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A eleição para o governo do Rio será a mais nacionalizada do País

Do Rio de Janeiro, e com a bênção dos Bolsonaro, a ideologia miliciana tornou-se projeto nacional. O Rio é o berço desse Brasil profundo

Personagem Rocha, de Tropa de Elite 2, retrata a ascensão de um policial miliciano Foto: Reprodução
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A milícia é mais do que um artigo do Código Penal, ela é um modelo de sociedade que subordina as instituições de Estado aos interesses do crime. Um projeto de poder que nasceu no Rio de Janeiro e está sendo nacionalizado.
Quando presidi a CPI das Milícias, em 2008, afirmei que crime, polícia e política não se separavam mais no Rio. Mas, até aquele momento, a ação das quadrilhas era tratada por muitas autoridades de modo benevolente. Uns as concebiam como um mal menor diante da violência brutal do tráfico de drogas, outras as defendiam abertamente, como Bolsonaro, que à época chegou a discursar no plenário da Câmara dos Deputados a favor da legalização das milícias.

A história do Rio sempre foi marcada pela ação de organizações criminosas: grupos de extermínio, jogo do bicho e narcotráfico. Todas elas têm entre seus integrantes agentes corruptos da segurança pública, exercem controle violento sobre territórios e mantêm relação com autoridades. Mas as milícias, que emergem nos anos 2000, são o primeiro grupo chefiado por esses agentes que transforma domínio territorial em capital eleitoral.

Nos bairros da capital dominados pelas milícias vivem 2,1 milhões de habitantes. Isso significa que um em cada três habitantes da cidade mora em área controlada pelas quadrilhas. Os votos dessas famílias tornaram-se um precioso ativo que milicianos negociam com políticos corruptos. Em troca, não só defendem os interesses dos bandidos, como abrem as portas dos palácios para o crime organizado.

Quando pedi a criação da CPI, vários chefes de quadrilha eram vereadores ou deputados e faziam parte da base de apoio tanto da prefeitura quanto do governo, como os irmãos Natalino e Jerominho Guimarães, Cristiano Girão, Luiz André Ferreira, o Deco, e Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio das Pedras. Participavam de eventos na Zona Oeste ao lado de autoridades públicas e frequentavam as sedes dos poderes municipal e estadual.

A nossa investigação resultou em 226 indiciamentos, na prisão de todos os chefes e em 58 propostas para enfrentá-las. Até hoje vivo sob ameaças de morte por causa do trabalho que realizamos, mas, infelizmente, as medidas que apresentamos não foram adotadas pelas autoridades responsáveis. Prender é fundamental, mas, se não cortarmos as fontes de poder econômico e político dessa máfia, não conseguiremos derrotá-la.

Milícia não é Estado paralelo, é Estado leiloado ao crime. Ela é mais do que um problema de segurança pública, porque corrói a democracia por dentro, numa destruição progressiva que vai da violação da soberania do voto dos moradores das áreas dominadas, passa pela terceirização ao crime organizado de serviços que deveriam ser públicos e se conclui no sequestro institucional pelo banditismo.

É desse submundo que nascem as práticas políticas da família Bolsonaro e de onde vêm dois personagens centrais para a história do clã e do País, os policiais Fabrício Queiroz e Adriano da Nóbrega, morto pela PM na Bahia. Amigo e homem de confiança do presidente, que colocou em suas mãos a operação dos negócios da família, Queiroz atuou ao lado de Adriano no Batalhão de Jacarepaguá, um dos berços das milícias no Rio.

Queiroz tornou-se representante do clã na região e trouxe para trabalhar no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro a mãe e a ex-esposa de Adriano, chefe de um grupo de assassinos profissionais, chamado Escritório do Crime, e envolvido com a milícia da Muzema, onde dois prédios construídos ilegalmente pela quadrilha, ante a leniência da prefeitura, desabaram em 2019, matando 24 pessoas.

A eleição de Bolsonaro está transformando o Brasil nesse imenso Rio de Janeiro da institucionalização do crime organizado, de Queiroz e Adriano e da violência política que resultou nas execuções da juíza Patrícia Acioli e da vereadora Marielle Franco. A corrida armamentista promovida pelo presidente, que dá a civis acesso a armas pesadas, como fuzis, as ameaças de violência caso Bolsonaro não consiga se reeleger e a tentativa de tirar o controle dos governos estaduais sobre as polícias são a tradução exata da nacionalização dessa ideologia miliciana.

O Rio é o berço desse Brasil profundo, desigual, violento e autoritário. Por isso a eleição para o governo do estado, ovo da serpente do bolsonarismo, será a mais nacionalizada do País. O que estará em jogo em 2022 não é o tradicional embate entre direita e esquerda, mas o confronto entre Estado Democrático de Direito e crime organizado.

A eleição para o governo do Rio será a mais nacionalizada do País

Esse desafio impõe a nós, que estamos dispostos a defender a democracia, coragem, maturidade e responsabilidade para construirmos uma ampla aliança capaz não só de vencer as eleições, mas, principalmente, de refundar o estado do Rio de Janeiro e retirar o Brasil desse pesadelo.

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