Artes

A força do rap

Discurso de revolta e denúncia, o rap é um importante ponto de partida para se pensar as relações sociais – até mesmo dentro da escola

Mano Brown
O rap chegou ao Brasil nos anos 80 e foi apropriado especialmente por jovens da periferia. rap racionais mc mano brown periferia revolução palavras música cultura hip hop negro roberto camargos
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Foi no correr dos anos 1980 que o rap aterrissou em solo brasileiro, sendo apropriado, especialmente, por jovens negros e moradores de periferia que logo passaram a desenvolver uma produção local, sintonizada com questões de seu contexto.

Daí que o rap brasileiro – uma prática musical que faz parte do universo cultural hip-hop, composto também de outros elementos como o break e o grafite – já tem mais ou menos 30 anos de uma trajetória que ainda não foi contada de maneira consistente e sistematizada.

A música Negro Drama (Racionais MC’s) é utilizada na sugestão de atividade didática abaixo

A riqueza e a complexidade desse fenômeno cultural, porém, já é reconhecida em uma bibliografia considerável.

Leia atividade didática de Artes baseada neste texto

Competências: Compreender a arte como saber cultural e estético gerador de significação e integrador da própria identidade

Habilidades: Reconhecer diferentes funções da arte, do trabalho da produção dos artistas em seus meios culturais; Reconhecer o valor da diversidade artística e das inter-relações de elementos que se apresentam nas manifestações de vários grupos sociais e étnicos

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Discuta, à luz do legado dos rappers nas últimas décadas, questões relativas à etnicidade, racismo e autoafirmação da negritude no Brasil.

1. Faça um levantamento dos conhecimentos que os alunos possuem sobre o rap no Brasil: o que conhecem do histórico do gênero; quais artistas conhecem; que tipo de música preferem; o que já ouviram dizer sobre esse tipo de música na mídia, em casa, na escola; o que acham dos raps que já escutaram.

2. Inicie uma discussão, levando em consideração as colocações dos alunos, sobre o histórico do gênero (para ampliar o repertório, recorra ao documentário curta-metragem Marco Zero do Hip-Hop). Pontue o seu papel como expressão de uma sensibilidade popular e destaque os temas recorrentes nos raps: racismo, violência policial, cotidiano periférico, expectativas de vida.

3. Selecione duas ou três músicas e toque para os alunos. (Sugestões: Negro Drama. Racionais MC’s. CD Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, 2002; Resistência. NUC. CD 1º Encontro Nação Hip-Hop Brasil, s/d.; Racistas Otários. DMN. CD Saída de Emergência, 2001.)

4. Peça para que os alunos anotem as questões que consideram mais significativas nas canções. Dê um tempo para que eles sistematizem suas impressões acerca das músicas.

5. Promova um debate entre os alunos, direcionando para questões suscitadas pelas composições. Em diálogo com posicionamentos externados nas músicas, instigue o pensamento crítico (por exemplo, por meio da comparação das representações do negro nos raps escolhidos para a aula e em outras linguagens midiáticas, como novelas).

6. Divida a turma em grupos e estimule cada um deles a criar um “rap” que sintetize os saberes proporcionados durante as aulas.

7. Promova a socialização dos trabalhos, com cada grupo apresentando o resultado a que chegou para o restante da turma.

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O rap é um gênero musical que compõe um processo dinâmico. Sua origem está relacionada com a chegada de jamaicanos aos Estados Unidos no fim da década de 1960.

Esses imigrantes introduziram em solo estadunidense práticas culturais que já lhes eram comuns e que tinham influências de matrizes africanas, das quais descendiam, como a oralidade, modos de se comportar e tipos específicos de música.

Entre as práticas inovadoras inseridas no contexto urbano dos EUA estavam os costumes musicais conhecidos por sound sistems, espécie de sistema de som móvel que proporcionava a realização de encontros regados a música em espaços abertos como ruas e praças.

Os DJs (disc-jóquei) eram os responsáveis pelo funcionamento do sistema de som. Eles, entretanto, não se limitavam a tocar os discos: faziam uso criativo dos aparelhos de que dispunham, mixando, improvisando, experimentando e, com isso, construindo novas músicas.

Entre uma canção e outra aconteciam intervenções de um locutor, fosse para dar notícias, pedir algo, fazer propaganda, comentar algum assunto que poderia ser de interesse coletivo ou para tentar animar o público.

O rap nasceu com esses DJs que começaram a discotecar em festas públicas nova-iorquinas e que, ao desempenharem esse papel ante os toca-discos, ou emitiam ao mesmo tempo mensagens ao público ou abriam espaço para que outros o fizessem.

Aos poucos os DJs aprimoraram-se e passaram a se dedicar com exclusividade à dimensão sonora e ganhou força a figura dos MC’s (mestre de cerimônias) que, como personagens distintos, foram se encarregando do uso dos microfones e da emissão das mensagens.

Dali para a frente passou a vigorar uma divisão relativamente rígida entre o DJ, responsável pelo som, e o MC, que se colocou à frente do microfone, aquele que fala/canta por sobre a base rítmica.

Convém frisar que esse gênero musical, tal como qualquer fenômeno cultural, não surgiu pronto e acabado. Mais: não constitui atualmente uma prática cristalizada.

O rap é o resultado de múltiplas experimentações culturais que, em meio a processos de incorporação e apropriação (no caso, de traços da cultura jamaicana, afro-americana e latino-americana, bem como de estilos tão variados como funk, jazz, soul, reggae, dub etc.) desembocaram em uma música nova, desenvolvida organicamente em clubes e festas, em atenção aos anseios de parcelas específicas da população.

Em meio a ocasiões de lazer como aquelas a que se atribui o seu surgimento, momentos em que jovens se encontravam para atividades variadas, o rap (e o hip-hop em geral) teve sua história ampliada, graças a adeptos brasileiros que passaram a se dedicar a essa arte.

Ela chegou por aqui depois de sua explosão em discos e videoclipes e de sua presença na trilha sonora de filmes, momento em que adquiriu visibilidade como produto cultural que abarcava formas de identidade e novas experiências musicais.

Foram nas reuniões para se ouvir os discos dos artistas preferidos, nas tentativas de cantar suas músicas e no ensaio despretensioso das primeiras rimas que foi dado o pontapé inicial de um processo que consolidou um novo jeito de parte da população brasileira se expressar: “A gente não imaginava que seria capaz de fazer rap. A gente fazia rimas batucando nas latas de lixo”, lembrou MC Jack em certa ocasião.

As pessoas se viam, se reconheciam e se identificavam com o rap a partir de caminhos tortuosos, parciais, fragmentados, plurais. Por isso, o contato com ele, ao menos para alguns sujeitos, não instituía apenas uma relação de consumo e entretenimento passivo.

Daí foi ativamente incorporado ao cotidiano das pessoas, sendo ressignificado e ganhando colorações próprias em cada lugar em que passou a marcar presença – tanto que o termo rap, que em sentido literal significava ritmo e poesia (do inglês rhythm and poetry), passou, na visão de alguns rappers brasileiros, a significar simbolicamente “revolução através das palavras”.

No Brasil o rap adquiriu aos poucos um estatuto cultural “autônomo” conforme os envolvidos iam construindo significados e empenhando-se na defesa de determinados sentidos para a prática, ao passo que alguns modos de pensar e fazer se tornaram hegemônicos.

A fonte de inspiração dos rappers, geralmente, eram seus similares em Nova York e Los Angeles, e suas letras, concebidas como engajadas, remetiam a protestos e posicionamentos agressivos.

O rap, nesse movimento de apropriação cultural, saiu do âmbito dos discos, filmes e bailes e explodiu pelas ruas, seu gabinete de reflexões e interferências no social. Deveria ser pensado, segundo parte considerável de seus adeptos, antes de tudo, como instrumento de intervenção na realidade.

Configurou-se como uma estética do problema, em que se narram episódios de violência, de consumo de drogas e da dinâmica social do comércio de drogas lícitas e ilícitas, das péssimas condições de vida nos bairros periféricos e pobres (e o contraste destes com os bairros privilegiados), das condições de miséria e abandono e do acesso precário aos serviços públicos, do preconceito e da violência com que sofrem os negros.

São temas, em suma, que priorizam o cotidiano e as situações de “marginalização” a que estão submetidos muitos brasileiros.

O rap seria então, segundo alguns de seus músicos, a canção da reflexão, da luta e da tomada de consciência.

Essas características fizeram do rap um importante ponto de partida para se pensar as relações sociais – até mesmo dentro de sala de aula. Os sujeitos que se vincularam ao gênero se projetaram, inclusive por intermédio dele, em meio aos debates acerca da sociedade de seu tempo e atestaram, assim, sua participação na vida pública.

Construíram uma prática cultural que verbalizou as dissonâncias, assinalou a contestação do social no espaço da cidade e alimentou um novo ambiente de reflexão e denúncia.

O rap operou com uma dupla função no cotidiano de seus produtores e fruidores: a um só tempo foi discurso de revolta e denúncia da deplorável condição a que um sem-número de brasileiros é relegado e também veículo de catarse perante situações de opressão e controle social.

Ao aderir a essa prática, homens e mulheres criaram um espaço no qual puderam reaver e construir sua identidade, reconfigurar sua autoestima e propagar valores alternativos.

Levar o rap e as suas questões para dentro de sua de aula é tanto promissor quanto desejável.

É uma maneira de adentrar o campo de ideias e sentimentos que circulam socialmente – inclusive ou, sobretudo, entre os alunos – e entender como setores da sociedade brasileira atribuem significados para as experiências vividas e como narram o mundo do qual fazem parte.

Entre outras coisas, é possível adentrar o campo das relações étnicas, compreendendo diversas facetas do preconceito contra os negros na atualidade. Paralelamente, abre espaço para se considerar ações que visam o seu combate e, principalmente, a autoestima e afirmação da negritude. O professor que encarar o desafio poderá constatar que essa música é boa não somente para se ouvir, mas também para se pensar a sociedade e a história.

*Roberto Camargos é doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia. Autor de Rap e Política, livro sobre o rap, e diretor de É o Fluxo, documentário sobre o funk.

Saiba Mais 

Livro Rap e Política: Percepções da vida social brasileira, de Roberto Camargos, Boitempo Editorial, 2015.

Artigo “O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva”, de Bruno Zeni. Estudos Avançados, vol. 18, n. 50, pp. 225-241, 2004. 

Vídeos: Marco Zero do Hip-Hop, de Pedro Gomes, 2014.

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