obra de arte, como anteviu o filósofo alemão Walter Benjamin. “A NFT não resolve a pirataria, mas soluciona a autenticidade”, explica o artista-programador Carlos Oliveira, o Vamoss. “O que muda é que a gente (artistas) não precisa mais atravessar todas as barreiras. A arte tradicional precisa ter um mercado querendo te contratar, um galerista que queira te exibir, o curador e o museu, também. Na NFT, o público vai reconhecer diretamente o seu trabalho.”

Vamoss, diretor de tecnologia da SuperUber, responsável pela direção de tecnologia do Museu da Língua Portuguesa, conseguiu vender sua primeira peça de arte digital, sobre o deus Janus, pelo preço equivalente a 140 reais na plataforma OpenSea. A obra está valendo 221 reais, na última cotação do ethereum. Mas nesse mercado da cripoarte também há obras supervalorizadas. Right Place & Right Time, do artista Matt Kane, foi vendida por mais de 100 mil dólares, em setembro. Agora o valor da arte digital de Kane, que muda conforme a oscilação dos bitcoins, passa dos 400 mil dólares.

O músico Marcelo D2 também está com sede de produzir, mas sua praia tecnológica é outra. Desde o início da pandemia, ele e outros artistas, como Criolo, Tropkillaz e DJs de todo o País, passaram a explorar a Twitch, uma plataforma de vídeos mais conhecida pelos jogadores de esportes eletrônicos. Distantes dos palcos, eles puderam se reaproximar do público por meio dessas transmissões pela internet. A principal diferença da Twitch em relação ao YouTube, Instagram ou Facebook é que ela facilita a comercialização de assinaturas. 

Com mais de 80 mil seguidores, o rapper carioca decidiu inovar com a produção, edição e divulgação de seu álbum Assim Tocam os Meus Tambores ao vivo na Twitch. É um projeto que está sendo tocado há meses, e que premia os fãs não só com esses bastidores, mas também com a intimidade da casa de D2. Numa das transmissões, ele afirma que quer colocar um rap no disco, em parceria com novos talentos. “Tô a fim de fazer uma música com o Emicida. Ele tem uma ideia boa pra caralho”, afirma. Na nova composição, ele citaria sambas do Rio e Emicida, os de São Paulo.

A plataforma de vídeos curtos Tik Tok, febre entre adolescentes, é outra frente para os artistas. Na maioria das vezes, ela serve para “revelar” um outro lado, como faz o cantor superstar Justin Bieber.

Com mais de 20 milhões de seguidores, ele é um membro ativo do Tik Tok, apresentando os bastidores de shows e de sua vida pessoal. Nos dias 14 e 15 de fevereiro, ele fez nessa plataforma uma live de Journals, álbum de 2013. Teve mais de 4 milhões de visualizações. Desde o anúncio do #JournalsLive, ele conquistou 700 mil novos seguidores.

No Brasil, artistas famosos também ocupam o Tik Tok para participar de desafios e outras brincadeiras que entretêm o público. Mas há quem veja na plataforma outras possibilidades, como a Palhaça Catarina. A atriz Julia Bertolini, do grupo Praiaças, da Baixada Santista, decidiu fazer os vídeos curtos com mensagens inteligentes. “Ser palhaça já é revolucionário. E falar de política, mais ainda”, diz ela, que não perde a oportunidade de fazer troça de Jair Bolsonaro. “Alguns apoiadores dele me acham engraçada. Fui na linha de fazer brincadeiras, mas tentar conscientizar sem ser agressiva.”

Outra iniciativa na mesma clave é o espetáculo Pirata de Galochas. Com recursos da Lei Aldir Blanc, o grupo Galochas criou um espetáculo infantojuvenil no Tik Tok, onde cada ator, pirata ou não, está isolado na mídia social e se recusa a praticar a violência em nome do Estado. O grupo tem a prática do teatro ligado a movimentos sociais, atuando com os sem-terra e os sem-teto. “Ocupar o Tik Tok sempre foi por colocar conteúdo crítico em uma rede que não é tão crítica. Fazer produções que sejam divertidas, sedutoras, mas disputando conteúdo nesse espaço. Isso me parece bastante piratesco”, afirma Rafael Presto, responsável pela dramaturgia da peça.

Publicado na edição nº1148 de CartaCapital, em 11 de março de 2021

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