3ª Turma

Além do Espelho, de Mãos Dadas com Minha Irmã

Para viver em sororidade é preciso compreender que mulheres brancas e negras ainda não estão livres

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Será possível mulheres brancas

das novas gerações renunciarem

aos privilégios que o racismo

produz aos brancos na sociedade

brasileira e que gera

desigualdades entre as mulheres

negras e brancas em prol da

construção de um Tempo Feminino

em que os melhores valores da

cultura feminina prevaleçam.”[1]

Todos os dias abrimos os olhos e nos deparamos com um mundo que nos convida a refletir e agir combatendo machismo, sexismo, patriarcado, misoginia, racismo, condutas que atravessam nossas vidas e insistem em pretender determinar como devemos existir. Percebidas por essas perspectivas, nós mulheres, necessitamos estar atentas, refletirmos, significarmos e ressignificarmos nossas práticas, dizendo sobre os acertos e os erros, com franqueza e lealdade, fortalecendo umas às outras, caminhando como irmãs.

Escrevo a partir de um coletivo, onde se pressupõe empatia e companheirismo de quem busca alcançar a igualdade entre os gêneros, para provocar aqui – as mulheres que – assim como eu, vocalizam, livres e orgulhosas, viverem em sororidade.

Somos sororas e necessitamos entender as conexões de irmandade como constituintes de atos políticos capazes de transformar as vidas de todas as mulheres.

Quando bell hooks [5], em De Mãos Dadas com Minha Irmã, descreve como mulheres negras e brancas relacionavam-se, principalmente nos Estados Unidos, convida-nos a pensar acerca quão hostis foram essas relações entre si, ao longo de séculos, adotando condutas frutos do colonialismo e da escravização e   estabelecendo uma hierarquia entre nós baseada no poder, com reforço na diferença de status baseada na raça.

Assim, sob o patriarcado, mulheres brancas,  inferiores em razão do sexo, poderiam ser mediadas pelos vínculos raciais e, nesse sentido, mulheres negras viviam sob dominação em razão da cor da sua pele. [2]

No Brasil, mulheres negras sempre foram exploradas e, até hoje, vivem em situação de vulnerabilidade, como se vê das pesquisas que as colocam na base da pirâmide social das opressões, pois, a condição de subalternidade sempre permeou suas relações com mulheres brancas, uma vez que restritas ao quarto de empregadas da sociedade.

No Brasil, assim como na América do Norte, embora aqui tenha sido realizado um discurso de democracia racial, por muito tempo, não foi pauta de reflexão o questionamento sobre o quanto mulheres negras não se sentiam confortáveis e contempladas em suas necessidades e desejos, ao passar pelo mundo trabalhando como animais, hipersexualizadas ou realizando serviços domésticos, em total renúncia à vida pessoal, à vida em família e na sociedade, tudo em favor de pessoa brancas, como teoriza Patrícia Hill Collins ao conceituar imagens de controle de mulheres negras em Black Feminist Thought. [3]

Ainda que as relações entre negras e brancas não tenham sido, de todo, hostis, os relatos que já recolhi dessas mulheres pela vida afora demonstram que elas não estiveram de mãos dadas com suas irmãs brancas.

Não foi à toa que Sueli Carneiro, no ano de 1985, em Mulheres Negras, referiu que a ausência de produção teórica feminista, estudos e pesquisas oficiais sobre a população negra no Brasil revelavam tanto a discrepância de tratamento como os níveis de contradição na sociedade brasileira, principalmente entre mulheres brancas e negras, colocando estas sempre em situação de desvantagem quando comparadas. [4]

Sueli Carneiro é filósofa, escritora e ativista antirracismo. Uma das principais autoras do feminismo negro no Brasil.

Outrossim, o estudo da época revelou que, mesmo dentro do mesmo grupo ocupacional, o de empregadas domésticas, negras ganhavam apenas 79,5% da remuneração das brancas, desigualdade que ainda persiste e dificulta a criação de laços positivos, sem que exista disposição para colocar em evidência a sobreposição de opressões sofridas.

É certo que, com o passar correr dos tempos, os movimentos feministas pelo mundo afora criaram melhores condições de diálogo, e vínculos positivos foram estabelecidos quando se passou a pautar o debate sobre raça como  fundamental à emancipação de mulheres.

Em seu ensaio bell hooks apontou que, ao ouvir mulheres negras e brancas sobre relações entre elas que não fossem exploradoras ou opressoras, um fator de destaque foi o da assunção de responsabilidade por examinar as próprias reações à questão racial como precondição às mulheres brancas para entabularem relacionamento em pé de igualdade.

Assim, sugeriu que se estabeleçam políticas de solidariedade concretas, a fim de possibilitar algo genuíno, concluindo que “não poderia haver verdadeira sororidade entre mulheres brancas e mulheres não brancas se as brancas não fossem capazes de abrir mão da supremacia branca, se o movimento feminista não fosse fundamentalmente antirracista”. [6]

Nesse sentido:

“Distanciando-se da noção de que a semelhança é a chave para a harmonia racial, ativistas feministas conscientes têm insistido que a luta antirracista avança melhor com uma teoria que fale sobre a importância de admitir que o reconhecimento e a aceitação positiva da diferença são um ponto de partida necessário enquanto trabalhamos para erradicar a supremacia branca”. [7]

Ora, reconhecermo-nos apenas como mulheres, ignorando a raça como marcador social importante para definir a forma como negras existem mais as oprime e aprisiona, porque invisibiliza exatamente a condição que as torna sujeitos de maior vulnerabilidade.

Portanto, o que coloco aqui como pressuposto para o exercício da sororidade é o questionamento sobre o quanto essa disposição de convivência entre irmãs ainda se traduz em um movimento irrefletido sobre as desigualdades entre mulheres.

É inequívoco que, mesmo pretendendo viver em sororidade, mulheres brancas tendem a estabelecer vínculos apenas com grupos com os quais se assemelham, em razão das relações experimentadas ao longo de suas vidas, aparecendo aí o fator raça para indicar a quem, de um modo geral, destinam seus amores, carinhos, afetos e acolhimento, o que também determina a quem se concede espaço, vez e voz. Há reunião em irmandade, mas sem renúncia a um pacto narcísico, tão bem definido por Maria Aparecida Bento [8], reproduzindo comportamentos que beneficiam sempre as mesmas pessoas, afrontando os propósitos de respeito e não competição sororos.

Segundo o mito, Narciso era um menino belo e atraente, despertava a atenção de muitas pessoas que o admiravam, mas se apaixonou por sua imagem espelhada em um lago, revelando exacerbada valorização sobre si e egoísmo. Definhou e morreu admirando a ele mesmo. Ignorou o outro, o diferente, sem perceber que não bastava em si para sobreviver.

Amar a si próprio é, sim, necessário ao desenvolvimento saudável, de modo a satisfazer desejos e motivar a busca para realizá-los. Contudo, o comportamento narcísico exacerbado que, deveria desaparecer na idade adulta, parece se transformar. Explico, há os que “envelhecem apoiando, protegendo, favorecendo exclusivamente aquelas pessoas consideradas seus iguais e com as quais compartilham interesses(…)” [9], como forma de sentirem-se seguras. Nessas circunstâncias a raça surge como fator de identificação, que inclui uns, por uma necessidade de pertencimento social, proteção e concessão de privilégios.

E é assim que “A escolha de objeto narcísica se faz a partir do modelo de si mesmo, o melhor de seu ego: ama-se o que se é, ou o que se foi, ou o que se gostaria de ser, ou mesmo a pessoa que foi parte de si”. [10]

Nesta perspectiva narcísica aparece a branquitude, aqui entendida como o pensamento referente à forma que o branco se vê e classifica os não brancos, perpetuando a existência de desigualdades, já que, conforme explica Priscila Silva,

“Ela implica vantagens materiais e simbólicas aos brancos em detrimento dos não brancos. Tais vantagens são frutos de uma desigual distribuição de poder (político, econômico e social) de bens materiais e simbólicos. Ela apresenta-se como norma, ao mesmo tempo como identidade neutra, tendo a prerrogativa de fazer-se presente na consciência de seu portador, quando é conveniente, isto é, quando o que está em jogo é a perda de vantagens e privilégios”. [11]

Por isto, Cida Bento chama atenção para como pessoas brancas são egoicas e sobrevalorizam a si próprias. Autorreferenciando-se, compartilham privilégios apenas entre elas, gerando exclusão, desigualdades e injustiças àqueles que se viram desumanizados em nosso país.

Isso ultrapassa o plano individual e estabelece o padrão de relações entre indivíduos no espaço público e privado, pois “Narciso se transforma numa metáfora de uma sociedade que ainda não resolveu sua história colonial, uma sociedade patriarcal branca, que está obcecada por si própria e com a reprodução de sua própria imagem, tornando todas as outras invisíveis”. [12]

São as razões pelas quais afirmo que ser sorora é olhar além do espelho de Narciso!

Na sororidade e olhando além do espelho, mulheres não negras devem eliminar rivalidade e romper com o narcisismo, enxergando além de suas imagens, de suas dores, afetos e amores, passando a respeitar e compreender aquelas que, marcadas pela cor da pele, ocupam lugar social diferente do seu, compreendendo o que é ser branca, comportando-se como irmãs.

bell hooks é escritora, ativista e teórica feminista.

Olhando além do espelho uma  sorora deve ter a percepção de que a raça impacta a vida de mulheres, ou para colocá-las em um lugar de vantagens e privilégios, ou para retirar-lhe condições dignas de vida: a cor da pele vai determinar quem terá os melhores empregos, salários, saúde, educação, bens materiais e imateriais.  

Ainda, uma sorora deve provocar reflexões sobre as vidas de todas as mulheres, renunciando às prerrogativas da cor da pele, acolhendo a negritude, para colocar em evidência aquelas que sempre foram alijadas dos espaços e não podem com isso vocalizar demandas próprias para melhorar suas condições de vida, expressando assim afeto, amor e solidariedade.

Para que caminhemos de mãos dadas, como irmãs, as práticas sororas não podem estar circunscritas a um único grupo e devem expressar-se em atitudes muito simples, mas que revelem sensibilidade e colaborem para que mulheres, brancas e negras, tenham rosto, voz, expressão, sendo valorizadas e reconhecidas socialmente.  

E como se alcança isso? Entendo que para denominar se sorora é preciso procurar a presença e estranhar a ausência de mulheres negras em todos os lugares; é surpreender-se com a não participação das minorias nos espaços públicos e organizações, reivindicando sejam diversificados racialmente em todos os níveis.Além disso, reconhecer mulheres negras como interlocutoras legítimas, concedendo-lhes palavra e voz. Por óbvio, não há sororidade quando intelectuais negras não são lidas e estudadas; não há sororidade quando não se colocam em evidência os saberes negros.

Mais, é preciso recusar espaços que não promovem a diversidade. Como consumir produtos e serviços de empresas, organizações, corporações que não contemplam em seus quadros mulheres negras nos postos de comando e direção?  

É preciso reformular a base da educação, e não apenas aquela ensinada nas escolas, mas, sim, no próprio seio familiar, de modo que se promova o letramento racial de crianças. Como educá-las com a formação restrita a uma escola predominantemente branca, na qual talvez a única imagem que idealize de uma mulher negra seja a de uma serviçal?

Não é há como ser ser sorora,  permitindo que seres em desenvolvimento  vivam em espaços segregados, colaborando com a construção de identidades racistas, que só compreendem pessoas brancas como legitimadas a pensar, dizer e fazer o mundo.

A verdadeira sororidade impõe que os olhos não sejam voltados apenas para um lado da história, com a escolha de um caminho em que há apenas semelhantes.

Contrariando Antoine de Saint-Exupéry, aqui, amar é olhar um para o outro, e não apenas na mesma direção.

Logo, aquela que se diz sorora não pode ouvir apenas aquilo que beneficia a si, ou ao grupo ao qual pertence. Muito pelo contrário, ela deve compreender que a sua luta não é a única possível e legítima; deve compreender que a sua ascensão social, econômica e profissional não deve estar alinhada aos pensamentos, cultura e valores brancos.

Para caminhar de mãos dadas em sororidade, é fundamental reconheça-se o protagonismo de mulheres não negras pela emancipação social de todas, sua importância em espaços públicos estratégicos, entendendo-as como necessárias para levar adiante os ideais de suas comunidades, a partir da perspectiva pela qual enxergam o mundo.  

Para viver em sororidade é preciso compreender que mulheres brancas e negras ainda não estão livres, emancipadas, e que apenas em irmandade, de mãos dadas, olhando além do espelho, compraremos as alforrias umas das outras, como fizeram minhas ancestrais, como devemos fazer, eu e você.**

“Realizar igualdade intragênero ou seja equalizar as condições de vida de brancas e não brancas constitui mais uma pendência que as mulheres das novas gerações herdam de nós”.

Referências:

[1] CARNEIRO, Sueli. Escritos de Uma Vida. Belo Horizonte: Editora Letramento. 2018.

[2] HOOKS, Bell. Ensinando a Transgredir – A Educação como Prática da Liberdade. 2 Ed. São Paulo: Editora Wmf Martins Fontes. 2017.

[3] A lacradora: Como imagens de controle interferem na presença de mulheres negras na esfera pública – Winnie Bueno. Disponível em <blogueirasnegras.org> Acesso em 28.5.2019.

[4] A lacradora: Como imagens de controle interferem na presença de mulheres negras na esfera pública – Winnie Bueno. Disponível em <blogueirasnegras.org> Acesso em 28.5.2019.

[5] HOOKS, Bell. Ensinando a Transgredir – A Educação como Prática da Liberdade. 2 Ed. São Paulo: Editora Wmf Martins Fontes. 2017.

[6] HOOKS, Bell. O Feminismo é para todo mundo. São Paulo: Editora Rosa dos Tempos, 2018.

[7] HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação. Editora Elefante, 2019.

[8] BENTO, Maria Aparecida. Cidadania em preto e branco. Discutindo as relações raciais. Porto Alegre: Editora Ática.

[9] BENTO, Maria Aparecida. Cidadania em preto e branco. Discutindo as relações raciais. Porto Alegre: Editora Ática.

[10] BENTO, Maria Aparecida; CARONE, Iray. Psicologia Social do Racismo – Estudos sobre Branquitude e Branqueamento do Brasil. 6 Ed. Porto Alegre: Editora Vozes, 2014.

[11] SILVA, Priscila Elisabete. O Conceito de Branquitude: Reflexões para o Campo de Estudo, em Branquitude, Estudos sobre a Identidade Branca no Brasil.

[12] KILOMBA, Grada. Disponível em <http://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/grada-kilomba/> Acesso em 27.5.2019.

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