Cultura

Como a Ancine vem sobrevivendo ao governo Bolsonaro

Em 2021, a participação de mercado dos filmes brasileiros foi de parco 1,4%. Este ano já começou, porém, melhor

Como a Agência Nacional do Cinema, que chegou a ser ameaçada de extinção pelo governo Bolsonaro, conseguiu ser preservada
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Na live de 25 de julho de 2019, Jair Bolsonaro, sentado a uma mesa forrada de papéis e ladeado por uma tradutora de libras e por um major da Polícia Militar, falou sobre a produção de cinema no Brasil.

Após dizer que tinha afastado um artista da comissão destinada a discutir a política antidrogas, ele tirou os óculos, tomou-se de um ar mais grave, e disse:

— Eu, na semana passada, critiquei o filme da Bruna Surfistinha, feito com dinheiro público. O filme tá feito e não temos como voltar atrás pelo que tudo indica ali. Mas, hoje – vejam como funciona a tal da Ancine, né? – teve uma liberação de 530 mil reais para fazer um filme comigo. Olha como os caras são legal, bonzinho (…) A Ancine ganhou mais um F.O. positivo – fato observado positivo. Vamos buscar a extinção da Ancine.

Corta. Na terça-feira 1º, passados dois anos e sete meses da live, a Ancine aprovou a destinação de 85 milhões de reais para a produção de longas-metragens brasileiros. Em dezembro, haviam sido anunciados 111,6 milhões de reais para a complementação do orçamento de projetos em curso. Em janeiro, foi a vez de um edital voltado a novos realizadores. Até o fim deste mês, devem ser publicados outros dois editais, somando 131,6 milhões.

No último mês e meio, três editais foram lançados e a fila de projetos em análise andou

Os apoios haviam sido anunciados em novembro de 2021, mas, assim como gato escaldado tem medo de água fria, os profissionais do audiovisual tinham receio de que, por trás do movimento aparentemente em prol do setor, houvesse alguma armadilha. Àquela altura, foram prometidos 651,2 milhões de reais – que, pelo andar da carruagem, de fato existirão.

Esses recursos são originados do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), alimentado por taxas e impostos pagos por diferentes players do setor. Boa parte deles advém, contudo, de uma taxa devida pelas empresas de telefonia. O que aconteceu, de 2019 até aqui, é que esses recursos estavam presos.

Dada a ameaça feita por Bolsonaro e os reiterados ataques do atual governo à cultura, depreendeu-se, no meio da produção, que o FSA tinha parado por razões estritamente políticas. Chegou a haver, afinal de contas, a edição de uma portaria, pelo ex-ministro Osmar Terra, da Cidadania, cancelando um edital voltado a produções de temática LGBT. Terra responde na Justiça por esse ato de 2019.

E havia, simultaneamente, o esvaziamento da diretoria da agência, ocorrido por uma soma de fatores – aí incluído o afastamento do diretor-presidente por uma decisão judicial. Em setembro de 2019, a diretoria colegiada, que deve ser formada por quatro pessoas, viu-se com um só membro: Alex Braga.

Procurador federal, Braga chegara à agência em 2003, na Consultoria da Procuradoria Federal junto à Ancine. Alcançou o posto de procurador-chefe e, em 2017, sob o governo Temer, apadrinhado pela deputada Soraya Santos (PL-RJ), tornou-se diretor.

Baque. Turma da Mônica – Lições é o primeiro filme brasileiro a levar mais de 500 mil pessoas aos cinemas desde que a pandemia fechou as salas de exibição – Imagem: Globo Filmes

Avesso a entrevistas e, até bem pouco tempo, avesso também a contatos com o setor, Braga, conforme a Ancine se encastelou, chegou a ser visto como algoz. Agora, vai sendo definido, por profissionais do meio, como um técnico habilidoso. Braga é, desde outubro, diretor-presidente da agência.

“Ele soube conduzir isso tudo muito bem e conseguiu, milagrosamente, liberar os recursos do FSA e lançar os editais”, diz Vera Zaverucha, ex-diretora da agência. “Acho que ele tem a intenção de levar adiante um projeto de desenvolvimento do setor.”

Por mais que o contexto político levasse a crer o contrário, o FSA tinha entrado em 2019 com problemas concretos. O Fundo tinha um descompasso entre recursos financeiros e recursos orçamentários. Em 2020, a Ancine informou que, apesar de ter assumido compromissos no valor de 944 milhões de reais, o FSA tinha 738 milhões de reais em caixa.

De acordo com os relatórios posteriormente apresentados ao Comitê Gestor do FSA, o descompasso acompanhou parte da história do fundo, mas foi agravado em 2018, quando se lançou um conjunto de editais incompatível não só com a disponibilidade financeira, mas com a capacidade operacional da agência.

Apesar de, durante algum tempo, o setor ter resistido a essa versão, atribuindo a crise a ímpetos de censura e de estrangulamento, o entendimento em torno da concretude do déficit, hoje ajustado, vai se sedimentando.

Apesar do respiro, as produtoras seguem enredadas nas cobranças feitas pelo TCU

“A Ancine entrou numa crise advinda da falta de planejamento sobre os recursos disponíveis, sobre a falta de estrutura de suas superintendências para dar conta de um programa lançado (em 2018) sem critérios corretos”, pontua a produtora Mariza Leão, do Rio, uma histórica articuladora e defensora das políticas públicas. “Ao longo de 2019, 2020 e 2021, tudo, ou quase tudo, ficou paralisado. Mas, ao contrário do que se pensava, a pausa serviu para arrumar a casa.”

Cabe lembrar que, ao longo desse período, evangélicos e outros correligionários do bolsonarismo foram indicados ou aventados para a diretoria da Ancine. Mas, depois de muito vaivém – inclusive, de secretários da Cultura –, a diretoria acabou sendo ocupada, de forma efetiva, por três servidores de carreira, sabatinados no Senado no primeiro semestre de 2021.

A Lei das Agências, que garante autonomia a esse tipo de autarquia, protegeu o órgão de intervenções como as vistas na Funarte e no Iphan. A ideia de que a Ancine estava passando por um processo de “depuração” também deve ter contribuído para que Bolsonaro efetivasse a indicação dos servidores para os postos.

Além de Braga, tornaram-se diretores efetivos, com mandatos de quatro anos, Vinícius Clay e Tiago Mafra, especialistas concursados. Resta, como diretor-substituto, um indicado do governo Bolsonaro. O cenário, apesar de alentador se comparado à turbulência prévia, guarda desafios.

“Estamos em um momento cinza: não é mais o inferno, mas também não é o céu”, define o cineasta Toni ­Venturi, ligado à Associação Paulista de Cineastas (Apaci). “O setor está ferido ainda. Muitas empresas estão endividadas e acho que todas elas continuam também mergulhadas em um processo insano de prestação de contas.”

Venturi refere-se a outro problema sério, este distante de uma solução: o da prestação de contas, também desencadeado no fatídico 2019, a partir de um acórdão do Tribunal de Contas da Uniãwo (TCU). O passivo de prestações de contas da Ancine é tão grande que, hoje, há produtores tendo de recuperar documentos de 15 anos atrás para digitalizá-los.

Censura. Osmar Terra tentou cancelar projetos LGBT – Imagem: Mateus Bonomi/Agif/AFP

As prestações de contas foram entregues, mas não analisadas. Venturi, dono de uma produtora pequena, tem três funcionários contratados. Todos eles cuidam da contabilidade. Em 2021, o cineasta tomou um empréstimo para contratar essas pessoas, mas afirma, neste momento, sentir-se aliviado porque, ao menos, seus projetos antigos, que ficaram três anos parados da Ancine, saíram da lentíssima fila de análises e diligências.

De acordo com a agência, foram concluí­das, em 2021, 924 análises de projetos do FSA e assinados mais de 600 contratos. No mercado, esses números se materializam em produtores que dizem estar, enfim, respirando um pouco – ainda que às voltas com velhas prestações de contas .

A produtora Jorane Castro, do Amazonas, quando questionada como acha que a Ancine sobreviveu, detalha o contexto dos últimos três anos, mas faz questão de dizer que, nesse processo, não se pode desconsiderar a mobilização política do setor.

“A gente via cartas assinadas por todas as entidades, numa união improvável entre grandes sindicatos da indústria e pequenas associações”, diz Jorane. “O setor, além disso, se fortaleceu muito politicamente, agindo no Congresso Nacional, inclusive.” Cabe lembrar que a paralisação do FSA gerou ações judiciais impetradas por produtores e mobilizou o Ministério Público, que chegou a intimar os diretores para se explicar.

Em meio à tormenta, ainda veio a pandemia. Em 2021, a participação de mercado dos filmes brasileiros foi de parco 1,4%. Este ano já começou, porém, melhor, empurrado por ­Turma da Mônica –Lições,­ que vendeu 700 mil ingressos, o dobro de ­Marighella, o filme mais ­visto do ano passado.

“Acho que foi o cinema brasileiro que sobreviveu, inclusive a despeito da própria Ancine, que ficou praticamente parada”, afirma a produtora Vânia Catani, que teve agora um filme selecionado para o Festival de Berlim. “E quando eu falo disso, não estou condenando os funcionários, que também não podiam fazer nada. Mas eu sinto que agora há, sim, uma boa vontade para se resolver.” •


A MEMÓRIA EM CACOS

Enquanto as ações da Ancine são retomadas, o Iphan agoniza e sofre ataques de Bolsonaro

Enquanto a Ancine respira, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), agoniza. Na semana passada, membros do conselho consultivo da instituição, um marco na história das políticas de cultura do País, assinaram um manifesto no qual são enfáticos: o governo Bolsonaro está perseguindo o Iphan e promovendo umdesmonte completo do órgão.

“A instituição vem sofrendo ações de governo, episódicas e conjunturais, que, a cada vez, reduzem e comprometem sua missão. Ataques que fazem parte de uma estratégia de minar o órgão interna e externamente”, escrevem os conselheiros na carta.

O documento cita, entre outras coisas, o discurso de Jair Bolsonaro, em dezembro, no qual ele disse, descaradamente, ter demitido os diretores do Iphan porque eles interditaram uma obra do empresário Luciano Hang, da Havan.

“Explicaram pra mim, tomei conhecimento e ripei todo mundo do Iphan… botei outro cara lá. O Iphan não dá mais dor de cabeça pra gente”, afirmou Hang, não custa lembrar – a título de trágica anedota – instalou réplicas da Estátua da Liberdade em suas lojas.

O governo federal tem, sistematicamente, indicado quadros absolutamente sem qualificação para o Iphan, uma instituição altamente especializada. E, neste caso, ao contrário do que acontece com a Ancine, o órgão não tem uma lei específica que o proteja.

Sabe-se que não foi por falta de tentativas que Bolsonaro não emplacou, até aqui, um indicado político para a Ancine. Nenhum deles, inclusive, teria condições de passar pela sabatina do Senado, um rito obrigatório para as diretorias colegiadas das agências reguladoras.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De volta para o futuro?”

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