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De volta ao velho Brasil

O mercado surfa na incompetência e no oportunismo do governo e restabelece o antigo rentismo, a lucrar com altas taxas de juros

(FOTO: Renato Luiz Ferreira e Suamy Beydoun/Agif/AFP)
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O governo errou feio diante dos vários choques dos preços das commodities e do câmbio, violou as próprias regras fiscais para criar bondades pró-reeleição de Bolsonaro, criou um clima ruim e o mercado financeiro foi rápido. Surfou nos deslizes e puxou os juros de longo prazo para taxas de dois dígitos, o que não se via desde o auge do medo da pandemia, em março do ano passado, quando chegaram a 10%. A elevação dos juros, que é generalizada, pegou carona também no temor global de que, mais cedo ou mais tarde, os Estados Unidos retirarão os estímulos fiscais e voltarão a aumentar as taxas diante de uma recuperação da economia em andamento e isso, como sempre, afetará o resto do mundo.

A incompetência governamental e seu aproveitamento pelo mercado financeiro, concluem vários analistas, empurraram a economia brasileira ainda mais para trás, rumo ao velho rentismo, no qual, ao contrário da situação vivida até pouco tempo atrás, o ganho não vem da valorização do montante aplicado a uma taxa de juros baixa, mas do recebimento dos próprios juros. As taxas foram impelidas para o alto por uma combinação de situações que inclui queda de investimentos no País, debandada de multinacionais, disparada dos preços de alimentos e combustíveis, aumento da reprovação do governo, degradação socioeconômica, risco jurídico ascendente, conturbação político-institucional, devastação recorde da Amazônia, aumento do risco de apagão e da falta de água, saco de bondades eleitorais e, em grande medida, a oportunidade­ de o mercado financeiro realizar, nesse contexto, lucros estratosféricos.

Constrói-se um roteiro trágico em direção ao pior dos mundos

“Em poucas semanas, a taxa de juros de dez anos, associada ao risco Brasil, explodiu. Na quinta-feira 19, a NTN-f com vencimento em 2031, com prazo de dez anos, beliscou 11% ao ano. Fazia muito tempo que isso não acontecia”, aponta o economista Gabriel Galípolo. A taxa de juros longa subindo, diz, é uma perspectiva do mercado de que amanhã o futuro estará pior e o governo terá de subir mais os juros, ou pagar juros mais altos para se financiar.

 

O efeito para o Brasil é funesto, segundo a análise do economista José Carlos Braga, professor do Instituto de Economia da Unicamp. “O que nós estamos assistindo nos últimos tempos é a construção, agora também com a explosão dos juros, de um roteiro trágico em direção ao pior dos mundos, que é a combinação da estagnação com inflação e alto desemprego.” Essa combinação, acrescenta, foi vista no passado em países desenvolvidos. “Em países periféricos e também subdesenvolvidos como o Brasil continua a ser. Essa combinação implica aumento da miséria, da pobreza e provoca uma elevação grave de concentração de renda e de riqueza e de regressão estrutural, como nós estamos vendo.” Já não é uma questão, sublinha, do processo de desindustrialização, mas de regressão em vários níveis, na sociabilidade, no desmanche das políticas públicas, nas áreas da saúde e da educação. “Esse movimento agora acelerado em relação aos juros é um sintoma gravíssimo disso”, chama atenção Braga. Impávida diante dessa degradação profunda, acrescente-se, a mídia não hesita em alardear que a elevação do valor do Bolsa Família aumenta o risco Brasil.

O governo inclui projeções fantasiosas no orçamento

Há ao menos duas interpretações para a escalada das taxas. A maior parte dos economistas do mercado atribui a elevação dos juros à deterioração do cenário fiscal, prevê que as reformas não passarão no Congresso, nem mesmo a tributária, e diz que o governo cria novos riscos nessa área com um pacote crescente de “bondades” destinadas a ajudar a campanha de reeleição de Bolsonaro, como a intenção de aumentar o Bolsa Família e os salários do funcionalismo, e, além disso, planeja adiar o pagamento de precatórios. Outro grupo leva em conta que a economia internacional está em processo de retomada a partir do aumento do gasto fiscal e de investimentos, exatamente o oposto do que se faz no Brasil. A leitura do chamado mercado é de que, com a retomada da economia no resto do mundo, os juros longos dos EUA subirão e, por arbitragem, os do Brasil terão de acompanhar.

No ano passado, chama atenção Galípolo, a ideia do BC e da turma do “sobe a Selic” foi antecipar a alta dos juros de curto prazo para tirar um pouco das altas previstas para o futuro e assim achatar ou “flatar” a curva. O que aconteceu foi a alta das taxas curtas e das longas também, com destaque para a magnitude dos interesses envolvidos. O exemplo mencionado, da NTN-f com vencimento em 2031, retrata uma escalada de ganhos. “Trata-se de um negócio absolutamente livre de risco, que paga juro semestral, tem liquidez diária. Quem compra 1 milhão de reais de um título que rende 11% ao ano, daqui a dez anos terá 2,84 milhões. É um valor absurdo”, sublinha.

O desemprego e a informalidade avançam. O governo fala em ajuste fiscal, mas as bondades eleitorais, como o aumento do Bolsa Família, vêm antes. O BC operou mal e deixou o mercado consolidar uma expectativa de inflação alta. (FOTO: Mauro Vieira/Ministério da Cidadania, Banco Central do Brasil e iStockphoto)

Não por acaso, um gestor profissional de ativos financeiros que se identifica nas redes sociais com o rótulo de “Faria Lima Elevator” esbanjou sarcasmo ao comemorar a condução desastrosa do governo e do BC aproveitada pelo mercado: “10% ao ano até 2031, estamos reconstruindo o Brasil!”

Ninguém aposta em um recuo da taxa de juros de longo prazo para um dígito no atual contexto. “Esse nível de dois dígitos foi atingido em março do ano passado, no auge do susto da pandemia, quando bateu 10%. Agora passou dos 10% e tende a ficar nesse patamar, porque o mercado tem seus números mágicos. Juros a 10% é como a Bolsa a 100 mil pontos”, compara José Francisco Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator.

A situação é complicada. “O governo tem de mandar para o Congresso até o fim do mês o projeto de orçamento, que prevê Selic média de 4,7%, inflação de 3,5%, câmbio de 5,1%, ou seja, premissas absolutamente fantasiosas. Isso se junta às questões do adiamento do pagamento dos precatórios, do reajuste do Bolsa Família e do aumento para o funcionalismo. O pessoal do mercado fica apavorado, eles acham que é o fim do mundo correr algum risco de rompimento do teto de gastos”, chama atenção Gonçalves, que considera ser este “o primeiro teste indiscutível do teto, pois os bilhões do programa emergencial eram extrateto, e, quanto ao Bolsa Família, o pessoal fala que está tudo bem porque retiram ao menos parte dos recursos de outro lugar, há uma margem aí de ‘me engana que eu gosto’”.

“O que o pessoal que faz preço está pensando”, sublinha Gonçalves, “é que o risco de Lula ser eleito é a base, cada vez mais. A economia piora, a inflação também, o desemprego aumenta e esse conjunto de preocupações significa, para o mercado, que a dívida pública fica mais arriscada. Se isso tem algum sentido ou não, é irrelevante, porque essa é a conta que se faz.”

A gravidade da crise fiscal alegada por participantes do mercado para justificar tanto o terrorismo fiscal quanto os ganhos indecorosos é, entretanto, questionável. Um dos argumentos da política fiscal contracionista, repetido quase como um mantra, diz ser preciso cortar gastos para evitar que os juros explodam. No ano passado, a Selic estava, porém, em 2% em plena pandemia, com um déficit fiscal de 600 bilhões de reais. Este ano, projeções indicam que o déficit deve ser metade disso, mas a Selic caminha para 7%. O déficit corrente e a taxa de juros corrente mostram, neste caso, uma relação inversa, pois quanto maior o déficit, menor foi a taxa de juros.

O mercado comprou a ideia de que a dívida iria explodir e precificou isso

A percepção de risco fiscal crescente, destaca Gonçalves, é essa conta que o mercado faz, na qual a perspectiva de geração de resultados primários menos deficitários, ou positivos, contribui para uma melhora na relação dívida-PIB. O problema é que isso está fora do cardápio. Não há como imaginar uma melhora nesses indicadores, mesmo porque a perspectiva de crescimento da economia só piora. Quando isso acontece, a situação fiscal também piora, porque a arrecadação diminui e há despesas que não podem ser cortadas. Além disso, nas últimas semanas, o pessoal do mercado começou a reconhecer que Guedes não tem nada de liberal, sua equipe não é competente e eles prometeram a lua. “Com o movimento para encurralar Bolsonaro havia a expectativa de que saísse ao menos a mudança do Imposto de Renda neste ano. Estamos no fim de agosto, é brincadeira achar que sai alguma coisa até dezembro. O pessoal conclui: não tem reforma, frustrou, e o orçamento é essa coisa horrorosa que está sendo discutida.”

É importante distinguir os fatos do comportamento do mercado, chama atenção o economista Ricardo Carneiro, professor do Instituto de Economia da Unicamp. “O choque de inflação, mesmo que se tenha de subir a taxa no curto prazo, se dissipa na frente. A economia não tem capacidade de crescer para sustentar inflação nesse patamar e não há evidência de que se está fazendo um déficit primário incompatível com a sustentação da dívida. Tem um tanto de ­lobby do mercado aí e barbeiragem do governo, que criou um clima ruim ao desrespeitar as regras fiscais e é claro que o mercado reagiu rápido e precificou. Isso não tem muito a ver com o que é certo, o que é errado, onde foi que começou, vai-se formando expectativas e agora vai ser difícil voltar atrás”, dispara Carneiro.

Não se vislumbra até agora que a variável central do controle da dívida, que é o saldo primário, vá sair de controle. Ao contrário, o governo está com um grande crescimento de receita. O que ele pretende é aumentar a parte de despesa discricionária para fazer sua política, uma tentativa de mudar a composição do gasto. “O que o mercado fez foi comprar a ideia de que a dívida pública ia explodir e que a questão dos precatórios era uma forma inicial de calote, e precificou isso na subida da taxa longa.” O BC, destaca Carneiro, operou mal, deixou o mercado consolidar uma expectativa de inflação alta e obriga-se a seguir isso definindo uma Selic alta. “Agora vai ser difícil desmontar esse negócio.”

No seu cálculo, o governo sabe que a economia ficará entre 1,5% e 2% no próximo ano e, se não turbinar os gastos públicos, não terá apoio na eleição. Com esse jogo, transformaram o orçamento numa coisa fisiológica. O que o ministro Paulo Guedes e Bolsonaro simplesmente estão dizendo é que esse negócio de regra fiscal é bom, mas a eleição vem primeiro.

Aumentar os salários dos funcionários públicos faz parte do plano de reeleição de Bolsonaro. (FOTO: SMS/PMPA)

O Brasil, em processo de regressão acelerada, não tem mais a ver, ao que parece, com o que está acontecendo com a economia concreta no resto do mundo. “Desde 2015, o PIB do País descolou do crescimento do PIB mundial, um resultado da política fiscal restritiva que o Brasil adotou desde então, acrescida dos efeitos da Lava Jato, que acabou punindo as empresas do setor de construção em vez dos contraventores”, destaca a economista Julia Braga, professora da UFRJ.

Na avaliação de numerosos economistas, os choques de preços na retomada deixam claro que o mercado funcionou mal, porque teria de haver planejamento, por exemplo, com o uso de estoques reguladores no caso das commodities. Outro ponto importante é que, na atual articulação financeira, choques de câmbio ocorrem um atrás do outro. Além disso, é importante lembrar que, tanto no caso da energia elétrica quanto no dos derivados de petróleo, os preços foram impelidos para o alto por políticas estabelecidas pelo próprio governo.

A recuperação da destruição operada não será fácil. “Com a fusão das formas de riqueza pelo capital financeiro, o poder de pressão dos donos da riqueza sobre o exercício da política econômica cresceu enormemente”, chama atenção Braga. Elevar juros para combater a inflação, acrescente-se, não se justifica. “Agora mesmo estamos assistindo a isso. Porque não estamos com uma inflação, que eu saiba, que se possa chamar de ­demanda. Não é disso que se trata. Há choques de commodities, a própria incerteza que gira em torno do governo e que afeta o dólar vai também bater na inflação, portanto, não se justifica uma política de juros como esta, que, na verdade, vai nos levar ao pior dos mundos.”

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1172 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE AGOSTO DE 2021.

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