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Mesmo asfixiado pelo governo, o setor cultural mostrou em 2021 que pode se recuperar

Ao mesmo tempo que as novas ameaças de fechamento preocupam, os resultados do segundo semestre de 2021, agora consolidados, trazem algum alento

Hábitos pandêmicos. O público retornou aos cinemas no segundo semestre, mas para ver, sobretudo, os blockbusters. Ainda assim, mais de 300 salas do circuito brasilerio fecharam
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Esta semana, com o avanço da Ômicron, o setor cultural começou a se recolher de novo. Apesar de os espaços seguirem abertos, houve show cancelado, peça suspensa em decorrência de Covid-19 no grupo, set de filmagem com o roteiro alterado para tirar de cena atores contaminados e estreias adiadas.

Desde março de 2020 se diz que as atividades culturais seriam as primeiras a parar e as últimas a retornar. Sabe-se hoje que a volta plena depende do fim da pandemia. Ao mesmo tempo que as novas ameaças de fechamento preocupam, os resultados do segundo semestre de 2021, agora consolidados, trazem algum alento.

O relatório Dez Anos de Economia da Cultura no Brasil e os Impactos da Covid-19, feito pelo Observatório Itaú Cultural, mostra que o número de postos de trabalho na cultura cresceu 15% no terceiro trimestre do ano passado em relação ao mesmo período de 2020. No terceiro trimestre de 2020, havia 584,2 mil trabalhadores especializados em cultura em atividade no País. Entre setembro e dezembro de 2021, eram 675,5 mil.

Fonte: Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural

Trata-se de um indicativo daquilo que outras pesquisas apontaram: quando fosse possível, as pessoas voltariam a ver ao vivo shows, concertos, exposições, filmes e peças. O impacto sobre o setor foi – e segue sendo – enorme, mas a capacidade de recuperação surpreende positivamente.

No caso das salas de cinema, a renda das bilheterias, segundo o Filme B Box Office Brasil, cresceu 42,2% em relação a 2020. Os resultados se devem ao retorno dos blockbusters à tela grande e, no mês de dezembro, especificamente, a Homem-Aranha – Sem Volta para ­Casa. Os filmes independentes, por sua vez, têm sumido em meio às grandes estreias de Hollywood, que chegam a tomar mais de 90% do circuito. Embora esteja se recuperando, o parque exibidor brasileiro encolheu 9%, com o fechamento de cerca de 300 salas. Na terça-feira 11, um grande complexo do Rio, o Cinépolis Lagoon, anunciou o encerramento das atividades.

Os incentivos fiscais e os recursos de estados e municípios superam de longe o orçamento da União

Um dado que surpreende, em meio aos repetidos ataques do governo Bolsonaro à Lei Rouanet, é o volume de investimentos via Lei Federal de Incentivo à Cultura. O levantamento disponível no Salic.net, sistema de acompanhamento do mecanismo federal, registrou uma captação de 1,7 bilhão de reais em 2020, o maior volume desde 2014 (ver quadro na pág. 58). Esse foi, de acordo com o relatório do Observatório, o ano em que o valor captado mais se aproximou do teto da renúncia fiscal autorizada, atualmente em 1,2 bilhão.

Por que, então, a sensação é a de que o mecenato parou? A resposta está, muito provavelmente, no aumento da concentração dos recursos entre os grandes patrocinadores e captadores. Em 2020, os dez maiores investidores foram responsáveis por 38,6% do total captado até julho. Em 2019, o porcentual havia sido de 17%.

“A sensação que o pequeno produtor cultural tem, de que tudo parou, vem mais das características da lei do que de uma real paralisação dela. O mundo da cultura precisa encontrar-se com os números. Inclusive, porque o que a gente vê na cultura é o que a gente vê no Brasil”, diz Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural. “Se o Brasil está estagnado e é desigual, a cultura não será diferente.”

O que torna difícil o encontro com os números é que não existem dados nacionais oficiais consolidados. É preciso colher levantamentos dispersos e pesquisas feitas por diferentes instituições – de entidades setoriais a universidades – para se ter alguma noção do todo. E é isso que faz o Painel de Dados do Itaú Cultural, que foi lançado em 2020 e serve de base ao relatório publicado em dezembro.

*Os dados referem-se ao período de janeiro a agosto de 2020
Fonte: Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural

O período analisado vai de 2010 a 2020, sendo que, em 2020, os dados vão só de janeiro a agosto. Uma das coisas que a série histórica evidencia é o que aconteceu com o orçamento federal na última década. Não só a dotação caiu como a execução do orçamento público foi piorando (ver quadro na pág. 58).

Com a eleição de Bolsonaro, a pasta da Cultura, além de ter perdido o status de ministério para se tornar uma secretaria – primeiro abrigada no Ministério da Cidadania, depois no Turismo –, passou por um incessante vaivém de ocupantes. Desde 2019, foram seis os secretários, e dois deles não completaram sequer três meses no cargo (quadro à esq.). De 2016 a 2020, foram dez os titulares do ministério e depois da Secretaria Especial de Cultura.

A captação de recursos via Lei Rouanet cresceu, mas ficou mais concentrada

A instabilidade reflete-se, obviamente, nas instituições vinculadas à pasta e nas políticas públicas. “Quando comparado a outros países, em termos de investimento per capita, o orçamento para a cultura no Brasil é baixo. Mas pior que isso é a falta de estratégias para fomentar de forma perene e fazer fluir a difusão e a formação”, diz Saron. “A falta de foco e planejamento faz com que os recursos se tornem ainda mais escassos.”

A lei de incentivo acaba sendo, neste cenário movediço, a única política estável. Nunca é demais lembrar que a lei foi pensada, 30 anos atrás, dentro de um tripé. Além do mecenato, a política contemplaria o Fundo Nacional de Cultura (FNC), que deveria manter áreas prioritárias e não atraentes para o mecenato, e o ­Ficart, que consistiria em créditos. O FNC só encolhe e o Ficart jamais saiu do papel.

Na comparativo entre o orçamento público e os recursos incentivados, o relatório atesta que o mecenato, na última década, sempre superou os recursos da União. Em 2019, foi quase o dobro. Enquanto faz sua cruzada contra a Lei Rouanet, o governo Bolsonaro, simplesmente, não move uma palha para gerir os recursos que lhe permitiriam realizar ações diretas.

Fontes: Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural e Salic.net

Os dados sistematizados permitem também a compreensão do verdadeiro lugar, em termos orçamentários, do governo federal na cultura. Os orçamentos estaduais e municipais superam o federal, e estados e municípios têm, além do orçamento, as próprias leis de incentivo, baseadas em renúncia de ICMS ou de ISS.

Durante a pandemia, o papel dos governos estaduais e das prefeituras ampliou-se ainda mais, em decorrência da Lei ­Aldir Blanc (2020). A lei destinou recursos federais da ordem de 3 bilhões de reais, em grande parte oriundos do FNC, para que estados e municípios desenvolvessem ações de enfrentamento dos impactos da Covid-19 no setor. Esse valor, em 37% dos casos, superou a dotação orçamentária dos governos. Em estados como Alagoas, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e Santa Catarina, os repasses somaram mais que o dobro dos orçamentos locais.

Ou seja, graças ao fato de o governo federal ter, na prática, pouca ingerência sobre os recursos – ou porque eles vêm dos patrocinadores ou porque pertencem a estados e municípios –, a cultura, a despeito das tentativas de asfixia, vai conseguindo sobreviver. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: ISTOCKPHOTO

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