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Emancipação dos corpos femininos: a superação do feminismo burguês

A partir das ferramentas analíticas interseccionalidade, é preciso que haja uma transformação radical

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Ao traçar o percurso histórico do feminismo, e suas três ondas, o que se percebe, em larga escala, é que as diversas transições que sofre uma cultura, especialmente quanto às exigências das renúncias pulsionais necessárias à pretensão civilizatória, ainda que inserida na mesma lógica discursiva patriarcal, não cessa de produzir novas (ou rearticuladas) demandas.

Veja-se que não se pretende afirmar aqui que as questões do feminismo foram surgindo ao longo do tempo, o que seria simplista e inclusive equivocado, mas sim que as possibilidades de rupturas discursivas acabam por se entrelaçar com determinados acontecimentos históricos que de alguma forma conseguiram perfurar a hegemonia racional estruturante da sociedade moderna.

Dentro desta perspectiva, já que se está tratando de fatos que conseguem provocar furos na estrutura patriarcal a partir da qual fomos forjados socialmente, é possível identificar que os sujeitos femininos e seus corpos, mesmo fantasmagoricamente, não são produtos, mas sim partes integrantes desses movimentos de ruptura. Foi Eva quem tirou Adão do paraíso, foram as bruxas que precisaram ser queimadas para evitar qualquer forma de subversão ao sistema de poder, foram as histéricas e seus corpos paralisados que abalaram as estruturas patriarcais das famílias burguesas e é a caminhada de Ruby Bridges à escola um marco (e registro) histórico da resistência ao racismo estrutural estadunidense.

Para a psicanálise, não à toa, os corpos femininos se apresentam como questão desde a origem, porquanto são os sintomas dos corpos das histéricas que dão início às investigações freudianas.

Aliás, neste sentido, dentro de uma lógica emancipatória, é possível se pensar que, justamente por se tratar da parte que escapa do discurso dominante, somente os corpos falantes das mulheres diagnosticadas como histéricas que seriam capazes de produzir a subversão que representa o discurso psicanalítico.

 

“Talvez alguns estudiosos digam que a delicadeza ou a sensibilidade de Freud permitiu que as histéricas projetassem a sua voz, exercessem seu direito à fala, e que ele, um homem à frente de seu tempo, escutou as dores das histéricas. Mas podemos também contar uma outra história, na qual uma mulher, Anna O. – cujo nome verdadeiro era Bertha Pappenheim, feminista e pioneira no campo do Serviço Social -, teve a desfaçatez de dizer a um homem da ciência que ele devia ficar em silencio para que ela pudesse, então, falar. E que, surpreendentemente, esse homem tenha se calado e, mais espantosamente ainda, a tenha escutado. Em parte, ao menos” (AIRES, Suely. Corpos e sujeitos. Revista Cult: 2018).

Deve-se também a psicanálise, assim, a advertência acerca da necessidade de se ultrapassar a delimitação meramente biológica para definir um corpo feminino, uma vez que é o recorte produzido por Freud, de que a perspectiva sociológica não pode prescindir de uma análise das disposições individuais, que aponta a necessária relação entre o investimento libidinal dos sujeitos nos sistemas sociais e a forma com que os sujeitos se organizam socialmente na modernidade. E esse recorte é o fruto do encontro de Freud justamente com o corpo das mulheres histéricas.

Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise. Seus escritos fundantes desse campo foram questionados ao longo da história por estudiosas de gênero, como Simone de Beauvoir em sua obra “O Segundo Sexo”, de 1949.

O que pode parecer incompreensível, no entanto, dentro deste panorama, é a ineficiência com que as resistências e as atuações, muitas vezes perfurantes, dos sujeitos femininos e seus corpos na história da civilização moderna em romper de forma efetiva com o sistema patriarcal, o que me parece ser uma das questões centrais do feminismo na atualidade.

É importante fazer uma ressalva, neste ponto, sobre o sentido da utilização dos termos sujeitos e corpos femininos, porque a presente pretensão, já que emancipatória, quer evitar uma determinação que possa vir a ser interpretada de forma restrita ao fator biológico.

Retomando a questão, ao entender o patriarcado “como pertencendo ao extrato simbólico e, em linguagem psicanalítica, como a estrutura inconsciente que conduz os afetos e distribui valores entre os personagens do cenário social”, como afirma Tânia Mara Campos de Almeida, é possível perceber que  a armadilha que enreda os sujeitos da racionalidade moderna é justamente esse discurso que forjou o pacto civilizatório, porquanto fundamentalmente excludente e violento. Nesse sentido:

Por esta razão, o patriarcado é, ao mesmo tempo, norma e projeto de auto-reprodução, o que o leva a censurar e controlar a fluidez, as circulações, as ambivalências e as formas de vivências de gênero que resistem a ser enquadradas em sua matriz heterossexual e hegemônica. (ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. As raízes da violência na sociedade patriarcal. Sociedade e Estado, v. 19, n. 1, p. 238, 2004).

A potência de um discurso que normatiza e se auto-reproduz não pode, como a história já deixou claro, ser relativizada, e tampouco parece ser possível que novas formas de articulações dentro desse sistema forjado produzam efeitos suficientes aptos a alterar a lógica da opressão com que o patriarcado se sustenta.

É ilusório perpetuar a rearticulação de um feminismo dentro do sistema burguês, atuante dentro da lógica liberal, como afirma Angela Davis, “sem levar em consideração que a diversidade por ela mesma pode simplesmente significar que os indivíduos previamente marginalizados foram recrutados para garantir uma mais eficiente operação de sistemas opressores” .

Não é tão difícil compreender a facilidade com que a luta feminista foi cooptada “para servir aos interesses das feministas liberais e conservadoras”, como afirma bell hooks, tendo em vista que é este próprio discurso que se articula para nos manter enredadas nos avanços individuais para as mulheres, até mesmo as mulheres negras, e nesta medida somente serve à manutenção do patriarcado.

Até porque, o lugar que é dado às mulheres, quando não integradas e submetidas a esse discurso, não é outro que à margem e a mercê das constantes tentativas (e consumações) de destruição de seus corpos e das suas vozes. Como afirma hooks:

“A ideologia do ‘individualismo liberal… competitivo e atomístico’ tem permeado o pensamento feminista a ponto de prejudicar o radicalismo potencial da luta feminista. A usurpação do feminismo pelos burgueses para apoiar seus interesses de classe tem sido justificada, em nível bastante grave, pela teoria do feminismo como esta foi concebida até agora (por exemplo, a ideologia da “opressão comum”). Qualquer movimento para resistir à cooptação da luta feminista deve começar pela introdução de uma perspectiva feminista diferente – uma nova teoria – que não seja informada pela ideologia do individualismo liberal” (HOOKS, Bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 16).

É preciso que haja uma transformação radical, a partir da interseccionalidade, para além da lógica essencialista do feminino à serviço do patriarcado burguês, que rompa a estrutura, levando em conta tanto de que também é o ódio estruturante dos sujeitos e que nesse ódio há racismo e misoginia ainda a serem descontruídos, quanto e principalmente que “não há hierarquia de opressão”, como afirma a feminista negra Audre Lorde em artigo desenvolvido por Djamila Ribeiro.

A emancipação dos corpos que rompa a estrutura, portanto, somente será possível pelo reencontro dos corpos femininos e suas diferenças, o que, como nos adverte Djamila Ribeiro, significa dizer que raça, classe e gênero somente podem ser pensadas de forma indissociável.


Referências:

AIRES, Suely. Corpos e sujeitos. Revista Cult: 2018.

ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. As raízes da violência na sociedade patriarcal. Sociedade e Estado, v. 19, n. 1, 2004.

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Seminário Internacional “Democracia em colapso?” Boitempo: 2019.

HOOKS, Bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 16, p. 201, 2015.

RIBEIRO, Djamila. Feminismo negro para um novo marco civilizatório. Revista Internacional De Direitos Humanos, v. 13, n. 24, 2016.

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