Vanguardas do Conhecimento

Os desafios da esquerda no Reino Unido

Os partidos progressistas precisam cooperar e batalhar por uma mudança no sistema eleitoral

Corbyn: ele saiu mais forte das urnas
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Existe pelo menos uma coisa em comum entre as conjunturas políticas do Brasil e do Reino Unido hoje: guardadas as devidas proporções, partidos de oposição no Parlamento têm sido inábeis para desalojar do poder lideranças conservadoras que perderam a autoridade para governar.

Enquanto o governo de Michel Temer chegou a históricos 7% de aprovação há duas semanas (Datafolha), índice mais baixo dos últimos 28 anos, a primeira-ministra britânica, Theresa May, passou recentemente por um processo eleitoral que minou seriamente suas condições políticas.

Antes das eleições em 8 de junho, o Partido Conservador de May tinha 330 assentos no Parlamento, o suficiente para aprovar medidas do governo sem a necessidade de recorrer a alianças. Quando a chamada para novas eleições foi anunciada, em abril, tanto as pesquisas de opinião quanto os especialistas, incluindo os da esquerda, tinham como certo que May conseguiria ampliar ainda mais o número de assentos conservadores no Parlamento e estabelecer uma vitória esmagadora, enterrando de vez a oposição trabalhista liderada por Jeremy Corbyn

O resultado foi, no entanto, bem diferente. Os conservadores, também chamados Tories, perderam sua maioria, vendo seu número de parlamentares reduzido para 318. Embora ainda tenham 56 assentos a mais do que os trabalhistas, não conseguiram os 326 assentos necessários para estabelecer uma maioria parlamentar.

Por outro lado, o trabalhista Jeremy Corbyn conseguiu derrotar seus detratores no seio da própria esquerda, conquistando uma importante vitória simbólica nas eleições e ganhando 30 assentos extras para o Partido Trabalhista (Labour Party). Depois das eleições, membros da própria esquerda que pareciam suspeitar da capacidade de Corbyn para liderar o partido – como o jornalista e comentarista político Owen Jones – vieram a público para se retratar e demonstrar apoio ao líder trabalhista.

Os trabalhistas lançaram em seu manifesto de maio uma ampla plataforma antiausteridade, defendendo o aumento de investimentos públicos em saúde, educação e assistência social. Essa agenda, que inclui um compromisso do partido em abolir as mensalidades em universidades, galvanizou o apoio da juventude, que foi em massa às urnas este ano. O aumento da participação dos jovens entre 18 e 24 anos no pleito foi da ordem de 21% (Ipsos Mori).   

Embora Corbyn tenha grande mérito pelo avanço trabalhista nas eleições, é possível argumentar que a incompetência da conservadora Theresa May em lidar com seu eleitorado durante a campanha também teve um papel fundamental nessa equação.

A desastrada trajetória eleitoral dos conservadores contou com elementos como a expressiva mudança na abordagem em relação à política de assistência aos idosos (grande parte de seu eleitorado) e uma bizarra proposta de legalizar novamente a caça à raposa na Inglaterra.

Isso somou-se com a recusa de May em participar de debates públicos com os demais candidatos em diversas ocasiões. Isso alienou parte considerável dos eleitores que, de outra forma, provavelmente teriam votado nela.  

Os paralelos com seu predecessor, David Cameron, são claros: as derrotas são resultado de uma confiança equivocada em sua força política. A arrogância de Cameron o levou a apostar o futuro das relações com a União Europeia em um referendo que pretendia, antes de mais nada, disciplinar as insurgências internas em seu próprio partido, mas que resultou na saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit.

Theresa May, por sua vez, fez um movimento demasiadamente arriscado ao chamar novas eleições este ano, apostando a maioria parlamentar de seu partido num momento crítico: as negociações para o Brexit.

Para muitos na esquerda, o aspecto mais positivo das eleições foi o total colapso da extrema-direita, representado pela queda de 10% dos votos do Partido da Independência do Reino Unido (Ukip), o que o deixou sem assentos no parlamento.

Os conservadores conseguiram, no entanto, assinar um acordo de cooperação com o Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte (DUP), que defende a permanência da Irlanda no Reino Unido e que foi favorável à saída da Grã-Bretanha da União Europeia. No contexto político britânico, o DUP é um partido ultraconservador que se opõe ao casamento homoafetivo, legalizado no Reino Unido em 2013, ao direito ao aborto, legal desde 1967, e que conta entre seus representantes com políticos que negam até que existam mudanças climáticas em curso. A cooperação entre o Partido Conservador de May e o DUP, que possui 10 assentos no Parlamento, é a estratégia pela qual os conservadores conquistaram maioria no parlamento.

Esse acordo causou enorme controvérsia. Primeiro, porque os termos incluem uma promessa de investimento de 1 bilhão de libras na Irlanda do Norte. O acordo gerou reações imediatas de representantes da Escócia e do País de Gales, que agora cobram também mais investimentos nessas regiões.

O mais grave foi, entretanto, a reação do Sinn Fein – partido independentista que faz oposição ao DUP na Irlanda do Norte – que acusa o acordo entre conservadores e DUP de minar o chamado Good Friday Agreement, tratado assinado nos anos 90 e que garantiu o equilíbrio de forças capaz de cessar os conflitos entre separatistas e unionistas na Irlanda do Norte. Isso pode significar uma ameaça à frágil paz alcançada na região.    

A capacidade dos conservadores de ganhar maioria parlamentar através de um questionável acordo com o DUP só foi possível, entretanto, devido à falta de proporcionalidade do sistema eleitoral britânico. Diferente do sistema presidencialista brasileiro, no parlamentarismo britânico não há voto proporcional em eleições legislativas, o que significa, na prática, que a proporção do voto popular recebido por um partido não se reflete necessariamente em sua representação parlamentar.

Isso ocorre porque a eleição de um candidato em seu distrito se dá por maioria simples, e os votos dirigidos a candidatos não eleitos são totalmente descartados. O voto distrital, como é chamado esse sistema, produz distorções estatísticas consideráveis, e tem favorecido sistematicamente o Partido Conservador. Por exemplo, nas últimas eleições, a proporção de votos conservadores foi apenas 2,4% maior do que trabalhistas, mas, devido às distorções do modelo distrital, os conservadores tiveram 8,6% a mais de assentos, 56 no total.

Theresa May Theresa May foi às urnas para ter mais poder e deixou o pleito precisando dos conservadores norte-irlandeses para governar (Foto: Daniel Leal-Olivas)

As distorções do sistema eleitoral no Reino Unido se tornam ainda mais evidentes quando observamos o caso dos partidos menores. O ultraconservador DUP recebeu 0,9% dos votos, o que se converteu em 10 assentos, enquanto o Partido Verde, que conseguiu 1,6% dos votos, conseguiu apenas 1 assento no Parlamento (BBC).

Os dados percentuais tornam visível que os parlamentares do DUP, que votarão em aliança com o Partido Conservador de Theresa May, terão um poder de influência absolutamente desproporcional ao tamanho real de sua representatividade popular.      

O sistema eleitoral britânico, referido nacionalmente como First-Past-the-Post (FPTP), é estruturado de forma a tornar estatisticamente mais viável que um único partido consiga a maioria parlamentar, o que garantiria mais estabilidade ao sistema político.

Nos últimos anos as limitações de tal sistema têm, no entanto, se tornado mais evidentes, particularmente com o fenômeno do aparecimento e crescimento de partidos menores, incluindo o Partido Liberal Democrata (LibDems), o Partido Verde e o já citado Ukip. Além disso, o sistema distrital britânico acabou por influenciar profundamente a cultura política local, avessa às coligações entre partidos, atitude reforçada em anos recentes pelo colapso do Partido Liberal Democrata nas eleições de 2015, depois de uma coligação desastrosa com os conservadores.

Na atual conjuntura política, a cooperação entre partidos progressistas se tornou crucial. Sobretudo em um momento onde as políticas de austeridade implementadas pelo Partido Conservador se traduzem em pressão orçamentária sobre os serviços públicos, resultando em redução de gastos com assistência e políticas públicas de bem-estar social.

A necessidade de se rediscutir o sistema distrital britânico e suas distorções de representatividade partidária, assim como o imperativo de uma aliança progressista capaz de barrar a agenda de austeridade dos conservadores, precisam estar na ordem do dia caso os setores progressistas no Reino Unido tenham ambições reais de disputar os rumos do país.

Como argumentou recentemente uma das lideranças do Partido Verde, Caroline Lucas, em termos gerais, 52% dos eleitores britânicos votaram em partidos progressistas – incluindo o Partido Verde, o galês Plaid Cymru, o Partido Nacional Escocês, o Partido Trabalhista e os Liberais Democratas. No entanto, só uma aliança progressista pluripartidária teria condições de entregar à maioria do eleitorado esse resultado. 

* Daniel Mandur Thomaz é doutorando e professor da Universidade de Oxford

* Rachel Randall é pós-doutoranda e professora da Universidade de Oxford 

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