3ª Turma

Ser mulher, nascer mãe e dialogar com Silvia Federici

Ter a companhia de Silvia Federici, autora italiana crítica, na recém maternidade me conferiu um novo olhar sobre sororidade

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Não faz muitos dias, pouco mais de 365 para ser mais precisa, e a vida doméstica se me apresentou com uma cria nascida mulher e, com ela, o nosso lar pariu filhas, mães e redes de apoio e sobrevivência.

Alimentar e alimentar-se, cuidar e zelar. Foi-se montando uma rede de sororidade[1], em que laços femininos se desdobravam e ainda se arranjam na tentativa de dar conta das muitas agendas, dentro e fora do lar. E olhe que especificamente no nosso caso a problemática marcante permanece na seara da distribuição do tempo, algo que julgamos bastante leve quando percebemos situações em que também se faz necessário enfrentar carência material[2] e ou afetiva.

Outro dado de relevo visto a partir da experiência da maternidade é o de que, mesmo quando os elos masculinos que porventura compõem nossa rede estiveram por perto, a distinção entre atribuições produtivas e reprodutivas foram mantidas.

Algo de claridade solar invadiu-me a compreensão. Algumas linhas de uma publicação em espanhol, que a tradução livre me jogou na cara afirmações do tipo:

Desde que o termo mulher se converteu em sinônimo de ama de casa, carregamos, onde quer que vamos, essa identidade, incluindo as habilidades domésticas que nos outorgam ao nascermos mulheres. (…) O trabalho reprodutivo, por não ser assalariado, embora esta seja uma condição que lhe foi socialmente imposta, reservou a ele uma aparência de naturalidade feminina. (…) E assim o capital, por anos, ditou que só servíamos para o sexo e para fabricar filhos”.

São palavras de El patriarcado del salario: criticas feministas al marxismo[3], da autora Silvia Federici, que destaca, dentre as importantes contribuições da teoria de Karl Marx, a noção de trabalho humano como principal fonte de produção de riqueza, sobretudo na sociedade capitalista, “el trabajo humano como la fuente de la acumulación capitalista[4], chamando a minha atenção para algo aparentemente óbvio: ao se qualificar determinado trabalho, o produtivo, como algo não natural e, assim, atribuir-lhe salário, o trabalho assalariado mantém sua hierarquia sobre o trabalho reprodutivo, nele inserida a procriação e a criação dos braços que realimentarão as fileiras de venda de força de trabalho.

Aliás, qual não é a nossa preocupação com as crianças, que não seja constituí-las para o mercado. Todo nosso trabalho produtivo, quando temos um, é assalariado para reinvestirmos na própria manutenção do sistema, ou seja, os ganhos são, em grande medida, aplicados na melhor alimentação e formação dessas crianças a fim de que elas, mais adiante [e torcemos por isso], preencham os espaços produtivos.

Mas, embora procriar uma nova geração de trabalhadores seja fundamental, o trabalho reprodutivo foi categorizado como um processo natural e atribuído à mulher. É nesse contexto que Silvia Federici trabalha a noção do patriarcado do salário, ou seja, a dependência da mulher que trabalha em casa em relação ao salário masculino, criando-se através do salário essa hierarquia:

“o varão tem o poder do salário e se converte no supervisor do trabalho pago à mulher. E tem o poder de disciplinar. Esta organização do trabalho e do salário, que divide a família em duas partes, uma assalariada e outra não assalariada, cria uma situação onde a violência está sempre latente”[5].

O primeiro impacto das palavras da autora italiana para mim foi o de quebrar a possibilidade de nos dividirmos entre mulheres que trabalham e que não trabalham, reforçando minha dimensão de sororidade[6] e percebendo que há as que desempenham trabalhos reprodutivos, nele inseridos os domésticos, e as que, além disso, trabalham em um “segundo emprego”.

Em tradução livre do que é dito pela autora, a nós mulheres o sistema capitalista não nos oferece só o direito a trabalhar, como acontece no caso dos demais trabalhadores. É-nos oferecido o direito a trabalhar mais, a estarmos ainda mais exploradas, fazendo-nos esquecer de que o trabalho doméstico e a família estão nos pilares da produção capitalista e de que somos fundamentais no processo de perpetuação desse modo de produção[7].

Seguindo as quebras do que agora se apresenta tão óbvio, a leitura me faz ver que a distinção pelo salário propicia a dominação necessária à contenção feminina. Estáveis, bem disciplinadas, guardiãs de virtudes, responsáveis pela preservação dos nossos corpos submissos a algum patrão do lar ou das instituições privadas em prol da família e da ordem, tudo isso são características interessantes ou mesmo, como disse Silvia Federici, perfazem condições essenciais da produção em qualquer dos estágios de desenvolvimento capitalista.

Ao fim, a autora marcou-me, em clímax, ao desvelar-me ao menos duas coisas. A primeira foi a percepção da família ocidental como a institucionalização do trabalho não remunerado e a segunda a concepção da falta de salário para nosso trabalho reprodutivo como medida de disciplina e dominação. Diria uma cara professora[8] e querida amiga, citando Karl Marx, “distinguir para dominar”.

Meu olhar se dispersa. A minha atenção retoma as agendas do dia. Silvia Federici terá que esperar mais um pouco para continuar me trazendo suas impressões de mundo. Ela e outras escritas permanecerão na mesa de cabeceira enquanto a realidade pede passagem e não se sabe quando me concederá novo espaço na agenda. Amanhã serei eu a levar e a buscar na escola e, antes disso, teremos uma noite de escalas alternadas nas horas do choro, do cocô e do xixi. Entre uma coisa e outra, ainda preciso concluir trabalhos (produtivos) pendentes e jantar em família.

Até a próxima. A moenda segue a gira. Por enquanto, como disse Silvia Federici, nosso trabalho reprodutivo continua sem salário, então nos convencem de que se trata de um ato de amor[9].

Para Bia. Com amor, Renata.


[1] https://www.cartacapital.com.br/justica/muito-prazer-nos-somos-as-sororas-e-viemos-falar-de-sororidade/
[2] http://www.justificando.com/2018/07/04/o-solar-do-amor-nascer-mulher-parir-se-mae-e-irmanar-se-na-parentalidade/
[3] FEDERICI, Silvia. El patriarcado del salario: criticas feministas al marxismo. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018, trecho do parágrafo anterior é tradução livre da pág. 35.
[4] op. cit., pág. 12.
[5] op.cit., pág. 17.
[6] http://www.justificando.com/2016/06/02/o-que-e-sororidade-e-por-que-precisamos-falar-sobre/
[7] Silvia Federici traz outras referências teóricas, a exemplo das autoras Marie Mies, Vandana  Shiva e Ariel Salleh, acerca da necessidade de reestruturação da reprodução como campo de luta e nele subverter a estrutura de organização capitalista do trabalho: “ponen em el centro de su proyecto político la reestructuración de la reproducción como el campo crucial para la transformación de las relaciones sociales, subvirtiendo así la estructura de valores de la organización capitalista del trabajo” (op. cit., pág. 109).
[8] Christine Dabat, destacada acadêmica cujo trabalho produtivo é desempenhado no Departamento de História da UFPE.
[9] op. cit., pág. 38.

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