Cultura

Autobiografia de Snowden disseca o sistema de bisbilhotagem dos EUA

Snowden fugiu dos Estados Unidos e há seis anos vive exilado na Rússia, trabalhando para o público

Edward Snowden - Foto: Joerg Carstensen/Zuma Press/Fotoarena
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Responsável por expor ao mundo o sistema de vigilância em massa instaurado pelos Estados Unidos no pós 11 de Setembro de 2001, o engenheiro de sistemas americano Edward Snowden, de 36 anos, apareceu numa videoconferência na Feira de Frankfurt 2019 para lançar a autobiografia Eterna Vigilância – Como Montei e Desvendei o Maior Sistema de Espionagem do Mundo. Num evento fechado para editores de seu livro em 20 países ao redor do mundo (o Brasil incluído), em 17 de outubro, ele comemorou o processo que o governo dos EUA move contra ele por conta da obra. Mencionou que o livro estava em 29º lugar nas vendas da Amazon e saltou para a primeira posição após o anúncio do processo. Em tom de piada, afirmou que, certamente, o governo americano estava ouvindo aquela conversa e agradeceu-lhe por isso de viva-voz.

As primeiras linhas de Eterna Vigilância resumem bem o que virá a seguir. Aparentemente modesto, Snowden apresenta-se como um herói made in USA, ainda que rebelde contra o status quo de seu país. “Meu nome é Edward Joseph Snowden. Eu trabalhava para o governo, mas agora trabalho para o público. Levei quase três décadas para reconhecer que havia diferença entre um e outro e, quando reconheci, acabei tendo problemas no trabalho. E o resultado disso foi que agora passo meu tempo tentando proteger o público da pessoa que eu era antes – um espião da Agência Central de Inteligência (CIA) e da Agência Nacional de Segurança (NSA). Apenas mais um jovem tecnólogo construindo o que eu tinha certeza que seria um mundo melhor.” Após a revelação do escândalo e o vazamento de documentos governamentais ultrassigilosos pelos jornalistas Laura Poitras e Glenn Greenwald (hoje bastante conhecido no Brasil), em 2013, Snowden fugiu do país natal e há seis anos vive exilado na Rússia, trabalhando para o público (ou para o povo, dependendo da tradução).

Frequentemente com linguajar de gênio dos computadores, Snowden narra sua história em detalhes, desde o nascimento numa família ligada ao militarismo (o avô era contra-almirante, e o pai trabalhava como instrutor de eletrônica na Guarda Costeira) e à monocultura da Comunidade de Inteligência (CI) dos Estados Unidos. “Todos os adolescentes são hackers”, afirma, enquanto defende que a internet em sua adolescência era um paraíso protegido pelo anonimato e hoje se transformou num inferno. Lembra que existe uma geração de adultos que não conhece o mundo sem a derrubada das Torres Gêmeas e conta que seu principal arrependimento na vida é o apoio automático e inquestionável à “guerra sem limites” que os Estados Unidos moveram contra o mundo, a partir dos escombros do World Trade Center. “As duas décadas desde o 11 de Setembro têm sido uma sucessão de destruição estadunidense por meio da autodestruição, com a promulgação de políticas secretas, leis secretas, tribunais secretos e guerras secretas, cujo impacto traumatizante – e a própria existência – o governo dos EUA tem repetidamente escondido, negado, renunciado e distorcido”, escreve.

Os efeitos do 11 de Setembro para ele foram o alistamento no Exército e o “patriotismo apolítico”. A primeira parte diz não ter dado certo, e o jovem Ed terminou engenheiro de sistemas da CIA aos 23 anos e funcionário da empresa de informática Dell aos 26, mas trabalhando na verdade para a NSA. Seus princípios políticos à época, afirma, eram nenhum. O mecanismo que ele descreve, de intercâmbio entre agências governamentais e empregos-disfarce em empresas privadas, lembra o jeitinho brasileiro bem conhecido da mobilidade de agentes entre a polícia e as firmas de segurança privada – no caso, as companhias são de tecnologia.

Na CIA e na NSA, o então agente teve acesso irrestrito a dados “sobre negociações comerciais e golpes de Estado”

Pela Dell/NSA, no Japão, Snowden participou da criação do modelo de internet em nuvem, que define como uma “gigantesca rede secreta que garantia que, mesmo que a sede da NSA fosse reduzida a cinzas em uma explosão nuclear, nenhum dado seria perdido”. Afirma não ter compreendido, então, que participava de um “erro trágico”, que proporcionaria armazenar para sempre informações sobre todos os seres humanos que um dia usaram um computador ou celular. Aos 29 anos, Snowden foi transferido para o Havaí e passou a trabalhar no “paraíso”, mas “nas profundezas de um túnel sob uma plantação de abacaxis”. No cenário cinematográfico (Eterna Vigilância parece candidato certo a virar filme) teve acesso privilegiado ao que existe de mais secreto para a CIA e a NSA, “sobre negociações comerciais e golpes de Estado”, e descobriu que havia 320 milhões de americanos (e não se sabe quantos terráqueos) vigiados pela Comunidade de Inteligência (CI), o que define como violação flagrante da Constituição estadunidense.

Glenn Greenwald teve papel central na divulgação dos fatos (Foto: Lia de Paula)

Trabalhando na embaixada americana em Genebra, percebeu que “o segredo mais mal guardado da diplomacia moderna é que a principal função de uma embaixada hoje em dia é servir de plataforma para a espionagem”. Os sete anos passados na Comunidade de Inteligência representaram, diz, uma tomada de consciência paulatina sobre a realidade da vigilância (os governos preferem chamar de “coleta de dados”) em massa que emergiu do mundo pós 11 de Setembro. No percurso descobriu no seu país um lugar não tão democrático como os Estados Unidos gostam de apregoar para o mundo: “Aquilo que a China fazia publicamente com seus próprios cidadãos poderia estar sendo feito pelos EUA em segredo”. A coleta dos chamados metadados (não exatamente o conteúdo de tudo que fazemos na internet, mas sim o que os nossos ciber-hábitos revelam sobre nós) descortinou para ele a vigilância como “arma de massa contra o terrorismo e mais ainda contra a liberdade”.

O poder da vigilância em massa, para Edward Snowden, “aflige muito mais os inocentes do que os culpados”

Várias passagens de Eterna Vigilância fazem pensar no Brasil, ainda mais quando se sabe que um dos escândalos vazados por Greenwald e Poitras diz respeito à espionagem sobre a então presidenta brasileira Dilma Rousseff e a Petrobras. “A crise de 2008, que assentou grande parte das crises do populismo que uma década depois varreria a Europa e a América, ajudou-me a perceber que algo que é devastador para o público pode ser, e muitas vezes é, benéfico para as elites”, descobre. Talvez não por acaso, 2013 é o ano em que Snowden deixou de ser um cidadão anônimo e que marca o princípio da derrocada dos governos petistas no Brasil, por meio das “jornadas de junho”. Glenn Greenwald, agora, foi determinante para que Snowden desse apenas uma entrevista ao Brasil, nas páginas amarelas de Veja. Desde então, a dita grande imprensa local se calou sobre Eterna Vigilância.

Ponto explosivo do livro é o relato da conversão de Snowden de agente a delator. Ele faz uma longa explanação sobre o significado da palavra (whistleblower, em inglês) e sobre os sinônimos em diversas línguas. Trata a delação como um ato patriótico, mas não chega a mencionar as delações premiadas que fazem o império da brasileira Lava Jato, por exemplo. Na entrevista a Veja, ele respondeu a respeito da Lava Jato: “Não importa de onde a informação veio. Se ela é de interesse público e verdadeira, que seja divulgada”.

Perseguição implacável. Expulso da embaixada do Equador, Julian Assange, do WikiLeaks, está preso em Londres (Foto: Italy Photo Press/ZUMA Press)

A afirmação contradiz, em parte, o que Snowden defende no livro. “O governo dos EUA, em total desrespeito ao seu estatuto fundador, tornou-se justamente vítima dessa tentação (de espionar o mundo sem ninguém saber), e, uma vez tendo provado o fruto dessa árvore venenosa, foi tomado por uma febre implacável. Sigilosamente, ele assumiu o poder da vigilância em massa, uma autoridade que, por definição, aflige muito mais os inocentes que os culpados”, tateia. O que ele diz ali, de modo implícito, é que a exploração das culpas e infrações de cada cidadão pode se tornar método para o extermínio de inimigos, nas mãos das elites que têm o poder e o privilégio de vigiar e espionar simplesmente todo mundo.

As delações não parecem ser premiadas em casos como os de Snowden ou de Julian Assange, do WikiLeaks, preso em 2019 após viver como refugiado na embaixada do Equador em Londres, desde 2012. No caso de Snowden, a vida é de refugiado no exílio, mas ele é bastante discreto a respeito e dedica pouquíssimas páginas de Eterna Vigilância ao cotidiano na Rússia. Talvez não lhe interesse entrar em detalhes, ou talvez venha aí um Volume 2 da autobiografia que, para incômodo dos Estados Unidos, escala as paradas de sucessos mundo afora.

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