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Violência, racismo e supermercados: quem são os bandidos?

Um duplo assassinato une racismo, brutalidade e a promíscua relação de um supermercado com o tráfico

(FOTO:CONEN/Unegro)
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A vendedora ambulante Elaine Costa Silva fazia bico em uma central de reciclagem da Ilha de Itaparica, na Baía de Todos os Santos, quando soube que seu filho de 19 anos estava na mira de traficantes. “Uma irmã de consideração do tio dele me ligou desesperada, dizendo que os dois estavam devendo 700 reais e precisava do dinheiro logo, para resgatá-los. Entrei em pânico. Eu não tinha nada, precisei pedir emprestado para pagar a passagem de ferry boat e voltar para a cidade”, relata a mãe, antes de ­desatar no choro. “Dali a pouco começaram a chegar as fotos. Primeiro, deles agachados no mercado. Depois, em poder dos bandidos. Então mandaram a foto do meu filho morto, sem camisa, com a cabeça enfiada em uma poça de sangue. Tive de reconhecer o corpo pela mão e pelo pé, porque ele não tinha tatuagem e estava com o rosto desfigurado. Não pude velar meu filho com caixão aberto, colocamos uma foto na tampa do caixão.”

Vítimas. Bruno e Ian, no supermercado e em poder dos traficantes. (FOTO: Redes sociais)

Ian Barros da Silva, de 19 anos, e seu tio, Bruno Barros da Silva, não estavam envolvidos com drogas. A cobrança era por quatro pacotes de carne que eles haviam tentado furtar de uma unidade do Atakadão Atakarejo no Nordeste de Amaralina, em Salvador. Em vez de chamar a polícia e registrar a ocorrência do furto, os seguranças do supermercado entregaram a dupla para cerca de dez homens armados, que vieram buscá-los em dois carros, segundo o relato de testemunhas. Desfigurados por golpes de faca e disparos de metralhadoras, pistolas e escopetas, os corpos foram encontrados no porta-malas de um carro, em um bairro a mais de 5 quilômetros de distância.

“Não consigo entender tanta crueldade por quatro pacotes de carne. Uma amiga tinha arrumado 300 reais e outra, 250, mas eles não esperaram juntar os 150 que faltavam”, lamenta Elaine. “Se meu filho fez coisa errada, por que não chamaram a polícia? Ele podia ser preso, por que matar? Tinha acabado de completar 19 anos.”

Os traficantes prestariam “serviços” ao Atakarejo sem o conhecimento da direção?

No período da manhã, Ian participava do Projeto Axé, no Pelourinho, onde aprendeu a tocar bateria. À tarde, cursava o nono ano do ensino fundamental em um programa de Educação de Jovens e Adultos. Sonhava em virar um youtuber de sucesso e comprar uma casa para a mãe, que cuidou sozinha dele e de outros três irmãos. Enquanto o projeto não decolava, chegou a vender amendoim nos faróis para reforçar as despesas domésticas, mas parou no início da pandemia. Nos últimos meses, passou a viver com o tio, a quem era bastante apegado. Com a suspensão do auxílio emergencial no início do ano, Bruno voltou a enfrentar problemas financeiros. Como tinha duas passagens na polícia, também por furto de comida, não conseguia arrumar emprego fixo. Ao que tudo indica, a decisão de furtar carne foi um ato desesperado, e o sobrinho tentou ajudá-lo.

O secretário da Segurança da Bahia, Ricardo Mandarino, reconheceu que o crime tem forte componente racial. “É o resultado desse conceito vil, tosco, desumano e deturpado de que ‘bandido bom é bandido morto’”, disse. “Há, nessa ação abjeta, um componente forte de racismo estrutural e ódio aos pobres. Na cabeça dessa gente torpe todo pobre e preto é bandido.”

Apesar do apoio manifestado por Mandarino à rigorosa apuração do crime, ativistas queixam-se do ritmo lento das investigações. “Testemunhas apontaram o chefe da segurança e o gerente da loja como os responsáveis por entregar Ian e Bruno aos traficantes da região. Por que a Polícia Civil ainda não pediu a prisão preventiva deles?”, pergunta Raimundo Bujão, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado. “Como há indícios do envolvimento do crime organizado, eles próprios correm sérios riscos se não estiverem sob a tutela do Estado. Como garantir que os traficantes não vão fazer uma queima de arquivo? Além disso, o Atakarejo é reincidente nesse tipo de prática. É preciso detê-los de alguma forma.”

Bujão refere-se à recente denúncia feita por uma adolescente de 15 anos, que diz ter sido espancada em outubro do ano passado, após uma tentativa de furto. A garota estava com duas amigas e os seguranças da loja as reconheceram, pois elas haviam furtado o supermercado anteriormente. A exemplo do ocorrido com Ian e Bruno, os funcionários do Atakarejo chamaram traficantes em vez de acionar a polícia. Quando os criminosos chegaram, as jovens correram em fuga, mas ela acabou capturada.  “Quando me pegaram, graças a Deus não acharam elas. Aí me levaram lá para o Nordeste. Lá, os caras me deram um monte de coronhada. Todos. Não sei se foi dez, se foi 11 homens, 15, não sei. Tinha homens e meninos. Bateram muito, me deram coronhada, me deram de ferro, de pau.”

Vítimas. Uma adolescente foi torturada em outubro. (FOTO: Redes sociais)

Após a sessão de tortura, os traficantes ainda fotografaram a adolescente e espalharam as imagens nas redes sociais. Com medo de represálias, a adolescente só decidiu denunciar o caso depois de tomar conhecimento das mortes de Ian e Bruno. “Me cortaram, abriram meu braço aqui com ferro. Isso ainda me afeta muito, me dói muito, porque aconteceu comigo e eu ainda fiquei com o trauma, sabe? Fiquei um tempo com trauma, escutando vozes, achando que as pessoas iam atrás de mim.”
Segundo o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia, o deputado Jacó, do PT, os dois episódios indicam que a segurança externa do supermercado é feita por traficantes, e seria impossível ocorrer sem o consentimento da administração da empresa. “Você consegue imaginar que um funcionário tomaria uma decisão dessas, de chamar criminosos em vez da polícia, se não houvesse uma orientação clara nesse sentido?”, indaga. “Mas eu entendo a cautela da polícia, de fazer uma apuração bastante cuidadosa, sem deixar pontas soltas. Esse pessoal tem muito dinheiro para pagar advogados. O dono da rede é multimilionário.”

“Não consigo entender tanta crueldade por quatro pacotes de carne”, diz Elaine Costa, mãe de Ian

O Atakadão Atakarejo encerrou 2020 com lucro líquido de 59,2 milhões de reais,­ alta de 21,46% em relação ao ano anterior. A rede pertence ao empresário Teobaldo Costa, que disputou a prefeitura de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, no ano passado, pelo DEM. Na declaração entregue à Justiça Eleitoral, ele informou ter um patrimônio de 341,2 milhões de reais. Em seus posicionamentos públicos até o momento, a empresa limitou-se a dizer que é “cumpridora das normas legais, possui rigorosa política de compliance e não compactua com qualquer ação criminosa”, além de manifestar solidariedade às vítimas e acrescentar que “o grupo aguarda o encerramento das investigações para a elucidação do caso e espera a punição dos culpados”.

Pelourinho. Debret ficaria assombrado com a brutalidade dos dias atuais

“Esse caso ganhou muita projeção nos últimos dias por conta da brutalidade, mas a verdade é que os negros são vítimas frequentes de violência praticada pelos supermercados. O problema é estrutural, e as grandes redes varejistas se recusam a propor medidas efetivas para evitar a repetição dos abusos”, lamenta Bujão. De fato, o histórico do setor é tenebroso. Em 2019, um adolescente negro foi levado para os fundos de um supermercado na capital paulista, onde foi despido e barbaramente torturado com um chicote de fios trançados, pena imposta por furtar uma barra de chocolate da rede Ricoy. No mesmo ano, um rapaz em ataque psicótico morreu após um segurança do Extra da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, deitar em cima de seu corpo e aplicar uma gravata para imobilizá-lo. Em novembro de 2020, um cliente negro desentendeu-se com vigias de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre e acabou espancado e asfixiado até a morte, sob o olhar complacente de funcionários do estabelecimento.

Último país das Américas a abolir formalmente a escravidão, o Brasil acostumou-se à barbárie desde o período colonial. A cena do capitão-do-mato a deitar o sangue de um escravo fujão no pelourinho, retratada por Jean-Baptiste Debret em 1835 e estampada nestas páginas, só ficou desatualizada pelo instrumento de suplício. No lugar do açoite, agora também há pistolas e escopetas.

Publicado na edição n° 1156 de CartaCapital

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