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Programa de Damares na Ilha de Marajó é uma ação entre amigos, agronegócio e pastores

Na região estão oito das 50 cidades com os piores índices de desenvolvimento do País. Entidades civis denunciam conflitos de interesse

Propaganda. O “Abrace o Marajó“ prevê parcerias público-privadas para ampliar o acesso da população à saúde e educação. (FOTO: Alan Santos/PR)
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Compondo o maior arquipélago do planeta, com 48 mil quilômetros quadrados de área, a Ilha de Marajó, no Pará, convive com a exploração sexual infantil, o tráfico humano e a fome. Um de seus municípios, Melgaço, registra o pior Índice de Desenvolvimento Humano do País. Foi esse pedaço de terra historicamente abandonado pelo Poder Público que Damares Alves, ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, escolheu para depositar um cavalo de Troia, segundo os moradores da região: o programa social “Abrace o Marajó”.

O programa foi apresentado ao mundo pela ministra na 46ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em abril. Diante da plateia internacional, Damares não teve pudor em inflar os dados do projeto e anunciou investimentos de 900 milhões de dólares, quase 5 bilhões pelo câmbio atual, até 2023. Para o público interno, o número é outro, bem mais modesto. Em agosto, a pasta divulgou um incremento de 11 milhões para 19 milhões de reais. O Abrace o Marajó prevê parcerias público-privadas para ampliar o acesso dos 500 mil marajoaras à saúde, educação e segurança. Na região estão oito das 50 cidades com os piores índices de desenvolvimento do País. Não bastasse, a população sofre, em pleno século XXI, com a ação de piratas, dedicados a roubos e sequestros.

Entidades civis denunciam, no entanto, conflitos de interesse, econômicos e políticos, no programa. Para começar, uma das ONGs contratadas para gerir alguns dos projetos é a Rede Mondó, comandada por Elizabeth Guedes, irmã do ministro da Economia, Paulo Guedes, e Lyvia Montezano, esposa do presidente do BNDES, Gustavo Montezano. Em princípio, a organização ficaria responsável por administrar 5 milhões de reais em ações ligadas ao Pátria Voluntária, atividade que ocupa o tempo da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, mas as primeiras denúncias a respeito levaram a uma redução do orçamento para 700 mil reais.

Família. A Rede Mondó é de Elizabeth Guedes, irmã do ministro da Economia. (Foto: Marcos Oliveira/Ag. Senado)

A Rede Mondó nasceu há poucos meses e foi criada especificamente para elaborar o plano piloto no município marajoara de Breves, que ocupa a 5.520ª posição no ranking dos piores IDHs do ­País, segundo o IBGE. Quem responde pela ONG é a Associação Nacional de Universidades Privadas (Anup), presidida pela irmã do ministro Guedes. Lyvia Montezano, por sua vez, integra a diretoria por indicação da própria Damares. “A equipe da Rede Mondó é paga com recursos privados e o convênio que foi celebrado entre a prefeitura de Breves e a Anup não contempla o repasse de recursos e não teve nenhuma interveniência do governo federal, que sequer dele faz parte”, respondeu a entidade por meio de nota. O BNDES, também por escrito, afirmou que “não houve aportes destinados diretamente ao programa e que ainda está em estudo a criação de um fundo para a gestão desses recursos”, e que o apoio ao programa tem o objetivo de “atrair investimentos para a região, gerar emprego e renda, contribuindo também para a redução da violência sexual”.

Cerca de 60 entidades denunciaram, porém, ao Ministério Público Federal a exclusão da sociedade civil das discussões. A população não é ouvida, mas agricultores e religiosos da região têm espaço livre para dar seus pitacos e meter o bedelho. CartaCapital teve acesso às 124 agendas da ministra relacionadas ao programa obtidas pelo Observatório do Marajó, via Lei de Acesso à Informação. Em geral, Damares encontrou-se com empresários e pastores. Em 2 de julho, esteve na cidade­ de Soure, onde se reuniu com representantes da Igreja Universal, Assembleia de Deus, Ministérios da Renovação, Reconciliação, Casa de Oração, Missão para Todos, dentre outras seitas, e com a Associação de Produtores, Extratores e Comerciantes de Produtos Acabados. Em outras reuniões também estiveram presentes criadores de búfalos. “Não é só a disputa pelo ouro roxo, o açaí, ouro marrom, madeira, e ouro propriamente dito, mas também pelos rios por onde eles querem escoar e exportar seus produtos”, denuncia Luti Guedes, diretor-executivo do Observatório do Marajó.

Uma das ONGs escolhidas para gerir recursos é dirigida pela irmã de Guedes e pela mulher do presidente do BNDES

A distância entre o programa federal e a população marajoara é maior do que se imagina. Os “coletivos da sociedade” escolhidos pelo governo para acompanhar o projeto são a Federação das Indústrias do Estado do Pará, a Federação da Agricultura e da Pecuária do Pará e a BioTec, empresa prestadora de serviço ao setor privado. Há quem desconfie que o Abrace o Marajó tem o objetivo político de cacifar uma possível candidatura de Damares Alves ao Senado pelo estado, que lhe concedeu o título de cidadã honorária. “A parceria desse programa é com o agronegócio da região e não com o povo”, acusou Dom Evaristo Spengler, bispo da prelazia do Marajó. O religioso enviou uma carta a Damares, em janeiro, na qual solicita uma reunião e maior diversidade de representantes no comitê gestor, mas até hoje não obteve resposta. O bispo afirma ter sido convidado apenas para um único evento, do qual Jair Bolsonaro participou, em Breves, durante as eleições, e que declinou do convite por convicção “ética e evangélica”, para evitar apropriação político partidária da ordem.

Marajó. A ilha convive com a exploração sexual infantil, o tráfico humano e a fome. (FOTO: Marcelo Camargo/ABR)

O Ministério Público instaurou um procedimento administrativo de acompanhamento de políticas públicas em parceria com a Defensoria Pública da União e os respectivos órgãos ­estaduais, além de expedir uma recomendação ao governo federal para que o programa seja repensado. “O Estado Brasileiro tem violado os direitos humanos das populações tradicionais e da sociedade civil do Marajó ao impor, por meio do Programa Abrace o Marajó, uma visão uníssona de desenvolvimento, pautada exclusivamente nas compreensões do próprio Governo Federal e por interesses corporativos e setoriais e desconsidera as razões e considerações de terceiros”, registraram os defensores públicos na recomendação, atribuindo ao programa a prática de possível “racismo ambiental”.

Os críticos também apontam erros nos critérios para a cessão de regularização fundiária, outro ponto de ação do programa, com potencial para ampliar os conflitos de terra na região, casos de violência contra quilombolas e grilagem. “As titulações quilombolas estão paralisadas e foram entregues títulos provisórios a fazendeiros. Vemos o aumento da violência e também, por extensão, invasões a comunidades tradicionais para a extração de oleaginosas, madeiras”, descreve Paula Arruda, advogada e professora da Universidade Federal do Pará.

Um levantamento do professor Carlos Augusto Ramos, consultor da ONG ­FASE, via Portal Transparência, mostra que, em 2019 e 2020, houve uma redução em 58 milhões de reais nos recursos para 16 municípios do Marajó. Além disso, os repasses per capita ficaram abaixo dos 140 reais, limite da extrema pobreza.

Em situação de vulnerabilidade, crianças e jovens do Marajó estiveram no centro do debate nacional, quando a CPI da Pedofilia foi instalada no estado em 2008. A pauta da exploração sexual infantil foi o que motivou a criação do Abrace o Marajó mais de uma década depois, mas o descolamento da realidade apareceu no primeiro discurso da ministra, quando apresentou sua ideia para combater o problema: instalar uma fábrica de calcinhas na região.

“A parceria é com o agronegócio e não com o povo”, resume o bispo Dom Evaristo Spengler

A declaração revoltou a população. “Vimos isso como mais uma forma de violentar nossas crianças. O projeto não enxerga a situação precária de quem sofre sem educação e saúde. Muitas são abusadas dentro de casa, 81%, segundo relatório da CPI da Pedofilia de 2010, ou a exploração ocorre por não se ter o que comer. Por isso esse programa é um cavalo de Tróia que entrou aqui para atender a outros interesses”, desabafa a Irmã­ ­Marie Henriqueta, coordenadora da CNBB e uma das denunciantes dos casos que culminaram na abertura da comissão parlamentar.

Em seu relatório final, a investigação apontou mais de 100 mil casos no Pará, 20% deles a atingir crianças de até 5 anos. Treze anos depois, a CPI ainda gera desdobramentos. O Superior Tribunal de Justiça acaba de confirmar a condenação a 21 anos de prisão do ex-deputado estadual paraense Luiz Sefer, por estupro de uma menor de 9 anos. O crime ocorreu em 2005. A CPI também listou religiosos, outros políticos e empresários por envolvimento nos crimes.

Publicado na edição nº 1183 de CartaCapital, em 11 de novembro de 2021.

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