Cultura

Amar, verbo intransitivo

Ao descartar eufemismos, Michael Haneke retrata a morte da forma mais honesta. E mostra que, acima do lirismo, amar exige coragem

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O escritor mexicano David Toscana descreveu, em O Último Leitor, uma das melhores passagens que eu conheço sobre a banalização do tema “morte” na literatura. O livro conta a história de um bibliotecário de um vilarejo assolado pela fome e pela seca. Ali, diante do abandono (com carências materiais mais urgentes, os habitantes não pisavam na biblioteca havia anos), passa horas num jogo solitário e autocrático: identificar clichês nos livros disponíveis e se vingar dos autores com uma espécie de fogueira da inquisição. Quando o clichê era identificado, ele passava mel nas frases mal formuladas e jogava os livros num quarto escuro, onde as palavras eram literalmente devoradas pelas baratas.

O personagem esbarrava com expressões do tipo “o horror dos olhos diante da morte” e se enfurecia. Para ele, não fazia sentido alguém se apoiar na expressão sem jamais ter matado ou ficado perto da morte. Certo dia ele pede ao filho que ele sacrifique uma cabra com uma facada no peito. O filho obedece e é questionado pelo pai se, em algum momento, os olhos do animal demonstravam algum tipo de horror. A experiência real leva a uma outra resposta: não, a expressão não era de horror, como descreviam os literatos, mas sim de vergonha. Era como se a cabra estivesse constrangida pela forma com que morreria e seria observada pelos vivos depois de morta. Uma vergonha, conclui, comum a qualquer ser vivo flagrado em situações supostamente indignas.

Esse constrangimento da morrer, ou de caminhar até a morte inevitável, é escancarado sem anestesia em Amor, de Michael Haneke. O filme, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, ganhou cinco indicações ao Oscar deste ano: “Melhor Filme”, “Melhor Direção”, “Melhor Atriz”, “Melhor Roteiro Original” e “Melhor Filme Estrangeiro”. A história é simples: um casal de músicos octagenários se tranca dentro de casa para lutar contra a morte. Anne (Emmanuelle Riva) tem uma doença degenerativa e Georges (Jean-Louis Trintignant) é o marido responsável por recriar um mundo hermético no qual os desejos da mulher sejam de alguma forma garantidos – entre eles o de não permitir que naquela casa entre qualquer sinal de piedade pela enferma.

A sinopse, em si, não parece suculenta ao gosto do grande público, mas o alvoroço em torno do filme levou, na terça-feira 22, os espectadores a lotarem a sala do cinema onde eu estava. Talvez porque estivessem movidos pela expectativa de ver na tela uma história parecida com O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel Garcia Marquez, ou filmes aparentemente similares sobre o envelhecimento, como o lírico Longe Dela, de Sarah Polley.

À saída, duas impressões pareciam manifestadas. Os espectadores com idade mais avançada pareciam em choque, indispostos até para as lágrimas. Os mais jovens pareciam não ver sentido no que assistiam (vi alguns com olhos inchados, pontos de interrogação na cabeça e um certo rubor, corrigido com sorrisos, por uma ou outra lágrima que escapava na sessão).

As reações eram compreensíveis: em vez de “Morte”, o filme se chama “Amor”. E “amor”, à primeira vista, não remete à dor, a não ser as superáveis. As dores desnecessárias, que não levam à transcendência, não constam do script dos amores idealizados. Por isso, quem entrou na sala esperando uma história sobre superação, sobre o lirismo restaurador, com diálogos limpos sobre os esforços que de fato importam na vida, ou mesmo sobre a morte sublime, correu um grande risco de se decepcionar. O filme é um lento exercício de desconstrução da palavra-título. Mais ou menos como fez o personagem de Toscana: é preciso tirar da realidade seu elemento mais natural para encontrar o significado mais honesto da expressão.

E Amor descarta qualquer condimento. Mais que lirismo, amar exige coragem, parece dizer o diretor. E não há romantismo latente diante da morte, que degenera, separa, desgasta, oprime, envergonha e dá vida (por ironia) aos sintomas humanos mais primitivos do orgulho, da vaidade, da teimosia, da autoproteção.

Sem malabarismos, o filme consegue subverter lógicas assentadas em lugares-comuns e que tentam  tornar a morte menos indigesta. Por exemplo: em qualquer sociedade, a morte é trágica apenas quando a juventude é interrompida; no fim da linha, ela é natural, aceitável, permitida e até desejada. Quem disse?, questiona Haneke.

Como uma sombra, a morte ganha corpo pela casa onde a vida a dois parecia bem comportada. Naquela casa, ela é tão intrusa quanto os acidentes, os furacões, os desabamentos ou qualquer tragédia imprevista. Como são intrusos todos males que advém dela, inclusive a pena e os clichês indesejáveis. Clichês que pedem a tal “superação”, serenidade, paciência, como se a morte pedisse condimentos para ser aceita.

À saída, os espectadores mais jovens se mostravam indignados pela exposição supostamente gratuita ao sofrimento. Diziam saber que as pessoas nascem e morrem e que este processo, embora inevitável, é sempre doloroso. Mas o filme, que se passa apenas numa casa de cortinas fechadas, está longe de ser só isso. Pelo contrário: há, dentro daquela casa, uma profusão de elementos a mostrar como a morte é um ruído em si. Por exemplo, a tentativa de assaltantes arrombarem, sem sucesso, a porta da casa onde o casal vive quando tudo parecia em ordem. A pia que incomoda e não para de jorrar. Ou a disposição da mesa de jantar – onde Anne dá os primeiros sinais da doença –  colada numa parede e com espaço apenas para duas cadeiras. Encurralados, os dois personagens parecem simbolicamente condenados à incompreensão. Nessa, os diálogos com a filha parecem (só parecem) surreais. Numa das cenas, a personagem leva longos minutos a falar sobre viagem e a relação tensa com o marido. Só depois, como por educação, pergunta, afinal, o que aconteceu com a mãe. É a mesma filha que, como se não percebesse que a mãe está na cama sem a menor capacidade de articular uma ideia, discorre sobre investimentos em imóveis, poupança, preocupação com aplicações financeiras e pede a ela uma opinião sobre o que fazer. Num terceiro momento, a filha enquadra o pai, pede uma explicação para o que acontece, mostra-se preocupada com a situação da mãe e é interpelada: “de que me adianta a sua preocupação?”

Adianta quase nada. Anne, quando percebe que seu quadro é inevitável, sela um acordo informal com o marido, que promete vedar todas as brechas daquela casa para evitar contato com um mundo de preocupações e pesares. Ela simplesmente não quer ser vista com piedade. Como um diálogo cravado a vida toda, a filha não entende, nem faz esforço para entender a atitude dos pais. Naquela casa, não há tempo nem disposição para dar respostas ou ouvir dos filhos conselhos sobre o que é o certo a fazer a certa altura da vida. Porque, do lado de fora, as pessoas seguem suas vidas sem a projeção do fim – ao menos no centro das preocupações diárias com contas, carreiras, relacionamentos, etc. Mas a morte, de perto, desdenha eufemismos e futiliza qualquer sentimento de apego mundano.

Naquela casa já assombrada pela morte há espaço apenas ao que resta de vida, mais ou menos como escreveu Carlos Drummond de Andrade no poema Os Ombros Suportam o Mundo: “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação”. É essa sobra de vida que se desgasta sem eufemismo e mistificação o ponto central em Amor. Não esperem dele suspiros gratuitos. Nem do filme, nem da velhice, nem do amor.

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