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Foi o ano da resistência das mulheres, diz Anistia

No 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONG divulga o seu mais novo relatório sobre desigualdades

Marcha das Mulheres Negras (Tânia Rwgo/ABr)
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No mundo, 49,5% de toda a população é do sexo feminino. Mas apenas 17% dos chefes de Estado e de governo e 23% dos parlamentares são mulheres. Estes dados do novo relatório da Anistia Internacional, apresentados nesta segunda-feira 10, ilustram o longo caminho a ser percorrido para uma verdadeira igualdade de gênero.

“Os direitos das mulheres sempre foram classificados abaixo de outros direitos e liberdades”, diz o secretário-geral da Anistia Internacional, Kumi Naidoo. Ele condena os governos “que se mantêm calados e que na realidade pouco fazem para proteger os direitos de metade da população”.

Em particular, a organização de direitos humanos registrou uma crescente abundância de “sujeitos durões” entre os líderes de Estado que defendem políticas xenófobas ou contrárias às mulheres. Mas as mulheres deste mundo, diz a Anistia, querem cada vez mais: Naidoo classificou 2018 como “um ano marcado pela resistência das mulheres”.

Em seu prefácio, o ativista lembrou os protestos em todo mundo sob a hashtag #MeToo contra a agressão sexual e a luta por Justiça para milhares de mulheres na Nigéria depois de ataques de soldados e extremistas do Boko Haram. Na América Latina, um movimento feminino de proporções até então desconhecidas tomou as ruas sob o lema “Ni una menos”.

Em alguns países, a situação das mulheres melhorou, como, por exemplo, na Irlanda, onde o direito ao aborto foi liberalizado por referendo, ou na Arábia Saudita, onde as mulheres estão agora autorizadas a conduzir veículos.

Esses êxitos fracionários não devem, porém, obscurecer a enorme demanda reprimida.

De acordo com a Anistia Internacional, cerca de 40% das mulheres em idade reprodutiva vivem em países onde o aborto é regulamentado de forma muito restritiva, e cerca de 225 milhões de mulheres mundo afora não têm acesso a contraceptivos modernos. Além disso, a disparidade salarial entre homens e mulheres ainda é de 23%.

Para 2019, a Anistia Internacional quer impulsionar uma guinada definitiva. “Mais do que nunca, temos de estar junto aos movimentos das mulheres, dar ouvido às mulheres em toda a sua diversidade e batalhar pelo reconhecimento de todos os seus direitos”, diz Naidoo.

Crise dos refugiados

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No relatório de 52 páginas, a organização de direitos humanos também analisou o agravamento da situação dos refugiados em todo o mundo. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), ao menos 75.200 refugiados foram realocados no ano passado, uma queda de 54% em relação a 2016. A Acnur apontou que ao menos 1,2 milhão de realocações são necessárias anualmente.

A Anistia Internacional afirma não acreditar que o ainda a ser votado Pacto de Refugiados da ONU acarretará em muitas mudanças. O relatório classificou o tratado de um “plano embaraçoso de abstenção intencional”.

Não mudará em nada para a minoria rohingya em Bangladesh, os jovens somalis que nasceram em campos de refugiados no Quênia ou os refugiados esquecidos em Nauru. E o pacto migratório entre a União Europeia (UE) e a Turquia, no qual Ancara acolhe refugiados mediante pagamento de Bruxelas, os defensores de direitos humanos classificam como “ponto de referência de como se desvincular da responsabilidade”.

Refugiados na Etiópia (Fotos Públicas)

Fortalecimento da África

Na África, a Anistia Internacional observa uma terceira batalha enfrentada pelas sociedades locais. Depois de alcançarem a independência de seus colonizadores e, em alguns Estados, superarem regimes violentos e repressivos, estas sociedades enfrentam agora a necessidade “de tornar as leis nacionais e os compromissos de direitos humanos mais valiosos do que o papel em que estão escritos”.

O relatório critica, por exemplo, o governo do Egito, que prende críticos. Por outro lado, a Anistia Internacional enaltece o progresso feito na Etiópia, que tem se abrido cada vez mais sob o novo primeiro-ministro Abiy Ahmed. No entanto, o relatório também aborda retrocessos, como a prisão, muitas vezes arbitrária, de três mil jovens em setembro, supostamente devido a um aumento da criminalidade.

A melhor notícia da África, de acordo com o relatório da organização de direitos humanos, é a “contínua e extraordinária coragem exibida no continente pelas pessoas comuns”.

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Crises na Ásia e no Oriente Médio

A Anistia Internacional classifica os campos de detenção na província autônoma chinesa de Xinjiang, onde transcorre a tentativa de doutrinação de até um milhão de uigures e de outras minorias, como “um dos desenvolvimentos mais perturbadores do ano”.

Atenção especial foi dada também à situação em Myanmar, de onde 720 mil membros do grupo étnico muçulmano rohingya fugiram do país e cruzaram a fronteira com Bangladesh, em que vivem majoritariamente em condições miseráveis.

No Oriente Médio, a Anistia Internacional critica especialmente a guerra no Iêmen, que acarretou em 17 mil civis feridos ou mortos até então. O caso Khashoggi também desviou a atenção para a situação na Arábia Saudita, na qual a carteira de motorista para as mulheres representa muito mais uma concessão do que uma abertura fundamental para maiores direitos civis.

Incertezas na Europa

“O aumento da intolerância, do ódio e da discriminação no contexto de um espaço cada vez menor para a sociedade civil está ampliando a lacuna na estrutura social da região”, descreve a Anistia Internacional. “Uma política de medo separa as pessoas, enquanto os líderes usam retóricas tóxicas ao culpa grupos de pessoas por seus problemas sociais e econômicos.”

Um exemplo preocupante é a Turquia, onde mais de 130 mil funcionários públicos foram arbitrariamente demitidos. Além disso, a independência e o posicionamento do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos estão cada vez mais ameaçados. Alguns Estados se recusaram a implementar julgamentos vinculativos.

Por outro lado, a organização dos direitos humanos também atestou uma crescente resistência popular na Europa. “Um amplo movimento de pessoas comuns com um entusiasmo extraordinário se posicionaram em favor de justiça e igualdade”, diz o relatório.

Ataques na América

No segundo semestre, pode ter parecido brevemente que o movimento #MeToo nunca existiu nos EUA. O presidente americano, Donald Trump, conseguiu impor seu indicado à Suprema Corte, Brett Kavanaugh, embora uma professora tenha declarado ao Senado ter sido estuprada por ele quando eram jovens e mesmo com o protesto de milhares de mulheres.

Além disso, o relatório criticou a separação de centenas de crianças de suas famílias depois que estas cruzaram ilegalmente a fronteira dos Estados Unidos.

De resto, o foco esteve principalmente nos países da América Central e do Sul, onde os cidadãos foram repetidamente hostilizados pelas autoridades. A Anistia Internacional criticou, por exemplo, que na Colômbia os tribunais sejam usados para silenciar defensores dos direitos humanos. No país, um ativista é assassinado em média a cada três dias. Mas também há esperança, como demonstrado em Honduras com a prisão de nove pessoas responsáveis pela morte de um ativista.

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