Justiça

O recorte de classe, gênero e raça na pandemia da Covid-19

As mulheres são a maioria nos setores que envolvem os serviços considerados essenciais durante a pandemia

Foto: Paula Fróes/GOVBA
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O feminismo é considerado, via de regra, um ramo da teoria política (MIGUEL et alli, 2014), que estuda a organização social, tendo como ponto de partida as desigualdades de gênero, permitindo analisar que, mesmo as instituições que se nomeiam democráticas, carecem de efetiva igualdade entre homens e mulheres. Por isso, defendemos que limites convencionais políticos são incapazes de compreender e dar todas as respostas às reivindicações feministas.

Teorias marxistas defendem que a luta pela emancipação das mulheres está diretamente ligada à luta de classes. Mas, paralelo a isso, expandia-se nos países da Europa Ocidental os ideais liberais defendidos pela burguesia em ascensão à época, tendo, entre suas bandeiras, o direito à igualdade, coincidindo com as primeiras lutas feministas em prol do direito ao voto.

Sendo que, historicamente, ambos os movimentos, quer das mulheres trabalhadoras, quer das sufragistas, foram fundamentais e complementares às lutas pela emancipação e melhoria das condições de vida mulher. Embora, dentro do próprio movimento feminista existam aquelas que apontam críticas contundentes, na medida em que as lutas das mulheres negras foram muitas vezes silenciadas, bem como seus registros colocados em segundo plano, como bem menciona Angela Davis na obra Mulheres, raça e classe  (2016) .

Ainda assim, dentre as revoluções culturais do século XX, o feminismo é considerada a de maior impacto e a mais decisiva revolução social da modernidade, construindo e reconstruindo demandas de forma contínua e agregando novas reivindicações (MORRISON, 2012).  Tanto é que, a luta pelo voto feminino, do acesso das mulheres à educação, de direitos iguais no casamento como o direito ao divórcio, à não sofrer violência doméstica, ao controle da capacidade reprodutiva e a direitos iguais no mercado de trabalho, em todas o feminismo esteve presente, pressionando as antigas estruturas da sociedade patriarcal (MIGUEL et alli, 2014).

As relações de gênero atravessam toda a sociedade e suas consequências não atingem somente às mulheres (MIGUEL et alli, 2014). Para os autores, o gênero é um dos eixos centrais para a organização de nossas experiências na sociedade atual, juntando-se ainda a dois elementos que aprofundam ainda mais tais diferenças: a classe e a raça. Tendo o feminismo negro um papel fundamental, ao trazer à luz que, além das desigualdades entre homens e mulheres, a sociedade comporta outras desvantagens que aprofundam ainda mais as desigualdades de gênero, que atravessam a posição da raça e da classe.

Assim, não há como pensar na luta da mulher ocidental por melhores condições de trabalho desatrelada das primeiras lutas feministas (MIGUEL et alli, 2014). Nessa perspectiva, as relações entre gênero e classe possibilitam constatar, no mundo produtivo e reprodutivo, a construção social sexuada, que significa dizer que homens e mulheres que trabalham são, na família e na escola, ensinados e direcionados diferentemente para o ingresso no mercado de trabalho. E o capitalismo, por sua vez, apropria-se desta distinção, estimulando e agravando a desigualdade da divisão sexual do trabalho (ANTUNES, 2009).

Por conta disso, tradicionalmente as mulheres participam menos que os homens no mercado de trabalho, entre outros fatores, devido a barreiras culturais que ainda persistem e a uma divisão sexual do trabalho que lhes atribui as funções de cuidado e reprodução social na esfera doméstica, que não são consideradas trabalho remunerado, subtraindo assim tempo para a inserção no mercado de trabalho.

A divisão sexual do trabalho exige da mulher o trabalho em “dupla jornada”, na medida em que, além das atribuições realizadas em seu emprego, somam-se os afazeres domésticos e os cuidados com a família, ao retornar para o lar ao fim da jornada de trabalho, fazendo com que essa mulher labore em jornada que não é quantificada economicamente, mas que lhe causa desgaste tanto do ponto de vista físico, como emocional.

No Brasil, em que pese as condições de trabalho das mulheres tenham melhorado consideravelmente, ainda há muito a avançar, pois se de um lado mulheres de classes sociais mais altas têm galgado melhores postos de trabalho, com maior remuneração e prestígio profissional, de outro as mulheres de classes mais baixas, especialmente as negras, continuam trabalhando em condições precárias, com baixos salários, muitas delas na informalidade. Segundo o IPEA (2011), comparativamente os salários dos homens brancos são três vezes maior do que os das mulheres brancas e os salários das mulheres negras são 44% menor do que os das mulheres brancas.

Em 31 de dezembro de 2019, após a notificação das autoridades chinesas de casos envolvendo uma nova forma de pneumonia, ocorrida na cidade de Wuhan, a  Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu alerta sobre esta nova doença, detectando, a seguir, tratar-de uma mutação do coronavírus, sendo denominado pela OMS, em 11 de fevereiro de 2020, de Covid-19 (Sars-Cov-2). Um mês depois, epidemia comumente chamada de novo coronavírus foi elevada à pandemia, porque, naquela ocasião, a contaminação já se encontrava em escala global, tendo o Brasil registrado o seu primeiro caso em dia 25/02/2020. Sendo que, em 16/07/2020 o país contava com 2.014.738 infectados e 76.822 mortes por Covid-19.

A recente crise sanitária e epidemiológica, gerada pelo vírus, vem demonstrando que alguns grupos, sob o aspecto social e econômico, são ainda mais vulneráveis do que outros, como é o caso das mulheres trabalhadoras, que estão, prioritariamente, realizando as tarefas relacionadas ao cuidado da população adoecida, seja no âmbito doméstico, seja nos hospitais.

Segundo levantamento da OMS, 70% dos profissionais da saúde que atuaram e atuam na linha de frente de combate à doença são mulheres, na medida em que são a maioria na área do cuidado, ocupando 84,6% dos cargos existentes nas equipes de enfermagem (o que inclui enfermeiras, auxiliares e técnicas), conforme[1] dados informados pelo Conselho Nacional de Enfermagem, sofrendo, assim, as consequências de um meio ambiente de trabalho que não estava totalmente  adequado para o enfrentamento da doença, levando muitas dessas trabalhadoras à contraírem o vírus, chegando até ao óbito, sendo o Brasil o campeão de contaminação desses profissionais[2].

As mulheres também são a maioria nos setores que envolvem os serviços considerados essenciais durante a pandemia. Além do que, a elas não coube decidir pelo isolamento social, na medida em que são a maioria entre os trabalhadores informais. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 93% dos trabalhadores domésticos na América Latina e Caribe são mulheres.

Não à toa que a primeira vítima fatal, no Estado do Rio de Janeiro, foi uma mulher de 63 anos, que exercia a atividade de empregada doméstica e percorria 120 km para chegar ao trabalho; contraiu o vírus da sua patroa, que tinha chegado recentemente de uma viagem da Itália e não dispensou a trabalhadora para ficar em isolamento social.

E o caso do menino Miguel, de 05 anos, filho de Mirtes Renata Santana de Souza, empregada doméstica de Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré-PE (PSB) e de sua esposa Sarí Corte Real. Em 02.06.2020, Mirtes precisou levar o filho para o trabalho porque a creche que a criança ficava estava com as atividades suspensas devido à pandemia do novo coronavírus. No local de trabalho, precisou descer com o cachorro da família e, ao retornar, minutos depois, descobriu que seu filho tinha caído do nono andar, após a patroa permitir que a criança entrasse no elevador sem a supervisão de um adulto. A criança morreu no hospital.

Ambos os casos, têm em comum os recortes de classe, gênero e raça, impondo-nos reflexões que permitam a superação de injustiças que prejudicam a construção de uma sociedade verdadeiramente justa, livre e igualitária.


[1]    <https://www2.ufjf.br/noticias/2020/04/06/desigualdade-de-genero-em-tempos-de-pandemia-e-isolamento/ >. Acesso em 16.07.2020

[2]    <http://www.cofen.gov.br/brasil-tem-108-enfermeiros-mortos-e-mais-de-41-mil-contaminados-pelo-coronavirus_79784.html >. Acesso em 16.07.2020.

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